29 de março de 2020 | 05h00
No dia 16 de março de 2020 foi publicado o estudo feito para nortear as medidas de contenção do novo coronavírus que já é considerado um clássico. O trabalho, feito por um grupo de epidemiologistas do Imperial College em Londres, simulava a intensidade da pandemia na Inglaterra e nos Estados Unidos e recomendava as possíveis medidas de contenção até que uma vacina ou um remédio fosse descoberto. Esse estudo teve por base modelos que levavam em consideração os dados e os resultados da pandemia na China, a estrutura social, a estrutura doméstica, a demografia, distribuição de idade e o sistema de saúde da Inglaterra e dos EUA. De início a Inglaterra adotou a estratégia de mitigação proposta por esse estudo, mas logo em seguida mudou de rumo e adotou a supressão.
Agora esse mesmo grupo refez o estudo para cada um de 202 países, sendo que um deles é o Brasil. Para isso foram levadas em consideração todas as peculiaridades do Brasil, como a distribuição etária e estrutura familiar, índice de desenvolvimento e assim por diante. É um trabalho imenso descrito em um texto técnico e acompanhado de uma enorme planilha que detalha o resultado de cada um dos cenários analisados para cada um dos países, e também para o planeta como um todo. Vale a pena entender os resultados. De início é importante lembrar que os resultados para os diferentes cenários se restringem às consequências médicas e epidemiológicas da pandemia e não consideram os custos sociais e econômicos das medidas.
Segundo os autores existem três estratégias possíveis diante do novo vírus. A primeira é ignorar sua existência, não tomando nenhuma atitude. Nesse caso o modelo simula o espalhamento do vírus pelo planeta sem nenhuma medida de contenção. Esse cenário deve ser entendido como um referencial para podermos analisar o impacto das diferentes medidas de mitigação. Para o planeta, esse cenário prevê um único e enorme pico de casos no primeiro ano, onde 7 bilhões dos 7,7 bilhões de pessoas do planeta seriam infectados, ocorreriam incríveis 40,6 milhões de mortes e o colapso total dos sistemas de saúde. O único lado positivo dessa estratégia é que depois desse número enorme de mortes toda a população estaria imune ao vírus e o problema desapareceria. Essa atitude não foi adotada por nenhum país, mas pode vir a ocorrer em alguns países incapazes de implementar uma das outras estratégias.
A segunda estratégia é a mitigação. Nesse caso as medidas têm como objetivo reduzir as interações entre pessoas em 42%. Ou seja, toda a população interage com menos da metade das pessoas que interagiria em condições normais. O objetivo é espalhar o número de casos ao longo do tempo, de modo a não sobrecarregar muito o sistema de saúde (o tal achatamento da curva). Nesse cenário o estudo analisa duas possibilidades: isolar somente os mais idosos de cada país ou isolar igualmente toda a população. Apesar da diferença de estratégia, os números projetados são semelhantes. O número de mortes no primeiro seria de 20 milhões de pessoas, metade do anterior, e os países mais pobres seriam os mais afetados. Enquanto no mundo desenvolvido teríamos oito vezes mais casos que a capacidade máxima dos hospitais, nos países pobres o número de casos seria 25 vezes maior que a capacidade dos hospitais. Além disso as medidas teriam de ser estendidas por muitos meses até que toda a população fosse infectada e se tornasse imune ao vírus. Essa foi a estratégia adotada na Inglaterra até que a primeira versão desse modelo foi publicada, quando o governo decidiu mudar para a terceira estratégia.
A terceira estratégia é a supressão do vírus. Ela pressupõe uma diminuição de 75% dos contatos interpessoais de toda a população, o suficiente para levar a propagação do vírus a zero. Foi essa a estratégia usada na China. Ela também tem duas versões, uma em que o isolamento total é feito quando ainda existem poucas mortes e outra quando o número de mortes por semana já é alto. Quanto mais cedo ela é adotada, melhor os resultados. Nesse cenário nos primeiros 250 dias da pandemia, seriam infectadas 470 milhões de pessoas e teríamos 1,9 milhão de mortes. Se adotada mais tarde, essa estratégia levaria a 2,4 bilhões de pessoas afetadas e 10,5 milhões de mortes. Observe como retardar as medidas de supressão aumenta muito o número de mortos (o erro da Itália).
Essa estratégia tem dois problemas. O primeiro é que é difícil de implementar. O único caso de sucesso foi na China, e muitos países podem tentar implementar a supressão, e, se não tiverem sucesso, acabam com medidas que na realidade são de mitigação. O segundo problema, agora enfrentado pela China, é que a supressão tem de ser mantida até que surja uma vacina ou tratamento, pois, caso as medidas sejam relaxadas antes, a pandemia volta porque uma fração minúscula da população fica imune ao vírus. É bom lembrar que esses modelos assumem que grande parte dos casos (mesmo os que não necessitam de internação) terão sido testados e estarão em isolamento, assim como seus familiares.
Bom agora vamos ver os números para o Brasil (veja a tabela acima). Os resultados assumem que a população do Brasil é de 212 milhões de pessoas e a taxa de replicação do vírus (R0) é 3,0. Outros cenários, com outros valores da taxa também estão no trabalho, mas os resultados são semelhantes. Na tabela a primeira linha descreve o que aconteceria se ignorássemos o vírus (nenhuma intervenção). Não haveria redução da distância social e seriam infectados 181 milhões dos 212 milhões de brasileiros no primeiro ano. Teríamos 1,08 milhão de mortes, 5,89 milhões de pessoas hospitalizadas – sendo que dessas 1,44 milhão de pessoas seriam de casos graves que necessitariam intubação. A segunda e terceira linha descrevem os cenários de mitigação, onde a distância social seria reduzida em 42 e 41%. Na linha três o distanciamento social seria generalizado, mas maior para os idosos (60% para o grupo de risco).
Nesses dois cenários o número de infectados cai para 114 e 112 milhões de pessoas, o número de mortes cai para algo como 500 mil pessoas, os hospitalizados para algo como 3 milhões e os casos críticos para algo como 700 mil pessoas. Como você pode ver isolar os idosos não faz muita diferença, apesar dos números serem um pouco melhores. Uma das vantagens dessa estratégia é que os casos estarão espalhados ao longo do ano, o que sobrecarregaria menos os hospitais.
Finalmente podemos tentar suprimir a pandemia. Para isso é preciso reduzir os contatos sociais de toda a população em 75% (veja linha 4 e 5 da tabela). Nesse caso, a data em que iniciamos esse processo é de suma importância. No Brasil se o processo for iniciado quando as mortes por semana forem de 3,4 mil, o número de infectados será de 50 milhões de pessoas, teremos 206 mil mortes, e 1,18 milhão de brasileiros serão hospitalizados e 272 mil serão casos graves. Agora se a supressão for iniciada quando o número de mortes for de 425 por semana (o que deve ocorrer semana que vem ou na outra), 11,45 milhões de brasileiros serão infectados, 44 mil morrerão, 250 mil serão hospitalizados e, desses, 57 mil serão casos graves.
Em todos esses cenários o número total de leitos hospitalares e o número de pessoas entubadas no pico da pandemia também foram estimados. No melhor cenário (supressão cedo) precisaríamos de 72 mil respiradores e no pior (nenhuma intervenção, 2,2 milhões de respiradores). Essas são as projeções de um dos melhores grupos de epidemiologistas do mundo, levando em consideração todas as peculiaridades do Brasil, como o fato de os idosos morarem com pessoas jovens, parte das famílias viver em favelas e outras peculiaridades do Brasil (no trabalho estão descritas todas as características do País que foram usadas no modelo). Os números são verdadeiramente assustadores, mas os dados recentes da Itália e da Espanha sugerem que esses modelos estão no caminho certo.
Hoje, no Brasil, muitos Estados estão tentando adotar a estratégia da supressão, enquanto o governo federal propõe a mitigação com isolamento dos idosos. Tentar aplicar uma dessas estratégias não é certeza de sucesso. Se a população não respeitar o isolamento, uma estratégia de supressão pode facilmente se transformar em uma mitigação e uma de mitigação pode não ter efeito. Olhe com cuidado a tabela, os prós e contras de cada estratégia, e forme uma opinião. É isso que todos os governantes que acreditam na ciência deveriam estar fazendo.
MAIS INFORMAÇÕES: THE GLOBAL IMPACT OF COVID-19 AND STRATEGIES FOR MITIGATION AND SUPPRESSION. IMPERIAL COLLEGE COVID-19 RESPONSE TEAM (26/03/2020)
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