domingo, 7 de dezembro de 2025

Flávio candidato prova que a direita errou, Celso Rocha de Barros, FSP
















Com a indicação de Flávio Bolsonaro como seu candidato à Presidência da República, Jair tenta soldar as rachaduras em seu círculo familiar. Mais do que isso, tenta preservar a identidade autoritária e populista de seu movimento, resistindo às tentativas de absorção pelo centrão.

Desde o início de sua carreira política, Bolsonaro administra sua máquina política como uma empresa familiar. É fácil entender por quê: seus filhos nunca tiveram qualquer capital político independente do pai; se não o obedecerem, Jair os condenará ao ostracismo político e, pior, à necessidade de arrumar emprego.

Por contraste, Michelle Bolsonaro tem algum capital político próprio.

Homem de óculos e camiseta preta com detalhes amarelos fala ao microfone. Ao fundo, recorte em tamanho real de homem sorridente com camisa branca. Ambiente interno com iluminação focada.
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) durante vigília após a prisão de seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro - Mateus Bonomi -22.nov.25/REUTERS

Não sabemos se ele é grande o suficiente para sustentá-la em voo solo. Não há qualquer sinal de que Michelle tenha posições consistentes sobre qualquer problema brasileiro relevante. Mas ela é articulada, ao contrário de Carlos. É carismática, ao contrário de Flávio. Não está diretamente associada a uma tentativa de destruir a economia brasileira com auxílio de superpotência estrangeira, como Eduardo. E não é tão ruim que só conseguiu se eleger em Balneário Camboriú, como Jair Renan.

É exatamente isso que desqualifica Michelle para liderar o campo bolsonarista. Só a total ausência de qualidades políticas torna um parente de Bolsonaro leal o suficiente a seus olhos.

Flávio Bolsonaro satisfaz perfeitamente essa exigência. Mas não se trata apenas disso.

Ao anunciar a candidatura de Flávio, Bolsonaro indica que aceita perder a eleição, mas não aceita dissolver seu movimento na direita tradicional. Seu capital político só será administrado por quem o obedecer cegamente.

E suas ordens são claras: a prioridade é eleger senadores suficientes para impichar ministros do STF, anistiar os golpistas e ressuscitar a ofensiva autoritária sob a liderança não de Flávio, mas do próprio Jair Bolsonaro, já anistiado e miraculosamente livre dos problemas de saúde que embasam seu pedido de prisão domiciliar.

Se esse objetivo for atingido, não importa se o próximo presidente será Lula ou Tarcísio.

O anúncio da candidatura de Flávio põe em xeque a estratégia que a direita tradicional adotou desde a derrota de 2022. Na falta de uma terceira via eleitoralmente viável, pensaram os bonitões, a alternativa seria moderar o bolsonarismo por dentro e usá-lo para seus próprios fins.

O centrão até que se deu bem: desenvolveu uma simbiose com o golpismo, usando a retórica anti-STF dos bolsonaristas para se proteger de investigações de corrupção originadas no STF.

Já a Faria Lima criou em torno de Tarcísio de Freitas um personagem liberal e tecnocrata que, graças a uma alquimia nunca explicada, conseguiria assumir a liderança de um movimento eminentemente populista e personalista.

A direita tradicional errou no pós-golpe. Deveria ter se juntado aos esforços para quebrar o golpismo – inclusive seu braço político, que as autoridades erraram em não investigar. Deveria ter se reorganizado sem os golpistas, mesmo que demorasse mais do que um ciclo eleitoral.

Agora corre o risco de perder a eleição do mesmo jeito, e de começar a reconstrução com quatro anos de atraso. A Faria Lima não entendeu o que a direita precisava. Quem entendeu foi Xandão.





Marcus André Melo - O STF está se paquistanizando?, fsp

 Em 2018, comovido com o infortúnio de um estudante de medicina sem condições de pagar as mensalidades de uma universidade privada, o presidente da Suprema Corte do Paquistão, determinou que o próprio tribunal custeasse seus estudos.

Ele também criou uma comissão para a análise da ração de galinhas. E outra para se contrapor a política de taxação zero de remessas do exterior implementada pelo governo. Seus apoiadores justificam suas ações por causa da inação do Poder Executivo. A corte também cancelou os direitos políticos do primeiro-ministro Nawaz Sharif quando vieram à tona os Panamá Papers. Dez anos antes ocorreu o inverso: o governo militar destituiu o então presidente do tribunal e mais 60 juízes. Juízes populistas e juízes independentes por vezes se confundem.

A cornucópia de desvios no caso paquistanês permite distinções finas nas patologias que podem afligir cortes constitucionais e que também se manifestam no nosso STF. Mas não as esgotam. Temos patologias que não aparecem em notórias cortes anômalas como a paquistanesa.

A imagem mostra uma sessão do Supremo Tribunal Federal do Brasil. O ambiente é formal, com uma mesa em formato retangular onde estão sentados vários ministros. Ao fundo, há uma bandeira do Brasil e um símbolo de cruz. A iluminação é suave e as paredes têm um design texturizado. Na frente, há telas que exibem um orador.
Sessão de abertura do segundo semestre do Judiciário no Supremo Tribunal Federal - Gabriela Biló - 1º.ago.25/Folhapress

A lista é longa: de juízes-dublês de empresário e processos em que parentes dos juízes são defensores, a ministros que atuam como chefe do controle externo. A generosidade da corte como provedora de bens individuais, como no exemplo paquistanês, é decerto singular, mas ainda não chegamos lá.

Mas a expansão da jurisdição constitucional é ubíqua entre nós. Aqui a distinção da cientista política Lisa Hilbink entre populismo judicial e ativismo judicial, em paper na Law and social inquiry (2024), é esclarecedora.

Enquanto o populismo judicial pode ser captado em uma escala que contém um polo onde a responsabilidade com a segurança jurídica é máxima; o público da decisão é interno (a comunidade jurídica), as decisões colegiadas e técnicas. E o polo oposto em que há responsividade (relação direta sem mediações com o "povo", para atender demandas que o sistema representativo não garantiria; o público é externo (a opinião pública); a decisão é individual (o juiz herói ); e os procedimentos descumpridos.

O ativismo judicial, por sua vez, refere-se ao conteúdo substantivo da decisão e não da sua forma. Pode ser mensurado em escala semelhante entre dois polos. De um lado, máxima autocontenção e deferência em relação à legislação/interpretações consolidadas; de outro, "inovação" institucional, que chega à anulação e substituição de decisões de outros Poderes. As consequências: o que Yasser Kureshi (Oxford) denomina institucionalização dissonante que mina a legitimidade do sistema político pela espiral de reações que deflagra.

Como Hilbink argumenta, não há correlação necessária entre populismo e ativismo judiciais. É também o que observamos na decisão cautelar do ministro Gilmar Mendes em relação à Lei do Impeachment. Mas há aqui, na realidade, mais que ativismo. Mas ação política instrumental sobre as regras do jogo da separação de Poderes. Intervenção com apelo técnico e marcada por discrição. Não há aqui um juiz buscando "acelerar" o processo de mudança social. Mas a figura insidiosa do juiz misto de árbitro e jogador.


sábado, 6 de dezembro de 2025

Guerra Fria no Porto de Santos - Por Giullia Chechia, FSP

 erca de seis metros de comprimento, dois e meio de altura, pouco mais de dois de largura. Essas medidas aplicadas ao aço corten, um tipo de aço mais resistente à corrosão e às intempéries do ambiente marinho, dão vida a um contêiner de 20 pés. Um “containerzinho” que, cheio, pode carregar até 24 toneladas. No jargão portuário, ele vale uma unidade: um TEU (Twenty-foot Equivalent Unit), a moeda com que se calcula o pulso das docas.

No maior ancoradouro da América Latina, a moeda registra recordes sucessivos. Entre os berços do Porto de Santos, apenas no ano passado, passaram 5,4 milhões de TEUs. São, então, mais de cinco milhões de contêineres. Imagine só: enfileirados, formariam uma linha de 32 mil quilômetros e mais uns tantos metros, quase 80% da circunferência da Terra. E o ritmo só acelera. Em outubro, Santos movimentou 550 mil TEUs em um único mês. É como se um contêiner se deslocasse, subisse, descesse, girasse, fosse empilhado, a cada cinco segundos, dia e noite, sem pausa.

Toda essa carga se apoia hoje em três terminais, popularmente chamados de portêineres. Do lado de lá do estuário, no Guarujá, está o Tecon Santos Brasil, operado pela companhia Santos Brasil, com capacidade de 2 milhões de TEUs por ano. Do lado de cá, já em Santos, o DP World Santos, da dubaiense DP World, movimenta cerca de 1,3 milhão de TEUs anualmente. E, ainda na margem direita, há o BTP, Brasil Terminal Portuário, controlado pelas duas gigantes mundiais da navegação, MSC e Maersk. Sim: no Porto de Santos, as próprias armadoras operam seu terminal, direcionam seus navios, organizam o pátio, administram o giro da própria carga. Juntas, essas operações somam capacidade para 2,4 milhões de TEUs por ano.

É nesse cenário, em que o porto opera espremido por seus limites físicos, que surge no horizonte o Tecon Santos 10. Um megaterminal planejado para a região do Saboó, na margem direita, com capacidade projetada de 2,3 milhões de TEUs por ano. Sozinho, poderia expandir em até 50% a capacidade total de movimentação de contêineres do maior porto da América Latina. Poderia… porque ainda existe apenas no papel.

O projeto avança lentamente, em estudos, análises e minutas de edital. O leilão, previsto para este mês, foi empurrado para 2026 após indefinições sobre o modelo de concessão. A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), responsável por regular e fiscalizar o setor, propôs um leilão em duas fases: na primeira, só poderiam concorrer empresas que não operam hoje no Porto de Santos, numa tentativa de atrair novos entrantes e evitar concentração. Apenas na ausência de interessados, se abriria uma segunda etapa, permitindo a concorrência entre operadoras já instaladas, como Maersk e MSC. Na prática, um filtro que pode tirar da largada justamente os maiores players do mercado.

O Ministério de Portos e Aeroportos apoia a lógica da Antaq e do Tribunal de Contas da União (TCU). Outro ente convocado à disputa, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), garante que há remédios para impedir a concentração de poder das empresas que já atuam em Santos, como o desinvestimento. Ou seja, se uma empresa da “casa” ganhasse o leilão, abriria mão de seus negócios atuais em prol do Tecon 10. O TCU, órgão que baterá o martelo a respeito do formato do leilão, está dividido. Enquanto o relator do caso, ministro Antônio Anastasia, defende a ampla concorrência e avalia que não há risco de concentração do mercado devido ao instrumento do desinvestimento, o ministro Bruno Dantas, revisor do processo no Tribunal, é favorável à exclusão de armadores e empresas que já têm terminais em Santos em uma primeira fase. Por isso, o ministro Augusto Nardes pediu mais prazo para análise e a decisão está marcada para o próximo dia 8.

Por trás do impasse aparentemente técnico, o empreendimento, a menina dos olhos do setor portuário, com potencial para reorganizar a logística do país acabou no epicentro de uma disputa onde interesses institucionais, pressões empresariais e resistências de mercado se entrelaçam. Uma espécie de guerra fria travada sobre um pedaço estratégico do estuário de Santos, território historicamente atravessado por redes de influência política que vão do velho MDB paulista e do círculo de Michel Temer ao novo protagonismo do Republicanos no comando de Portos e Aeroportos.

O leilão que não cabe no edital

“Nós estamos sendo postulados a um possível concorrente, e a gente não se coloca nessa posição. A gente se coloca numa posição de olhar oportunidades que o Brasil nos oferece.” A frase do CEO da JBS Terminais, Aristides Russi Jr., em setembro, durante uma viagem oficial à França, soou como uma resposta calibrada para reduzir especulações. Ele insistiu: “Quando a gente entender que seja viável a nossa participação, aí, obviamente, vamos nos comunicar. No momento, não temos nenhuma posição sobre o Tecon 10.” Nos bastidores, porém, a leitura é outra. É a de que a empresa já se movimenta estrategicamente para concorrer. Operadores e armadores do mercado portuário apontam a sequência de notícias que já foram publicadas sobre a proximidade entre os irmãos Joesley e Wesley Batista e o governo, sobretudo com o ministro de Portos e Aeroportos Silvio Costa Filho e com o ministro do TCU, Bruno Dantas, que já visitou a ilha de Joesley e admitiu ter usado um jatinho do grupo J&F. Procurados, J&F e o ministro Silvio Costa Filho não se manifestaram. Já o ministro Bruno Dantas, questionado à época sobre sua relação com Joesley Batista, afirmou em nota que o “superficial e esporádico convívio social” que manteve com o empresário não “infringiu normas legais”.

A cronologia reforça o desconforto nos bastidores. Em fevereiro de 2024, o governo retoma o Tecon 10, e a JBS, no mesmo mês, estreia no setor ao iniciar as operações no terminal de Itajaí, em Santa Catarina. Em março, enquanto a Antaq debatia o novo terminal em audiência pública, Joesley e Wesley viajavam à Ásia na comitiva presidencial junto a Silvio Costa Filho. Em abril, mesmo depois de um estudo técnico descartar a necessidade de restrições, a Antaq manteve o modelo em duas fases. Dias depois, os irmãos subiram ao palco, ao lado de Lula e Silvio Costa, durante o anúncio da criação de uma companhia de docas federal para o porto de Itajaí.

Em julho, a Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda reforçou que o leilão deveria ocorrer em etapa única. No parecer, o órgão concluiu que a realização faseada do certame, como propôs a Antaq, “embora bem-intencionada” é desproporcional. Em agosto, veio a publico que os irmãos Batista sondaram a suíça MSC para formar sociedade mirando o Tecon 10, mas as tratativas não avançaram. E, em setembro, o tabuleiro ganhou mais um movimento sensível: o TCU pediu um novo parecer concorrencial, mas o endereçou à Superintendência-Geral do Cade, chefiada por Alexandre Barreto, ex-chefe de gabinete de Bruno Dantas.

Esse encadeamento de contatos, agendas e decisões, ainda que amparado em atos formais, fortalece entre players do setor a percepção de que a JBS ganhou tração política em torno do Tecon 10. Reduzir a disputa, no entanto, a uma suposta manobra da companhia seria subestimar o apetite e o alcance político de outros atores que também enxergam no megaterminal a joia mais valiosa do setor portuário em décadas. A MSC e a Maersk têm sido as empresas com maior apetite para entrar no leilão, mas estão impedidas pelas restrições da Antaq. Em abril, as duas principais autoridades do Cade, o então presidente Alexandre Cordeiro, e Barreto, que ocupava a superintendência da autarquia, aceitaram convites para a festa de inauguração de um terminal de cruzeiro marítimo da gigante MSC. Em junho, o grupo Maersk entrou com um pedido de mandado de segurança contra a agência para que reconsiderassem o formato do certame.

Nesta semana, os ventos europeus sopraram a pressão pelo leilão aberto, em uma só etapa. As embaixadas da Suíça (MSC), Dinamarca (Maersk) e Holanda, países sede das atuais operadoras do porto, enviaram uma carta ao presidente do TCU, Vital do Rêgo, alertando para o risco de prejuízo à competição. No documento, encaminhado também ao Itamaraty, afirmaram que preservar a concorrência é crucial para sustentar a imagem do Brasil diante de investidores internacionais. O conteúdo é diplomático, mas carrega um recado mais amplo: o impasse do Tecon 10 já ultrapassa o porto de Santos e começa a atravessar a agenda externa do país. E o momento não permite ruídos.

Em meio às negociações sensíveis do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, qualquer sinal de fechamento ou favorecimento pode ser lido como retrocesso regulatório. O aviso ganhou ainda mais peso pelo detalhe geopolítico: desde julho, a Dinamarca ocupa a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. Uma das signatárias da carta está hoje em um dos postos centrais na condução política do bloco.

Enquanto isso, do outro lado do hemisfério, algo também se movia. A Ásia não ficou alheia ao jogo. A chinesa Cosco Shipping, quarta maior operadora de contêineres do planeta, resolveu bater à porta do governo brasileiro. A conversa, em uma videoconferência discreta, tinha dois pontos: declarar interesse no leilão e confidenciar uma preocupação. Pelas regras atuais, a empresa poderia ser descartada antes mesmo de apresentar proposta. Tudo por causa de uma participação inferior a 5% em um fundo que, por sua vez, detém uma fatia minoritária em um terminal de Santos. Um detalhe societário, pequeno no papel, enorme no edital, que faz a chinesa advogar pelo modelo de leilão em uma etapa só. Nos gabinetes de Brasília, a chegada da Cosco foi recebida com entusiasmo. Até então, além da própria JBS Terminais, quase ninguém surgia como candidato concreto, e capaz de dar um lance robusto, ao megaterminal. A outra postulante, a filipina ICTSI, que não opera em Santos, está com a JBS e se animou com o modelo em duas etapas, chegando a apresentar ao TCU um parecer defendendo a modelagem.

E assim o Tecon 10, antes mesmo de existir em concreto, já opera como um terminal em pleno fluxo: recebe pressões, redistribui forças e expõe, contêiner por contêiner, a dificuldade do Brasil de separar técnica e política no mesmo cais.