quarta-feira, 16 de abril de 2025

O que ainda leva os brasileiros a fazer turismo nos EUA?, Rodrigo Tavares, FSP

 Walt Disney World, Universal Orlando e SeaWorld. Antes o kit básico de viagem para os Estados Unidos incluía o visto B2 com validade de dez anos e ingressos para os parques temáticos. Hoje, ele vem com novos itens indispensáveis: um celular descartável sem dados sensíveis (sem fotos, redes sociais ou mensagens que possam soar antipáticas a Trump), um notebook antigo sem histórico digital, e os contatos da embaixada brasileira —precaução útil diante da possibilidade de detenção na fronteira. Também é recomendável portar cópias impressas de documentos como reserva de hotel, passagem de retorno e seguro-viagem.

A imagem mostra o arco de entrada do Walt Disney World, iluminado à noite. O céu está nublado e escuro, com algumas palmeiras visíveis ao lado do arco. O nome 'Walt Disney World' está em destaque, com letras brancas e um fundo azul. Há também bandeiras visíveis no topo do arco e um carro passando em frente.
Entrada do parque Walt Disney World, em Orlando, na Flórida - Jose Luis Gonzalez - 9.out.2024/Reuters

Além disso, é preciso estar preparado para responder, em inglês, a uma série de perguntas sobre os seus interesses pessoais (não mostre inclinação para políticas climáticas ou de igualdade e inclusão), a sua orientação sexual, ou sobre o roteiro e os vínculos com o país de origem. Tenha cuidado para não ser confundido com um "imigrante disfarçado".

É muita ansiedade. CanadáReino UnidoAlemanhaFrança, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Países Baixos, Portugal, entre muitos outros países, têm emitido alertas de viagem para os Estados Unidos, recomendando cautela aos seus cidadãos devido ao endurecimento das políticas migratórias sob a atual administração norte-americana, refletidas nas mudanças nas normas de entrada e no aumento de detenções arbitrárias.

As retenções extrajudiciais, segundo dezenas de relatos pessoais divulgados pela imprensa internacional, podem se estender por várias semanas. A ICE (Immigration and Customs Enforcement), agência responsável pelo controle migratório, administra cerca de 200 centros de detenção espalhados pelos EUA.

As novas políticas fronteiriças dos EUA revelam práticas típicas de Estados repressivos e autoritários: controle de dados pessoais, detenções sem acusação formal, racismo institucionalizado e exclusão legalizada. Nos principais rankings internacionais de qualidade democrática, os Estados Unidos deixaram de estar do lado dos bons. Desde o primeiro mandato de Donald Trump, observou-se um declínio consistente nos indicadores institucionais. Segundo a Economist Intelligence Unit, os EUA deixaram de ser classificados como uma "democracia plena" e passaram à categoria de "democracia com falhas".

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Voltemos ao turismo. Uma análise recente da Oxford Economics projeta uma queda de 5,1% nas viagens turísticas aos Estados Unidos, contrariando a tendência de crescimento anual observada nos últimos anos —em 2023, por exemplo, o aumento foi de 31%. Uma pesquisa divulgada esta semana revelou que 77% dos suíços não pretendem visitar os EUA devido a Donald Trump.

Em 2024, cerca de 1,9 milhão de brasileiros viajaram aos EUA, com um gasto total estimado em 6,3 bilhões de dólares. O Brasil ocupa atualmente a sexta posição entre os países que mais consomem em território norte-americano. Os EUA ocupam um imaginário de consumo e modernidade no Brasil. Ter o visto e viajar até à América é visto por parte da população como um símbolo de prestígio —uma forma de mostrar poder aquisitivo.

Para autores como Octavio Ianni, a modernidade periférica não é apenas um estágio atrasado em relação ao "centro", mas um modo particular de viver a modernidade, marcado pela tensão entre o desejo de pertencimento e a condição estrutural de subordinação. Para muitas famílias, ir à Disney se tornou um rito de passagem da classe média emergente.

Durante os anos de câmbio favorável —especialmente entre 2005 e 2014— os Estados Unidos consolidaram-se também como destino de compras para os brasileiros. Esse cenário, no entanto, mudou. A desvalorização do real, somada às políticas protecionistas implementadas durante o governo Trump —incluindo novas tarifas de importação—, tende a encarecer os bens de consumo no mercado norte-americano, reduzindo a atratividade econômica do turismo nos EUA.

Os brasileiros têm opções. O Canadá, além da segurança institucional, tem se consolidado como destino para famílias e estudantes. A Europa oferece não apenas parques temáticos —como a Disneyland Paris—, mas também roteiros culturais, históricos e gastronômicos que se tornaram mais acessíveis nos últimos anos. Entre Brasil e Portugal, há hoje 102 voos semanais ligando 13 capitais brasileiras a diferentes cidades portuguesas —uma verdadeira ponte aérea sobre o Atlântico.

A decisão de não fazer turismo nos Estados Unidos poderá, em breve, tornar-se um símbolo de consciência cívica e posicionamento político. Um gesto de recusa ativa à humilhação e à seletividade racial travestida de protocolo de segurança. O "não ir" aos EUA de Trump poderá ganhar contornos de declaração pública e de distinção social. Nesse novo mapa de prestígio, posar com sacolas na Times Square deixará de ser afirmação de classe, mas de falta dela.

terça-feira, 15 de abril de 2025

O mundo que minha filha vai encontrar, Joel Pinheiro da Fonseca, FSP

 Na quarta-feira passada nasceu minha filha mais nova. Talvez seja o caos global do governo Trump; talvez sejam os meus 40 anos se aproximando; o fato é que só nesta, que é minha filha número 4, me dei conta de como o mundo que a espera é diferente daquele em que eu cresci.


Na minha adolescência nos anos 1990 e início dos anos 2000, parecia haver consenso. E não era para menos: por um breve período de uns 20 anos, os EUA não tinham quem lhe fizesse frente. A Rússia parecia se democratizar e entrar na ordem liberal e da China se esperava que, conforme enriquecesse, também se liberalizasse.

A imagem mostra uma grande manifestação com várias pessoas reunidas em um espaço ao ar livre. No centro, há um grande globo terrestre inflável, simbolizando a Terra. Os manifestantes seguram cartazes e faixas com mensagens sobre a preservação ambiental e demarcação de terras indígenas. Ao fundo, é possível ver árvores e um céu parcialmente nublado.
Indígenas participam de manifestação a favor da demarcação de terras, durante o Acampamento Terra Livre em Brasília - Adriano Machado - 10.abr.2025/Reuters

A globalização era inevitável. A democracia liberal era o modelo vencedor. Com ela vinha um pacote de valores universais: ciência, direitos humanos, secularismo, tolerância, igualdade. Com a internet nascente, as divergências se resolveriam pela abundância da informação. O único espaço para discussão seria a fronteira da ciência, domínio de especialistas, a quem caberia cada vez mais o governo do mundo. Isso era não apenas justo e eficiente, como inevitável.

Hoje o quadro se inverteu. Vivemos a desglobalização econômica, a corrosão democrática, a ascensão de conservadorismos e fundamentalismos, a emergência ambiental —embora nos impacte diretamente— tratada com ceticismo. A inteligência artificial ameaça o trabalho intelectual. E o custo de vida, a sobrecarga mental e a escassez de tempo empurram as taxas de fecundidade para os níveis mais baixos da história.

A revolta contra aquela ordem veio de dentro das próprias democracias. A liberdade de expressão somada à revolução na tecnologia de comunicação virou o velho mundo de cabeça para baixo. O sonho da conexão global nos levou à divisão interna. As redes sociais uniram pessoas por afinidades e as isolaram em bolhas. Em vez de um consenso iluminado por especialistas, tivemos a multiplicação de vozes e de verdades selecionadas sob medida para os interesses e identidades de cada um.

O otimismo que hoje se projeta nos anos 1990, no entanto, não necessariamente era sentido por todos. A ideia de progresso e valores universais era a ilusão criada por uma elite cultural que detinha o monopólio da voz. Para o meu eu adolescente, a promessa de uma vida de especialista dentro da engrenagem tecnocrática inspirava mais tédio e ansiedade do que esperança. Faltava algo. Um elemento fundamental da vida humana —e, mais especificamente, da política— tinha quase desaparecido: o conflito. Havia eficiência demais e significado de menos.

Nesse novo mundo, minha filha conseguirá ver valor em algo fora do apelo cada vez mais irresistível das telas? E mesmo se tiver interesses, terá emprego? Seus direitos como mulher estarão garantidos? Não sei dizer, e isso também traz uma boa dose de ansiedade, embora não de tédio. Sei que ela não poderá ser uma espectadora passiva do que virá; terá que lutar por seu espaço.

Não há o que lamentar. O mundo que minha filha encontrará é mais incerto e, por isso mesmo, mais aberto aos indivíduos. Capacidade de pensar com autonomia e criatividade para agir sem um caminho pré-traçado serão virtudes mais necessárias do que qualquer conteúdo específico. É isso que espero poder ensinar a ela.