terça-feira, 2 de julho de 2024

João Pereira Coutinho - Realidades e fantasias, FSP

 Havia um jogador de futebol português que era conhecido pelas suas frases deliciosamente ignaras. "Prognósticos só no fim do jogo", disse ele um dia, antes de o jogo começar.

A minha preferida, porém, é essa: "Estivemos à beira do abismo, mas conseguimos dar um passo em frente".

"Touché." É dele que me lembro quando assisto ao primeiro turno das legislativas na França. O país estava à beira do abismo, mas conseguiu dar um passo em frente. Como?

Votando, de forma majoritária, em dois partidos radicais —a Reunião Nacional e a Nova Frente Popular— cujos programas econômicos, se fossem implementados, levariam o país à ruína. Como explicar essa atração pelos extremos?

Sim, a história da França é pródiga nesses namoros. E estou longe de ser um fã de Emmanuel Macron.

PUBLICIDADE

Mas começo a pensar, olhando para a França, para a Europa, para os Estados Unidos, para o Ocidente, que há certo "desejo de morte" democrático que só Freud consegue explicar.

Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho
Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho - Divulgação

Ou, em alternativa a Freud, talvez Raymond Aron (1905- 1983), esse gigante intelectual do século 20 de quem leio a última lição no Collège de France, corria o ano de 1978.

O título é "Liberty and Equality" e foi recentemente publicado em inglês com prefácio —pobre— de Mark Lilla e posfácio —notável— de Pierre Manent.

No fim de longa e solitária carreira, Aron apresenta a defesa da democracia liberal e das três liberdades que a definem e que cabe ao Estado garantir.

As liberdades pessoais são as primeiras. A liberdade de vivermos sem temer pela nossa integridade física, a liberdade de movimento dentro do nosso país e para fora dele, a liberdade de escolher uma profissão, de professar uma fé, de exprimir uma opinião sem temermos a guilhotina.

As segundas são as liberdades políticas, presentes na hora de votar, de ser eleito, de protestar contra o poder instituído.

As terceiras são as liberdades sociais —"direitos sociais", para usar a expressão comum— que devem estar presentes na educação dos cidadãos, no tratamento das doenças, no auxílio à velhice.

Como escreve Aron, são liberdades reais, concretas, não meras abstrações ideológicas. Quem vive em democracias liberais já teve o prazer de as experimentar. Não são perfeitas?

Pois não. Mas o que é perfeito? Que regime, que sistema?

A Rússia de Putin, que fascina Marine Le Pen?

A Palestina do Hamas, que exerce o mesmo efeito sobre Jean-Luc Mélenchon?

Mesmo na sua imperfeição, essas liberdades fazem parte da gramática básica de qualquer democracia liberal e isso deve ser acarinhado como a raridade histórica e geográfica que é. Nunca a "pólis" foi tão livre como é hoje no Ocidente.

O problema, admite Raymond Aron, é que existe uma diferença entre a liberdade real e o sentimento que muitos têm dessa liberdade.

Fato: a desigualdade econômica, por exemplo, contribui para a experiência subjetiva de que não somos livres.

Mas existe também, em linguagem claramente freudiana, o que Aron designa como a preferência pelo "princípio do prazer": tudo aquilo que frustra os meus desejos é, por definição, opressivo e liberticida.

As liberdades de que Aron fala são sempre o produto de um equilíbrio e de um compromisso entre liberdades rivais. Não podendo ter tudo, temos apesar de tudo bastante.

Ou, adaptando a frase para o país de Macron, só é possível garantir o Estado de bem-estar social se os franceses adiarem a aposentadoria dos 62 para os 64 anos, por exemplo.

Para os "seres de desejo", qualquer compromisso é uma ameaça, que autoriza o repúdio e até a destruição do que foi historicamente conseguido.

Não é por acaso que a esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon e a direita radical de Marine Le Pen prometem reverter a idade de aposentadoria para os 62 anos. Quem paga? Mistério.

Assim está a França. Problemas? Vários. A insegurança, o custo de vida, o abandono dos "periféricos", até a insuportável arrogância de Macron.

Mas, como lembra a revista Economist, falamos ainda de um país onde o crescimento econômico está acima da zona do euro —e onde as taxas de pobreza estão abaixo. Nada que justifique a atração pelos extremos e o mundo iliberal que eles oferecem.

Exceto, claro, para quem não suporta a imperfeição da liberdade, sonhando com a perfeição da fantasia.

LINK PRESENTE: G

Cecilia Machado - O real e o fiscal, FSP

 

Plano Real foi um programa de estabilização desenhado para resolver décadas de inflação descontrolada no país. Antes dele, diversos outros planos foram tentados. Todos fracassaram.

Pela quantidade e frequência das tentativas, fica evidente que a hiperinflação era uma questão que precisava ser resolvida. Mas não se sabia muito bem como, e nem se as ações necessárias seriam viáveis politicamente.

O que então teria diferenciado o real de seus antecessores, fazendo com que apenas ele tivesse sucesso?

Venda de passagens no mês de estreia do real, em julho de 1994 - Toni Pires - 8.jul.1994/Folhapress

O Plano Real foi colocado de pé com base em dois importantes pilares. O primeiro estabeleceu uma reforma monetária criativa e inovadora: uma superindexação da economia através da criação de uma ‘quase’ moeda, a URV.

Em linhas gerais, é justamente a indexação que alimenta a inércia inflacionária através de frequentes reajustes de preços. Mas, no Plano Real, a URV servia apenas como unidade de conta. Ela tinha seu valor atualizado diariamente, mas não circulava.

Por quatro meses antes do real, a população conviveu com duas moedas: uma que perdia valor diariamente, e outra, que mantinha o seu valor estável. Neste período, diversos preços passaram a ser convertidos para URV, e em julho de 1994, quando 1 URV se converteu em R$ 1, todos os preços da economia passaram a ser denominados na nova moeda.

PUBLICIDADE

E, assim, como em um grande truque de mágica, o real entrou em cena, a URV e a superindexação foram abandonadas, e a inflação retrocedeu. Mas para o plano dar certo era preciso alguma coisa a mais, algo que atacasse a origem da hiperinflação.

No Plano Real, o diagnóstico era de que o processo inflacionário era causado pelo desequilíbrio das contas públicas. Desta forma, o controle da inflação pressupunha esforço político para cortar excessos de gastos que seriam posteriormente erodidos pela inflação ou financiados pelo imposto inflacionário.

O segundo pilar do plano buscou o equilíbrio das contas públicas e foi construído a partir do lançamento do Programa de Ação Imediata (PAI), em 1993. O PAI previa a redução dos orçamentos dos ministérios, a revisão dos repasses de recursos para estados e municípios, e ajustes nas estruturas dos bancos públicos, entre inúmeras outras ações.

Somando esforços, o Congresso ainda aprovou em fevereiro de 1994 uma emenda constitucional que permitia a desvinculação de algumas receitas do governo federal, garantindo um corte significativo no orçamento do próprio ano.

Além disso, os termos finais da renegociação da dívida externa brasileira reforçaram a confiança na solvência do estado, criando um ambiente positivo para mudanças.

Fica claro que, por trás do sucesso do real, havia um forte compromisso com disciplina fiscal, e a perspectiva de que o equilíbrio das contas públicas fosse não apenas mantido e como também ampliado nos anos seguintes.

Mas a história dos últimos 30 anos mostra que o equilíbrio fiscal permanece em constante questionamento, sendo por vezes ameaçado por períodos de enorme insensatez, por vezes resgatado em momentos de lucidez.

Pela métrica da dívida pública, houve pouco progresso. Entre 2013 e 2024, a dívida pública aumentou mais de 20 pontos percentuais, 5 dos quais apenas nos últimos dois anos.

Foi apenas a partir do controle da inflação que outros desafios sociais e econômicos puderam ser endereçados de forma mais efetiva. O real deixa como lição que equilíbrio fiscal é uma condição importante para o crescimento e desenvolvimento econômico do país, e que ele precisa ser preservado. Não há criatividade fiscal que perdure sem este entendimento.