quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Esculturas de gelo, Ruy Castro FSP

 Um de meus pesadelos recorrentes envolve algo que talvez não exista de verdade, só simbolicamente: as esculturas de gelo. São as possíveis obras-primas condenadas a serem apreciadas por poucos e por pouco tempo, antes de degelarem e escorrerem rumo ao esquecimento. E, por esculturas de gelo, não se entendam apenas figuras recortadas a cinzel, mas toda espécie de arte efêmera —como a música popular. Quantos shows memoráveis nunca foram gravados? Terá havido registros de Carmen Miranda no Cassino da Urca, em 1938? De Dolores Duran no Beco das Garrafas, em 1957? De João Gilberto e João Donato, juntos, em 1963, na Itália?

Em 1984, Nara Leão deu um show no Centro de Convivência Cultural de Campinas. Ela não sabia, mas algo letal já se formava silenciosamente em seu cérebro. Dois anos depois, no Japão com Roberto Menescal, viu-se ausente no meio de uma canção. Parou de cantar. Menescal, sem saber o que acontecia, cantou por ela. Um minuto depois, Nara voltou a si, sem saber que estavam no palco em Tóquio. De volta ao Rio e constatada a doença, não se abateu —com a ajuda de Menescal, continuou a cantar e gravar, até ser vencida de vez em 1989.

O show em Campinas pode ter sido um de seus últimos ainda em plenas condições. Acompanhada só por seu violão, cantou por mais de uma hora o melhor de seu repertório, de "Olé, Olá", de Chico Buarque, e "Diz que Fui Por Aí", de Zé Kéti, até standards da bossa nova e a americana "There Will Never Be Another You". Osny Chaos, sonoplasta do Centro, gravou tudo. Quarenta anos depois, uma cópia doméstica em CD acaba de me chegar às mãos, cortesia de meu amigo campineiro, o jornalista Edmilson Siqueira.

O que devemos a Osny não tem preço. Esta é uma Nara na intimidade, sem o frio perfeccionismo dos discos oficiais. Às vezes, Nara dirige-se delicadamente à platéia, quase que pedindo desculpas pelo que vai cantar.

Não é uma cantora, mas um ser humano em comunhão conosco —que um simples gravador impediu que tivesse o destino do gelo.

Por que eu escrevo, Ruy Castro - FSP

 Minha colega Mirian Goldenberg tirou-me as palavras da boca outro dia. Disse que, com ou sem a IA, ela continuará a escrever. É exatamente o que eu queria dizer. Há quase 100 anos não faço outra coisa e é difícil dispensar velhos hábitos. Além disso, não sei fazer mais nada —nunca dirigi um carro, mal consigo trocar uma lâmpada e não sei cozinhar nem macarrão. O tempo em que podia estar desenvolvendo essas habilidades foi gasto lendo pessoas que escreviam bem e tentando aprender com elas.

Assim como as crianças da pré-história, comecei escrevendo nas paredes, não das cavernas e com uma costela de mamute embebida em sangue, mas nas da sala de casa mesmo, e a lápis. Logo cheguei à máquina de escrever e, ainda quase imberbe, vi-me numa Redação de jornal. O Rio tinha então 15 jornais diários, mas eu estava justamente no que queria: o heroico Correio da Manhã. Foi minha introdução ao combate entre a página impressa e o obscurantismo, no caso, vencido por este. O jornal foi destruído pelo regime militar na sequência do AI-5, em 1968, mas isso desenvolveria em nós, seus órfãos, uma casca grossa que nos valeria para sempre.

Dali passei por uma quantidade de veículos e, não muito comum na profissão, orgulho-me de nunca ter produzido uma linha em que não acreditasse. Claro que me arrependo de muitas, mas, na época, me pareciam as corretas. Quero crer também que haja uma coerência entre elas: desafio um futuro pesquisador a encontrar, em milhares de artigos, crônicas e reportagens, um elogio a um governante.

Ele também não encontrará nas gavetas uma única página que possa chamar de "inédita", não publicada. Poemas, então, nem pensar —por respeito aos poetas que admiro, jamais cometi um na vida. Tudo que produzi até hoje foi escrito para sair amanhã, na semana seguinte, dali a três meses ou no ano que vem. Tudo com destino marcado: colunas de jornal, uma reportagem para uma revista, um livro já programado pela editora.

O problema, Mirian, será: o que fazer no Além?

Nova enzima capaz de quebrar a celulose deverá revolucionar a produção de biocombustíveis, Fapesp

 José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – A desconstrução da celulose é fundamental para a conversão de biomassa em combustíveis e produtos químicos. Mas a celulose, o polímero renovável mais abundante do planeta, é extremamente recalcitrante à despolimerização biológica. Embora composta inteiramente por unidades de glicose, sua estrutura microfibrilar cristalina, juntamente com sua associação com lignina e hemiceluloses nas paredes celulares vegetais, a torna altamente resistente à degradação. Como resultado, sua quebra na natureza é lenta e demanda sistemas enzimáticos complexos. A desconstrução da celulose, que, entre outros resultados, pode possibilitar um aumento significativo na produção de etanol a partir da cana-de-açúcar, tem sido há décadas um enorme desafio tecnológico.

Pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em parceria com colegas de outras instituições do país e do exterior, acabam de obter uma enzima que pode literalmente revolucionar o processo de desconstrução da celulose, viabilizando, entre outras aplicações tecnológicas, a produção em larga escala do chamado etanol de segunda geração, derivado de resíduos agroindustriais, como o bagaço da cana e a palha do milho. O estudo foi publicado hoje (12/02) na revista Nature.

“Identificamos uma metaloenzima que melhora a conversão da celulose por meio de um mecanismo até então desconhecido de ligação ao substrato e clivagem oxidativa. Essa descoberta estabelece uma nova fronteira na bioquímica redox para a despolimerização de biomassa vegetal, com implicações amplas em biotecnologia”, conta à Agência FAPESP Mário Murakami, líder do grupo de pesquisa em biocatálise e biologia sintética do CNPEM e coordenador do estudo.

A enzima recém-descoberta foi nomeada CelOCE, a partir da expressão em inglês Cellulose Oxidative Cleaving Enzyme. Ela cliva a celulose por meio de um mecanismo inédito, possibilitando que outras enzimas presentes no coquetel enzimático prossigam o trabalho, convertendo os fragmentos em açúcar. “Para usar uma comparação, a recalcitrância da estrutura cristalina da celulose decorre como que de um conjunto de cadeados, que as enzimas clássicas não conseguem abrir. A CelOCE abre esses cadeados, permitindo que outras enzimas façam a conversão. Seu papel não é gerar o produto final, mas tornar a celulose acessível. Ocorre uma sinergia, a potencialização da atuação de outras enzimas pela ação da CelOCE”, comenta Murakami.

Quebra de paradigma

O pesquisador informa que, cerca de duas décadas atrás, a adição das mono-oxigenases ao coquetel enzimático constituiu uma primeira revolução. Essas enzimas oxidam diretamente as ligações glicosídicas da celulose, facilitando a ação de outras enzimas. Foi a primeira vez que se utilizou a bioquímica redox como estratégia microbiana para superar a recalcitrância da biomassa da celulose. E isso definiu um paradigma. Tudo que se descobriu no período foi baseado nas mono-oxigenases. Agora, pela primeira vez, esse paradigma foi quebrado, com a descoberta da CelOCE, que não é uma mono-oxigenase, e propicia um resultado muito mais expressivo.

“Se acrescentamos uma mono-oxigenase ao coquetel enzimático, o incremento é de X. Se acrescentamos a CelOCE, obtemos 2X: duas vezes mais. Modificamos o paradigma de desconstrução da celulose pela via microbiana. Achávamos que as mono-oxigenases eram a única solução redox da natureza para lidar com a recalcitrância da celulose. Mas descobrimos que a natureza havia encontrado também outra estratégia, ainda melhor, baseada em um arcabouço estrutural minimalista que permite seu redesenho para outras aplicações, como a biorremediação ambiental”, afirma Murakami.

O pesquisador explica que a CelOCE reconhece a extremidade da fibra de celulose, instala-se nela e a cliva de forma oxidativa. Ao fazê-lo, ela perturba a estabilidade da estrutura cristalina, tornando-a mais acessível para a ação das enzimas clássicas, as hidrolases glicosídicas. Um dado muito relevante é que a CelOCE é um dímero, composto por duas subunidades idênticas. Enquanto uma subunidade se encontra “sentada” sobre a celulose, a outra fica livre, podendo desempenhar uma atividade secundária de oxidase, gerando o cossubstrato necessário para a reação biocatalítica.

“Isso é realmente muito inovador, porque as mono-oxigenases dependem de uma fonte de peróxidos externa, enquanto a CelOCE produz seu próprio peróxido. Ela é autossuficiente, uma máquina catalítica completa. Sua organização estrutural quaternária possibilita que o sítio que não está engajado sobre a celulose atue como seu gerador de peróxido. Trata-se de uma enorme vantagem, porque o peróxido é um radical altamente reativo. Ele reage com muitas coisas. É muito difícil de ser controlado. Por isso, em escala industrial, adicionar peróxidos ao processo configura um grande desafio tecnológico. Com a CelOCE, o problema é eliminado. Ela produz in situ o peróxido de que necessita”, sublinha Murakami.

A CelOCE é uma metaloenzima: esta é sua classificação exata, porque possui um átomo de cobre embutido em sua estrutura molecular que atua como o centro catalítico propriamente dito. Ela não foi criada em laboratório, mas descoberta na natureza. Porém, para chegar a ela, os pesquisadores tiveram de mobilizar uma quantidade formidável de ciência e equipamentos.

“Partimos de amostras de solo coberto com bagaço de cana, mantido por décadas em uma área adjacente a uma biorrefinaria no Estado de São Paulo. Nessas amostras, identificamos uma comunidade microbiana altamente especializada na degradação de biomassa vegetal usando uma abordagem multidisciplinar que incluiu metagenômica, proteômica, enzimologia de carboidratos por métodos cromatográficos, colorimétricos e de espectrometria de massa, difração de raios X baseada em síncrotrons de quarta geração, espectroscopias de fluorescência e absorção, mutagênese dirigida por sítio, engenharia genética de fungos filamentosos por CRISPR/Cas e experimentos em biorreatores de planta-piloto de 65 litros e 300 litros. Fomos da prospecção da biodiversidade à elucidação do mecanismo e chegamos à escala industrialmente relevante em planta-piloto com possibilidade de aplicação imediata no mundo real”, conta Murakami.

O pesquisador enfatiza que este não foi um resultado de bancada de laboratório, que ainda precisa passar por muitas validações antes de chegar à utilização industrial. A prova de conceito em escala-piloto já foi demonstrada e a enzima recém-descoberta pode ser incorporada imediatamente ao processo produtivo – o que é extremamente relevante para o Brasil, como grande produtor de biocombustíveis, e para o mundo, em um contexto de transição energética urgente em função da crise climática.

O Brasil possui as duas únicas biorrefinarias existentes no mundo capazes de produzir, em escala comercial, biocombustíveis a partir da celulose. A tendência é que essas biorrefinarias se multipliquem aqui e sejam replicadas em outros países. Um dos maiores desafios, até agora, era a desconstrução da biomassa de celulose: como quebrar esse material e convertê-lo em açúcar. A CelOCE deverá aumentar expressivamente a eficiência do processo. “Atualmente, a eficiência está na faixa de 60%, 70%, podendo chegar, em alguns casos, a 80%. Isso significa que muita coisa ainda não é aproveitada. Qualquer aumento de rendimento significa muito, porque estamos falando em centenas de milhões de toneladas de resíduos sendo convertidas”, argumenta Murakami. E acrescenta que não se trata apenas de aumentar a produção de etanol veicular, mas de outros produtos também, como, por exemplo, biocombustível para aviação.

A pesquisa foi apoiada pela FAPESP por meio de dois projetos (21/04891-3 e 22/03059-5).

O artigo A metagenomic ‘dark matter’ enzyme catalyses oxidative cellulose conversion pode ser acessado em: www.nature.com/articles/s41586-024-08553-z.