O plenário do Supremo Tribunal Federal deverá enfrentar nos próximos meses o tema do aborto. A interrupção voluntária da gravidez envolve questões complexas de natureza moral, jurídica e de saúde pública. Todas imbricadas. Estima-se que mais de 55 milhões de abortos sejam praticados, todos os anos, ao redor do mundo. No Brasil, as pesquisas indicam a ocorrência de mais de 500 mil abortos por ano. Isso dá uma dimensão do problema.
Se o objetivo é reduzir o número de abortos, a criminalização não tem se demonstrado uma solução eficiente. A incidência de aborto é bem maior em países que proíbem o procedimento (37 por grupo de mil mulheres) do que naqueles países que autorizam a sua prática (17 por grupo de mil mulheres).
Dados apresentados pelo instituto Guttrmacher apontam que de 1990 a 2014 houve um declínio de cerca de 40% no número de abortos em países desenvolvidos, que sistematicamente descriminalizaram essa prática nas últimas décadas. Já em países em desenvolvimento, onde a criminalização foi, com raras exceções, mantida, os números permaneceram estáveis.
Se esses dados não nos permitem inferir que a descriminalização reduz o número de abortos, nos autorizam afirmar, com segurança, que a criminalização do aborto não tem nenhuma capacidade de reduzir a sua incidência. O único efeito prático da criminalização é ampliar o número de abortos realizados na clandestinidade, com graves consequências físicas e psicológicas para as mulheres.
Dados do Ministério da Saúde apontam que 123.312 mulheres deram entrada em hospitais brasileiros em função de complicações derivadas de abortos em 2016. Cerca de 1.500 morreram em consequência dessas complicações. Essa é a realidade que deveria ser levada a sério por todos aqueles que, por razões religiosas ou convicções morais, são contrários ao aborto.
Da perspectiva jurídica é fundamental destacar que a Constituição de 1988 não protege o direito à vida desde o momento da concepção. Esse direito, como ficou definido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da pesquisa com células tronco, só pode ser reivindicado a partir do início da vida biográfica. Do nascimento com vida.
Isso não significa que o Estado não tenha um interesse legítimo em proteger o feto. Ele pode fazê-lo. Mas isso não pode ser feito a partir de uma política que, além de absolutamente ineficaz, impõe graves limitações aos direitos das mulheres.
A criminalização do abordo ofende de uma só vez os direitos à dignidade, à liberdade, à privacidade e à intimidade das mulheres, quando transfere o controle sobre o seu corpo para as mãos do Estado.
Além do que, ofende o direito à igualdade, na medida em que a criminalização tem um impacto perversamente desproporcional sobre mulheres pobres, que não podem recorrer a clínicas protegidas e mesmo deixar o país para praticar o aborto.
Por todas essas razões, o STF deveria seguir o caminho aberto por diversos tribunais ao redor do mundo, especialmente na Europa, e declarar a criminalização da prática de aborto, ao menos nas primeiras 12 semanas de gestação, inconstitucional. Ao fazê-lo, não estará invadindo competência do Congresso, mas simplesmente defendendo a Constituição de uma legislação inconstitucional, ultrapassada e ineficaz.
Se o objetivo é reduzir o número de abortos, o Estado brasileiro deveria deixar de perseguir as mulheres, investir seriamente em educar nossos jovens e, sobretudo, disponibilizar meios contraceptivos.
Oscar Vilhena Vieira
Diretor e professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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