terça-feira, 22 de abril de 2025

Prefácio do Papa Francisco no livro "À Espera de um Novo Começo. Reflexões Sobre a Velhice", de Angelo Scola

 

Leia o prefácio na íntegra:

Li com emoção estas páginas que saíram dos pensamentos e do afeto de Angelo Scola, querido irmão no episcopado e pessoa que cobriu cargos delicados na Igreja, por exemplo, como reitor da Pontifícia Universidade Lateranense, depois Patriarca de Veneza e arcebispo de Milão. Antes de mais nada, quero expressar meus agradecimentos por essa reflexão que une experiência pessoal e sensibilidade cultural como poucas vezes aconteceu de eu ler. Uma, a experiência, ilumina a outra, a cultura; a segunda fundamenta a primeira. Nesse feliz entrelaçamento, a vida e a cultura florescem com beleza.

Não se deixe enganar pelo formato curto deste livro: são páginas muito densas, que devem ser lidas e relidas. Extraio das reflexões de Angelo Scola alguns pontos de particular consonância com o que a minha experiência me fez perceber.

Angelo Scola nos fala da velhice, da sua velhice, que - escreve com um toque de confiança desarmante - "veio sobre mim com uma aceleração repentina e, em muitos aspectos, inesperada".

Já na escolha da palavra com a qual se autodefine, "velho", encontro uma consonância com o autor. Sim, não devemos ter medo da velhice, não devemos ter medo de abraçar o tonar-se velhos, porque a vida é a vida e adoçar a realidade significa trair a verdade das coisas. Restaurar o orgulho de um termo muitas vezes considerado doentio é um gesto pelo qual devemos ser gratos ao cardeal Scola. Porque dizer "velho" não significa "ser jogado fora", como uma degradada cultura do descarte às vezes nos leva a pensar. Dizer velho, por outro lado, significa dizer experiência, sabedoria, discernimento, ponderação, escuta, lentidão... Valores de que precisamos muito!

É verdade que ficamos velhos, mas esse não é o problema: o problema é como se tornar velho. Se vivermos esse tempo da vida como uma graça, e não com ressentimento; se acolhermos o tempo (mesmo longo) em que experimentamos forças reduzidas, a fadiga do corpo que aumenta, os reflexos não mais iguais aos da nossa juventude, com um senso de gratidão e de agradecimento, bem, até mesmo a velhice se torna uma idade da vida, como nos ensinou Romano Guardini, verdadeiramente fecunda e que pode irradiar o bem.

Angelo Scola destaca o valor, humano e social, dos avós. Já enfatizei várias vezes como o papel dos avós seja de fundamental importância para o desenvolvimento equilibrado dos jovens e, em última análise, para uma sociedade mais pacífica. Porque o exemplo deles, a palavra e a sabedoria deles podem incutir nos mais jovens uma longa visão, a memória do passado e a ancoragem em valores duradouros. Em meio ao frenesi das nossas sociedades, muitas vezes dedicadas ao efêmero e ao gosto doentio de aparecer, a sabedoria dos avós se torna um farol que brilha, ilumina a incerteza e dá direção aos netos, que podem extrair da experiência deles um "mais" em relação à própria vida cotidiana.

As palavras que Angelo Scola dedica ao tema do sofrimento, que muitas vezes se instaura ao se tornar velho e, consequentemente, com a morte, são preciosas joias de fé e esperança. Ao argumentar sobre este irmão bispo, ouço ecos da teologia de Hans Urs von Balthasar e de Joseph Ratzinger, uma teologia "feita de joelhos", mergulhada na oração e no diálogo com o Senhor. Por esse motivo que eu disse há pouco que essas são páginas que saíram "do pensamento e do afeto" do cardeal Scola: não só do pensamento, mas também da dimensão afetiva, que é a que se refere a fé cristã, sendo o cristianismo não tanto uma ação intelectual ou uma escolha moral, mas o afeto por uma pessoa, aquele Cristo que veio ao nosso encontro e decidiu nos chamar de amigos.

A própria conclusão dessas páginas de Angelo Scola, que são uma confissão de coração aberto sobre como ele está se preparando para o encontro final com Jesus, nos dá uma certeza consoladora: a morte não é o fim de tudo, mas o começo de algo. É um novo começo, como o título sabiamente indica, porque a vida eterna, que aqueles que amam já experimentam na terra em suas ocupações diárias, é começar algo que não terá fim. E é exatamente por esse motivo que é um "novo" começo, porque experimentaremos algo que nunca experimentamos plenamente: a eternidade.

Com estas páginas em minhas mãos, eu gostaria, idealmente, de repetir o mesmo gesto que fiz assim que vesti o hábito branco do papa, na Capela Sistina: abraçar o irmão Angelo com grande estima e afeto, agora, ambos mais velhos do que naquele dia de março de 2013. Mas sempre unidos pela gratidão a esse Deus amoroso que nos oferece vida e esperança em qualquer idade do nosso viver.

Cidade do Vaticano, 7 de fevereiro de 2025

Em prefácio inédito, Francisco diz que 'morte não é o fim de tudo', FSP

 O Vaticano divulgou nesta terça-feira (22) o prefácio que o papa Francisco escreveu para o livro do cardeal Angelo Scola uma semana antes de ser internado no hospital Gemelli, em Roma, em fevereiro. "A morte não é o fim de tudo, mas o começo de algo", diz o religioso argentino em um trecho.

A obra do arcebispo emérito de Milão intitulada "À Espera de um Novo Começo. Reflexões Sobre a Velhice" será publicada pela Livraria Editora Vaticana na próxima quinta-feira (24), dois dias antes do funeral do pontífice argentino, morto na segunda-feira (21), aos 88 anos.

No texto, o papa escreve sobre a importância de encarar a velhice como uma etapa positiva da vida e elogia o título da obra. "Sim, não devemos ter medo da velhice, não devemos temer abraçar o envelhecer, porque a vida é a vida, e adoçar a realidade significa trair a verdade das coisas", afirma o papa." [A morte] é um novo começo, como o título sabiamente indica."

Um homem vestido com vestes brancas e uma cruz no pescoço está acenando da janela. Ele parece estar em um ambiente formal, com uma cortina vermelha na parte inferior da janela. Ao fundo, é possível ver pessoas e câmeras, sugerindo que ele está em um evento público.
Papa Francisco ao assumir o papado em março de 2013 - Tony Gentile/17.mar.25/Reuters

No prefácio, Francisco afirma ainda que chamar alguém de velho não significa considerá-lo descartável, mas reconhecer sua experiência, sabedoria, discernimento, ponderação, escuta e capacidade de agir com calma — valores que, segundo ele, são urgentemente necessários.

"É verdade que ficamos velhos, mas esse não é o problema: o problema é como se tornar velho, se vivermos esse tempo da vida como uma graça, não com ressentimento."

Quando fala que a morte não é o fim, Francisco diz em outro trecho que é exatamente por esse motivo que se trata de um novo começo. "Experimentaremos algo que nunca experimentamos plenamente: a eternidade."

O papa destaca também o papel fundamental dos avós para o desenvolvimento equilibrado dos jovens e para a construção de uma sociedade mais pacífica.

Segundo ele, o exemplo, a palavra e a sabedoria dos mais velhos oferecem aos jovens uma visão de longo prazo, a memória do passado e a referência a valores duradouros.

Leia o prefácio na íntegra:

Li com emoção estas páginas que saíram dos pensamentos e do afeto de Angelo Scola, querido irmão no episcopado e pessoa que cobriu cargos delicados na Igreja, por exemplo, como reitor da Pontifícia Universidade Lateranense, depois Patriarca de Veneza e arcebispo de Milão. Antes de mais nada, quero expressar meus agradecimentos por essa reflexão que une experiência pessoal e sensibilidade cultural como poucas vezes aconteceu de eu ler. Uma, a experiência, ilumina a outra, a cultura; a segunda fundamenta a primeira. Nesse feliz entrelaçamento, a vida e a cultura florescem com beleza.

Não se deixe enganar pelo formato curto deste livro: são páginas muito densas, que devem ser lidas e relidas. Extraio das reflexões de Angelo Scola alguns pontos de particular consonância com o que a minha experiência me fez perceber.

Angelo Scola nos fala da velhice, da sua velhice, que - escreve com um toque de confiança desarmante - "veio sobre mim com uma aceleração repentina e, em muitos aspectos, inesperada".

Já na escolha da palavra com a qual se autodefine, "velho", encontro uma consonância com o autor. Sim, não devemos ter medo da velhice, não devemos ter medo de abraçar o tonar-se velhos, porque a vida é a vida e adoçar a realidade significa trair a verdade das coisas. Restaurar o orgulho de um termo muitas vezes considerado doentio é um gesto pelo qual devemos ser gratos ao cardeal Scola. Porque dizer "velho" não significa "ser jogado fora", como uma degradada cultura do descarte às vezes nos leva a pensar. Dizer velho, por outro lado, significa dizer experiência, sabedoria, discernimento, ponderação, escuta, lentidão... Valores de que precisamos muito!

É verdade que ficamos velhos, mas esse não é o problema: o problema é como se tornar velho. Se vivermos esse tempo da vida como uma graça, e não com ressentimento; se acolhermos o tempo (mesmo longo) em que experimentamos forças reduzidas, a fadiga do corpo que aumenta, os reflexos não mais iguais aos da nossa juventude, com um senso de gratidão e de agradecimento, bem, até mesmo a velhice se torna uma idade da vida, como nos ensinou Romano Guardini, verdadeiramente fecunda e que pode irradiar o bem.

Angelo Scola destaca o valor, humano e social, dos avós. Já enfatizei várias vezes como o papel dos avós seja de fundamental importância para o desenvolvimento equilibrado dos jovens e, em última análise, para uma sociedade mais pacífica. Porque o exemplo deles, a palavra e a sabedoria deles podem incutir nos mais jovens uma longa visão, a memória do passado e a ancoragem em valores duradouros. Em meio ao frenesi das nossas sociedades, muitas vezes dedicadas ao efêmero e ao gosto doentio de aparecer, a sabedoria dos avós se torna um farol que brilha, ilumina a incerteza e dá direção aos netos, que podem extrair da experiência deles um "mais" em relação à própria vida cotidiana.

As palavras que Angelo Scola dedica ao tema do sofrimento, que muitas vezes se instaura ao se tornar velho e, consequentemente, com a morte, são preciosas joias de fé e esperança. Ao argumentar sobre este irmão bispo, ouço ecos da teologia de Hans Urs von Balthasar e de Joseph Ratzinger, uma teologia "feita de joelhos", mergulhada na oração e no diálogo com o Senhor. Por esse motivo que eu disse há pouco que essas são páginas que saíram "do pensamento e do afeto" do cardeal Scola: não só do pensamento, mas também da dimensão afetiva, que é a que se refere a fé cristã, sendo o cristianismo não tanto uma ação intelectual ou uma escolha moral, mas o afeto por uma pessoa, aquele Cristo que veio ao nosso encontro e decidiu nos chamar de amigos.

A própria conclusão dessas páginas de Angelo Scola, que são uma confissão de coração aberto sobre como ele está se preparando para o encontro final com Jesus, nos dá uma certeza consoladora: a morte não é o fim de tudo, mas o começo de algo. É um novo começo, como o título sabiamente indica, porque a vida eterna, que aqueles que amam já experimentam na terra em suas ocupações diárias, é começar algo que não terá fim. E é exatamente por esse motivo que é um "novo" começo, porque experimentaremos algo que nunca experimentamos plenamente: a eternidade.

Com estas páginas em minhas mãos, eu gostaria, idealmente, de repetir o mesmo gesto que fiz assim que vesti o hábito branco do papa, na Capela Sistina: abraçar o irmão Angelo com grande estima e afeto, agora, ambos mais velhos do que naquele dia de março de 2013. Mas sempre unidos pela gratidão a esse Deus amoroso que nos oferece vida e esperança em qualquer idade do nosso viver.

Cidade do Vaticano, 7 de fevereiro de 2025

domingo, 20 de abril de 2025

De novo o bode na sala: reforma eleitoral ou distração?, Lara Mesquita, FSP

 No último dia 7 de abril, o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), defendeu a volta do debate sobre a mudança do sistema eleitoral, propondo um modelo misto que combina dois métodos de escolha de deputados: o majoritário e o proporcional.

Trazer esse tema à tona em ano ímpar —quando ainda é possível aprovar mudanças com validade para a próxima eleição— virou rotina no anedotário político nacional.

Até pouco tempo atrás, discutia-se o "distritão", sistema esdrúxulo apoiado por nomes como Eduardo Cunha e Arthur Lira. Agora, Motta resgata o modelo preferido dos tucanos: o misto.

Mas qual "sistema misto"? O modelo mexicano, mais fácil de entender e popular entre leigos? O alemão, o único verdadeiramente proporcional, mas que permite flutuação no número de cadeiras no Parlamento? Ou o escocês, que evita flutuação mas não corrige totalmente as distorções do voto distrital?

Se você não sabe, provavelmente o nobre deputado também não.

Um homem está sentado, com a mão direita na testa, em um gesto que sugere preocupação ou reflexão. Ele usa um terno escuro e uma gravata clara. O fundo é neutro, com uma parede clara e uma superfície escura à sua frente
O presidente da Cãmara dos Deputados, Hugo Motta, durante cerimônia em Brasília - Ueslei Marcelino - 2.abr.2025/Reuters

Chamados pela bibliografia especializada de "sistemas de membro adicional", esses modelos buscam unir o melhor dos dois mundos: a proximidade entre eleitos e eleitores proporcionada pelo voto distrital e a justiça na distribuição de cadeiras entre os partidos, oferecida pela regra proporcional. Essa combinação também reduz a fragmentação partidária quando comparada a um sistema exclusivamente proporcional, mas manteria incentivos para que os partidos se organizem nacionalmente, apresentando plataformas claras.

O componente proporcional também cumpre um papel fundamental na representação de eleitores cujas preferências não se baseiam em questões localistas, mas em valores ou causas programáticas —como foi, por exemplo, o caso dos partidos verdes na segunda metade do século 20, que conseguiram eleger representes graças a esse tipo de sistema.

Ainda assim, os sistemas mistos não são simples. Num país em que muitos dizem que os eleitores não entendem nem o sistema proporcional atual, será essa a reforma mais urgente?

Além disso, sua adoção exigiria mudança constitucional —exceto, talvez, no modelo alemão, que respeita a proporcionalidade final.

Mais importante que o modelo, cabe perguntar: qual o problema que se quer resolver, a suposta distância entre representantes e representados? Ora, a política brasileira é justamente criticada pelo seu excessivo personalismo.

Por outro lado, a reforma aprovada em 2017 —que acabou com coligações proporcionais e instituiu cláusulas de desempenho— já vem combatendo a fragmentação. Em apenas um ciclo, a queda no número de partidos foi expressiva. Com o aumento da cláusula para 2,5% em 2026 e 3% em 2030, a tendência é cair ainda mais.

Enquanto isso, temas centrais seguem ignorados, como a aprovação do novo código eleitoral e as regras de distribuição dos recursos públicos eleitorais. Por que continuar permitindo que a cúpula dos partidos controle sozinha o destino dos bilhões do fundo público eleitoral? Em 2022, foram R$ 4,9 bilhões.

Por que não discutir uma regra mista também aqui, combinando a vontade das direções partidárias com alguma influência da sociedade? O modelo alemão, mais uma vez, pode inspirar.