segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Lauro Gonzalez, Breno Barlach e Mauricio de Almeida Prado - A moda do pobre empreendedor, FSP

 

Lauro Gonzalez, Breno Barlach e Mauricio de Almeida Prado

Respectivamente, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV e diretores do instituto de pesquisas Plano CDE

Virou moda falar em pobre de direitaempreendedor, conservador etc. A hipótese aventada em diversos artigos de opinião conecta a desilusão desse grupo com governos de esquerda, que não estariam atentos às preferências pelo empreendedorismo e por formas mais flexíveis de trabalho. Esse argumento foi usado como explicação para o sucesso da candidatura de Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo. Seu discurso, alinhado à teoria da prosperidade das igrejas evangélicas, soaria bem aos ouvidos de um estrato social que vive no "corre" diário, como autônomos, motoristas de aplicativos, entregadores etc.

De fato, muitos estudos mostram uma afinidade entre o ethos do trabalhador autônomo e políticas que preconizam a desconfiança de políticas públicas e colocam o Estado como entrave. Para esses trabalhadores, promessas de estabilidade ligadas ao regime celetista são vistas como obstáculos para oportunidades de aumento de renda.

Salão de beleza na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro - Leticia Moreira/Folhapress

Entretanto, no calor dos resultados eleitorais, análises apressadas ignoram os múltiplos perfis da população de baixa renda. Cria-se uma espécie de categoria analítica denominada "pobre" a qual se associa um bloco homogêneo de ideias, valores e preferências. Em um preconceito às avessas, a diversidade existente nas classes de renda mais elevada é ignorada quando se analisa essa população.

No tocante ao empreendedorismo, são claras as evidências de uma diversidade de perfis. Estudo de 2020 estimou que 23% dos empreendedores gostariam de ter um emprego formal. Ou seja, são empreendedores por necessidade. Outro estudo, mais recente, com jovens das classes CDE na escola pública, mostrou que apenas 18% tinham o empreendedorismo como objetivo profissional —os demais sonhavam com empregos formais. Estudo do Instituto Plano CDE em conjunto com o Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV sobre o uso de serviços financeiros por parte da população de baixa renda estimou a fração de empreendedores em torno de 20% dessa população.

O mesmo estudo mostrou a existência de múltiplos perfis atitudinais, com diferentes preferências por modos de trabalho. O mais comum destes perfis foi chamado de "conservador" (33% da população das classes C, D e E). O nome deriva não de preferências políticas, mas de uma predileção por segurança. São aqueles que temem se endividar, evitam o uso do cartão de crédito, controlam os gastos e tendem a preferir rendas estáveis.

Indo aos detalhes desse universo heterogêneo, é frequente uma variabilidade de perfis dentro do próprio domicílio. Isso porque muitas pessoas moram em domicílios com "famílias estendidas", nas quais as composições familiares são mais complexas e contemplam múltiplas fontes de renda. É o avô que recebe a aposentadoria convivendo com o casal, ela CLT e ele empreendedor. Mas ela também faz bicos de manicure aos finais de semana, assim como o jovem que mora com eles e trabalha na feira alguns dias da semana. Portanto, em domicílios assim, coexistem múltiplos perfis comportamentais, vínculos de trabalho e, possivelmente, visões de mundo.

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Vale dizer que os resultados dos estudos acima são condizentes com postulados da teoria econômica. Como destacou a ganhadora do Prêmio Nobel Esther Duflo, o empreendedorismo exige uma maior disposição para assumir riscos, sendo que o ser humano médio tende a exibir um grau de aversão ao risco elevado.

Em relação aos empreendedores por necessidade, outro Nobel, Amartya Sen, dizia que o bem-estar é alcançado pela liberdade de fazer o que se valoriza. Portanto, Sen diria que é possível aumentar o bem-estar real dessas pessoas através de outros tipos de vínculo de trabalho.

Em suma, a realidade do mundo do trabalho não só é diversa como apresenta uma dinâmica que dá os contornos das preferências por diferentes formas de trabalho. Muitas pessoas buscam flexibilidade e independência, enquanto outras preferem a segurança de um emprego formal. Compreender as nuances desse universo heterogêneo é essencial para aprimorar políticas públicas e modelos de negócio.

Por fim, talvez exista uma tendência de culpar os pobres em diversas situações. Durante a pandemia, jornalistas tarimbados não hesitaram em tacar pedra na Geni. Alguém escreveu que, ludibriado pelo pagamento do auxílio emergencial, o "rebanho de gente que precisa do governo para sobreviver, até para comer", cairia no colo de Bolsonaro. Não foi o que aconteceu...

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Comentários

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Caco De Paula

Há 13 horas

Falácias e má interpretação de texto os males do Brasil são. Precarização de relações trabalhistas e falta de empregos formais são desonestamente pintados como “desejo de empreender”. Sem empregos e direitos assegurados, o “empreendedorismo” é só uma miragem nas areias escaldantes da vil exploração. Na verdade, os explorados queriam mesmo é empregos dignos, como registra a pesquisa FGV Ibre (publicada pelo UOL): “Sete em cada dez trabalhadores brasileiros autônomos desejam carteira assinada”.

Cassio Vicinal

Ontem às 11h21

O artigo acerta ao reconhecer o empreendedorismo como opção viável para trabalhadores. Sobra ímpeto, o ser humano quer ser seu próprio patrão, basta subir o morro e ver acontecendo. Na prática, porém, exige capital, habilidades e suporte raramente acessíveis às classes mais baixas. Há de cuidar que não seja promessa ilusória de ascensão social que, ao fim, reforça precariedade e reduz direitos. Urge uma análise crítica das limitações do empreendedorismo como panaceia para desemprego e pobreza.

William Rachid

Ontem às 11h07

Interessante o artigo por trazer mais informações diferentes da ideia ,que começa a prevalecer, que o descontentamento de parte dos eleitores pela busca pelo empreendedorismo é menor e não explica, totalmente, o fenômeno eleitoral , do aparecimento de um " outsider" oportunista na política.

Bruno Boghossian - O Mauro Cid de Donald Trump sabe como seria um 2º mandato, FSP

 John McEntee chegou à Casa Branca em 2017 como o sujeito que carregava a pasta de Donald Trump. Tinha a confiança do presidente e uma mesa na antessala do Salão Oval. Era uma versão civil e turbinada de Mauro Cid, o notório ajudante de Jair Bolsonaro. Guardava segredos e seguia as ordens do chefe.

O auxiliar foi ganhando influência. Segundo a revista The Atlantic, McEntee fazia reuniões com advogados que trabalhavam para melar as eleições de 2020, coisa que alguns assessores se recusavam a fazer. Às vésperas da invasão do Capitólio, ele enviou ao gabinete do vice-presidente um documento que o incentivava a declarar a vitória de Trump —um tipo de minuta do golpe.

McEntee conhece um aspecto central dos planos de Trump para um segundo mandato em caso de vitória na terça-feira (5). Na reta final do primeiro governo, o assessor era o responsável por vigiar funcionários e expulsar dissidentes. Agora, ele integra o Projeto 2025, grupo que criou um pacote radical com a previsão de um expurgo na administração pública, para reduzir os limites aos poderes do presidente.

A sombra de Donald Trump é projetada numa bandeira dos EUA durante um comício em Wisconsin - Brendan McDermid/REUTERS

A plataforma de Trump tem como pressupostos uma guinada autoritária, a desfiguração de leis, a construção de um círculo de lealdade absoluta e a asfixia de agentes capazes de resistir a suas ideias. São todas ferramentas essenciais para planos de deportação em massa, perseguição de adversários e, eventualmente, o prolongamento de sua permanência no poder.

Em seu primeiro mandato, Trump enfrentou mais obstáculos internos do que gostaria. O secretário de Defesa recusou um pedido para atirar contra manifestantes, o secretário de Justiça abandonou a conspiração para reverter a derrota do republicano em 2020, e o vice-presidente ignorou pressões para roubar aquela eleição. Trump trabalha para evitar que isso se repita.

O ex-presidente não esconde seus desejos. Fala abertamente em eliminar o que chama de "Estado profundo", promete distorcer leis antigas para perseguir imigrantes e sugere usar a força do governo para punir seus rivais. Se vencer, provavelmente dirá que obteve o aval das urnas para governar como um autocrata.