domingo, 4 de maio de 2025

Pai escreve livro sobre grupo online que incentivou mutilação e abuso da filha de 13 anos, FSP

 Paola Churchill

SÃO PAULO

Quando Paula, mulher de Paulo Zsa Zsa, morreu em decorrência de um câncer no cérebro, o empresário acreditava que jamais passaria por uma dor maior. Mas anos depois, o grito da filha Júlia, de 13 anos, abriu uma nova ferida. A adolescente havia tentado tirar a própria vida depois de participar de uma brincadeira online.

"Esse é um assunto urgente, mas não quero que minha filha sofra bullying pelo que aconteceu. Tomo muito cuidado porque é um tema que mexe com ela", diz Paulo, que decidiu escrever o livro "Aconteceu com a Minha Filha", usando um pseudônimo para preservar a identidade da família.

Um jovem está sentado em frente a um computador em um ambiente escuro, segurando um smartphone na mão. Ele está usando óculos e parece concentrado na tela do celular. Ao fundo, há um monitor de computador iluminado, com uma luz suave que destaca o teclado iluminado em cores. A iluminação do ambiente é baixa, criando um contraste com as luzes do teclado e da tela do computador.
Sociedade Brasileira de Pediatria pede que pais limitem o tempo de tela de crianças e adolescentes - Sociedade Brasileira de Pediatria

O estopim foi um episódio que aconteceu numa noite de setembro de 2024, na casa da família, no Rio de Janeiro. Com sono, Paulo zapeava por um serviço de streaming quando ouviu o grito que o fez despertar na hora.

"Minha vida virou um verdadeiro inferno", afirma. "Ela gritava 'me interna, me interna, por favor, eu enlouqueci', enquanto mostrava os cortes nos braços. Foi desesperador."

Ele levou a filha imediatamente ao pronto-socorro. A pré-adolescente disse aos médicos que havia cortado a língua, mas apenas um ferimento leve na bochecha foi encontrado. Mais tarde, o pai descobriu que ela havia tentado desenhar uma suástica no próprio rosto.

"Ela não queria falar muito sobre o que aconteceu. Só disse que era um desafio da internet que saiu do controle. Pediu ainda para que não me preocupasse pois tinha feito o símbolo fraquinho", relembra.

Sem saber como agir, Paulo pediu à funcionária da casa, Dona Tereza, que investigasse o celular da menina. Foi assim que encontrou prints de conversas no aplicativo Discord.

Criado em 2015 e com mais de 200 milhões de usuários pelo mundo, o aplicativo tem como intuito que pessoas criem servidores privados —grupos fechados onde nem sempre há fiscalização efetiva do que é compartilhado. Isso facilita que adolescentes se envolvam em desafios de automutilação e outras práticas de risco sem o conhecimento dos pais ou responsáveis.

Segundo Rodolfo Damiano, psiquiatra especializado em crianças e adolescentes e professor da USP, plataformas como Discord, TikTok e Instagram deixaram de ser apenas canais de consumo passivo para se tornarem ambientes de produção de identidade e busca por pertencimento.

"Hoje os algoritmos mapeiam precisamente as vulnerabilidades emocionais dos usuários, criando bolhas digitais difíceis de romper, principalmente para adolescentes, cujo cérebro ainda está desenvolvendo a autorregulação emocional e o pensamento crítico", diz.

No caso de Júlia, Paulo descobriu que ela participava de um grupo onde aconteciam jogos chamados "Lulz" — derivados da sigla "LOL" (laughing out loud, ou "rindo alto"). No grupo, adolescentes e alguns adultos incentivaram desafios de automutilação, humilhação pública e comportamentos de risco como forma de entretenimento.

"Eles faziam uma criança se ferir para ganhar aplausos. Minha filha foi vítima e vilã ao mesmo tempo. Uma plateia assistindo e pedindo coisas cada vez piores", diz Paulo.

Ele passou a investigar o que a filha fazia online. Em um dos vídeos encontrados, a jovem aparece maquiada e fantasiada em estilo cosplay, cumprindo ordens dos membros do grupo.

"Ela sentava e o sangue começava a escorrer dos cortes das pernas. Era como se estivesse sendo guiada ao vivo, fazendo tudo o que pediam."

Em uma das conversas, um dos participantes, já maior de idade, fez comentários sexuais explícitos sobre as imagens.

"Foi aterrorizante ver aquilo. Fiquei triste, mas também revoltado. A violência era tratada como diversão", diz o autor.

Para Damiano, conteúdos prejudiciais operam em dois níveis: explícito e implícito. "No explícito, vemos tutoriais de autolesão e fóruns que romantizam a depressão. No implícito, há a hipersexualização precoce, padrões irreais de beleza e a estética do sofrimento —onde dor emocional vira capital social", afirma.

Depois do episódio, Paulo recolheu todos os aparelhos eletrônicos da filha e reforçou o tratamento psicológico e psiquiátrico.

"Eu fiz o que pude. Tirei a internet, tirei o celular, mas sabia que isso não seria suficiente. Precisava reconstruir nossa relação de confiança", conta.

Júlia teve outras recaídas nos meses seguintes, mas hoje, segundo o pai, está bem melhor.

"Ela voltou a frequentar a escola, quase não usa mais o celular, gosta de passear no barco da família comigo e com a dona Tereza. Voltei a ver brilho no olhar dela."

Casos como o de Júlia não são isolados. Segundo dados da SaferNet Brasil, as denúncias de conteúdo violento no Discord aumentaram 272% no primeiro semestre deste ano em comparação a 2024.

Sobre o aumento dos casos para o psiquiatra, é por conta da vulnerabilidade dos adolescentes se explica tanto por fatores neurológicos quanto sociais.

"O cérebro ainda imaturo torna-os biologicamente mais suscetíveis a impulsos e riscos. Ao mesmo tempo, necessidades de pertencimento, reconhecimento e diferenciação, centrais na adolescência, podem ser distorcidas por grupos online problemáticos", diz.

"A cada notícia que leio sobre crianças vítimas da internet, vejo que esse assunto é urgente. Se minha história puder ajudar a salvar uma vida, já terá valido a pena", afirma Paulo.

ACONTECEU COM MINHA FILHA

Pessoa em situação de mendigo, Antonio Prata, FSP

Tenho ódio sempre que ouço essa aberração do politicamente correto: "Pessoa em situação de rua". Primeiro porque não existe, em nosso idioma, ninguém "em situação" de nada. Nunca estive ou conheci alguém "em situação de gripe". Lá pelo meio-dia não estou "em situação de fome" e depois da meia-noite nunca me descreveria "em situação de sono". Não sei de onde importaram essa frase horrível, só sei que ela não foi bem adaptada à nossa "situação de língua".

Não é a "situação de aberração", porém, que me revolta mais ao falarmos "pessoa em situação de rua". É a mentira que a frase, em sua deliberada assepsia semântica, tenta passar. É como se o sujeito que tá dormindo na calçada, em cima de uma caixa de papelão aberta, coberto com aquela manta de proteger móvel em mudança, com uma garrafa (vazia) de cachaça ao lado, sem tomar banho há semanas, sem laços sociais, familiares, talvez viciado em crack, enfim, é como se essa pessoa ferrada estivesse numa "situação" momentânea que logo, logo, vai ser resolvida. Tipo: o cara perdeu o último ônibus pro seu bairro, ficou em "situação de rua", mas amanhã pegará o busão e estará "em situação de casa".

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 04 de Maio de 2025, mostra o desenho de um mendigo deitado sobre a obra de arte "Brillo Box", do artista Andy Warhol, composta por diversas caixas de madeira estampadas com uma marca de produto de limpeza.
Adams Carvalho/Folhapress

Mendigo é o nome dessa pessoa. Mendigo não é alguém que simplesmente não tem casa. Não tá em "situação de rua" e nem é "sem teto". É sem tudo. É o fundo do fundo do alçapão no fundo do alçapão do poço. Qualquer corrupção linguística para maquiar sua condição serve só para amenizar nossa culpa. É calhorda. É covarde. Em vez de tentar salvar a pessoa da degradação total, fingimos que ela não está assim tão mal. "Só uma situação".

Fingir é uma grande habilidade nossa, brasileira. Difícil viver e ser são neste país sem fingir barbaramente um monte de coisa. Finge que o cara tá "em situação de rua". Finge que não vê os miseráveis nos faróis de trânsito. Finge que não vê o mar de favelas sob o Rodoanel. Finge que não teve tentativa de golpe. Finge que é normal o "orçamento secreto". Finge que a CBF tem algum interesse na melhoria do futebol brasileiro. Pensando bem, não é só um fenômeno brasileiro. O mundo finge que não tá acabando.

Tudo isso pra chegar na grande mágica, no grande fingimento, não só semântico, mas concreto, urbano, proposto pelo vice da prefeitura: trocar mendigos por carros embaixo do Minhocão. Tirar "pessoas em situação de rua" e colocar "carros em situação de estacionamento".

Se a gambiarra semântica da esquerda parece bizarra, por "amaciar" a existência dos mendigos, o que a direita propõe agora em São Paulo vai muito além. É a metonímia feita ação. É a falta de vergonha: "vamos sumir com esses pobres!". Vai ter matéria mostrando como a área do Minhocão ficou mais bonita. Mais segura. Vai gerar renda. Não tenho a menor dúvida. Varrer a miséria pra longe sempre melhora o perto. Eu, se morasse ali, não seria hipócrita. Adoraria a medida. A questão é que esses pobres existem. Continuarão na rua, em outra rua. Na frente da casa de outra pessoa. E continuarão sem casa, sem trabalho, sem banho, sem porra nenhuma, "em situação de mendigo", em algum lugar.

 

Samuel Pessôa 'A Vingança de Tocqueville', FSP

 Fabio Giambiagi publicou no final do ano passado o livro "A Vingança de Tocqueville". Trata-se de uma história da economia e da economia política brasileira desde a redemocratização. Após 40 anos, é bem difícil culparmos o imperialismo ou o capitalismo pelos nossos problemas.

O livro se inicia argumentando que não é possível continuarmos sequestrados pela estratégia de substituição de importações e pela ideia de desenvolvimento para dentro. Se ela funcionou em algum momento, foi em circunstâncias muito diversas. Não funciona mais.

No livro, Fabio apresenta todos os avanços que tivemos nas últimas quatro décadas. Houve o esforço da estabilização com o Plano Real e a superação da restrição externa, com a forte acumulação de reservas nos dois primeiros mandatos do presidente Lula. Tivemos também algum avanço na área social.

Não conseguimos construir um equilíbrio macroeconômico com juros civilizados sem pressão inflacionária permanente. Tudo sugere que Lula não conseguirá avançar na queda dos juros reais no seu terceiro mandato. Será tarefa para o próximo governo, seja o quarto mandato de Lula, seja da oposição ao atual governo.

Uma dificuldade de nossa economia política é o forte "curto-prazismo" induzido por ela. Nos últimos 40 anos, tivemos muito pouco tempo para discutirmos a baixa taxa de crescimento da produtividade.

Fabio, um especialista em contas públicas, documenta que, por um lado, houve forte aumento da carga tributária, e, por outro, que o aumento não foi para financiar a máquina pública. Não houve grandes aumentos do gasto com funcionalismo público. O grande aumento de carga tributária foi integralmente para financiar as diversas rubricas do gasto social.

O livro se beneficia da grande erudição de Fabio. Um compilador quase que compulsivo de citações e de casos da política. Com verve e propriedade, ele consegue assentar sua descrição de nossa história econômica em inúmeros episódios da política e da literatura recente.

Aparece no livro um ponto de vista de Fabio menos conhecido. Ele nasceu no Brasil, de pais argentinos que estavam de passagem por aqui. Viveu na Argentina até a adolescência, quando a família emigrou para cá, nos anos 1970, fugindo da ditadura argentina. Fabio consegue olhar para o Brasil como estrangeiro e como brasileiro. O contraponto com nosso vizinho ao sul é permanente.

O livro repassa a disputa entre tucanos e petistas. O saldo do período em que os dois partidos se alternaram no poder é moderadamente positivo e deveria servir de ponto de partida para ganhos futuros. Uma oportunidade foi perdida, segundo Fabio, com o terceiro mandato de Lula. Um governo que poderia expressar uma frente ampla acabou, na economia, expressando a hegemonia petista. Como documentado no quinto capítulo, o déficit público, após grande elevação em 2015, se reduz até 2022, quando volta a se elevar.

A conclusão no último capítulo, que tem o mesmo título do livro, é melancólica. Um país que não anda, amarrado em um equilíbrio ruim com juros elevados e pressão inflacionária permanente, que só toca o curto prazo e no qual a demografia piora rapidamente. A agenda social puramente compensatória, em que o país é incapaz de pensar o longo prazo, nos deixa amarrado na armadilha da renda média com a possibilidade de crises fiscais recorrentes. Será que a próxima será na virada de 2026 para 2027?

Capa do livro 'A Vingança de Tocqueville', escrito por Fabio Giambiagi. O título está em letras grandes e em destaque, com a frase 'A importância do BOM DEBATE' logo abaixo. O prefácio é de Mário Mesquita. A editora é Alta Cultura.
Capa do livro "A Vingança de Tocqueville: a Importância do bom Debate", de Fabio Giambiagi - Divulgação