Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
25 Julho 2018 | 02h00
No domingo passado, escrevi sobre uma onda anti-intelectual que se choca contra o trabalho do historiador. Trata-se do caso daquele Fulano ou Sicrana que, diante de anos de pesquisa séria e fundamentada, descarta-a porque viu algo na internet, um documentário não sei onde ou ouviu justamente o oposto do afirmado pelo profissional de alguém em quem confia mais, “que não mentiria”, como sua avó.
Hoje, quero pensar em duas questões correlatas. A primeira é como a Memória se relaciona com a História. Esse é um tema denso e abrir sendas em floresta dessa natureza exige mais do que um simples facão, como esse que uso. Sabendo disso, vou arranhar a superfície do problema apenas para expor meu argumento. Mnemósine, para os gregos antigos, era aquela que fazia lembrar. Punha-se como oposta ao Rio Lete, leito do esquecimento, ou do Tártaro, também divindade ou lugar do ouvido. Lembrar seria manter vivo. Esquecer-se significava o oposto, condenar à morte. Mas os mecanismos da memória são mais complicados do que isso. Ao dizer que quero me esquecer de algo, estou produzindo justamente o efeito oposto: estou me lembrando desse mesmo algo! Quantas vezes desejamos nos lembrar (sem conseguir fazê-lo!) onde pusemos as chaves? Lembrar e esquecer são verbos siameses.
A memória pode ser individual ou de um grupo, coletiva. Quando fazemos festa de aniversário ou comemoramos uma tradição, como o Natal, por exemplo, estamos diante de memória coletiva (que também é individual, pois ninguém se lembra exatamente do mesmo jeito que a pessoa ao seu lado). Podemos perceber que a memória é terreno instável. Portanto, o que sua avó se lembra do passado não é o passado, mas uma alquimia muito própria dela, um misto do que ela se esqueceu (por trauma, por desconhecimento, por não considerar importante...) com aquilo que é capaz de se lembrar (operação que envolve entender onde ela viveu, qual sua posição social, sua cor da pele, nacionalidade, religião, etc.).
Desde Freud até a filosofia contemporânea, somos capazes de perceber como o relato de alguém que viveu uma experiência no passado não é um espelho concreto desse passado. A relação entre um fato vivido coletivamente e a recordação de um indivíduo sobre o mesmo evento está longe de ser direta. Há desvios, acidentes e pedágios no reino da memória. Um testemunho da vovó ou do papai é uma teoria interpretativa do passado muito mais do que o passado concreto e inquebrantável. Em tempos como os nossos, em que todos querem ter opinião sobre tudo, o testemunho pessoal passou a ter um peso extraordinário. O “eu penso, eu acho, eu acredito” ganha o debate que se trava entre iguais nas redes sociais. Lembremos, porém, que a memória está inextricavelmente ligada ao indivíduo que a produz e ao seu presente, como uma âncora ao leito do mar e ao navio.
Logo, o que nos resta? Contrastar o testemunho individual e sua gravidez de presente com outras fontes de passado, submetendo todas elas à crítica. É esse o ofício do historiador. Isso nos torna diferentes de um mero emissor de opinião sobre o passado e o presente. Como disse no domingo, não nos torna imunes a erros, mas nos dá mais margem para acertos. Aqui chegamos ao segundo raciocínio e ele tem a ver com o que o historiador chama de fontes históricas ou documentos.
Um sábio historiador holandês, há quase cem anos, disse-nos que devemos nos voltar ao passado como se estivéssemos diante de uma disputa de baralho. Se tentássemos ler o passado apenas da posição cômoda de quem já sabe quem ganhou o jogo, perderíamos nossa capacidade de historiar. É necessário reconstruir o jogo todo, verificar as cartas nas mãos dos jogadores, ponderar suas jogadas, uma a uma. Isso nos dá a dimensão real do quanto o passado parece estável, mas está longe disso. Adensando o mesmo paralelo, imagine-se diante de uma obra clássica, como o Dom Casmurro do genial Machado. Se o leitor ou a leitora apenas “folhearam” um resumo dele na internet, conhecem o enredo e as personagens, mas não fruíram Machado. Sem ler a obra toda, perde-se a riqueza da narrativa, não se compreende a psique das personagens, suas nuances. O mesmo vale para músicas, filmes e quaisquer produções humanas no tempo: o final isolado não é capaz de nos revelar o produto em si.
O historiador lida com isso. Os “produtos” e seus múltiplos rascunhos e criadores formam a nossa matéria-prima. Tudo o que o passado humano fez e que tenha sobrevivido a seu tempo torna-se um documento, uma fonte. Se quisermos entender Júlio César, teremos de ler A Guerra das Gálias, por exemplo. Lá está César falando de César. Igualmente imperativo seria analisar as estátuas e imagens que mandou fazer de si: lá está a memória que quis deixar para a posteridade. Pensar os textos de seus opositores e detratores nos daria o reverso de César. Lendo apenas uma fonte, temos algo mais próximo de um depoimento da vovó: captura algo do passado, mas está longe de ser o passado em si. O texto de César está cheio de intencionalidades. Os de seus adversários também. Combinar ambos pode me dar mais matizes ao quadro que pinto. Por outro lado, se quero entender o que um romano comia, como se vestia e como era seu cotidiano na época dos primeiros césares, talvez fosse melhor trocar de documentos. Pichações nas paredes de Pompeia ou material escavado nos esgotos de cidades romanas dariam mais pistas. Nas cloacas romanas, estará lixo e podemos dizer muito de alguém vasculhando aquilo que descarta: o que comeu, que tipo de utensílios usava, etc. O lixo romano mostraria cerâmica; o nosso, plástico. Isso não necessariamente está no texto de César ou no discurso de um líder contemporâneo.
Desconfie da memória, varie as fontes. Que tal fazer isso nesta quarta-feira pelo menos? Boa semana para todos nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário