terça-feira, 9 de abril de 2024

'Covid-19 não é uma doença sazonal e continua grave', diz epidemiologista do Instituto Pasteur, RFI FSP

 

Taíssa Stivanin
RFI

Desde o aparecimento do coronavírus em dezembro de 2019 até janeiro de 2024, a estimativa é que mais de 360 milhões de pessoas tenham contraído a doença, provocando, oficialmente, cerca de 7 milhões de mortes, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).

Mas, na realidade, dados mostram que a Covid matou cerca de 25 milhões de pessoas, isso sem contar os efeitos indiretos da epidemia. Entre eles, o aumento do número de casos de depressão, por exemplo, ou o impacto econômico gerado pelas medidas de lockdown e distanciamento social, no auge da crise.

Além disso, a probabilidade da emergência de um novo vírus dessa gravidade aumenta com as mudanças no meio ambiente, provocadas pelo aquecimento global. Neste contexto, a coordenação internacional e científica é essencial, ressalta Arnaud Fontanet, chefe da unidade de epidemiologia das doenças emergentes do Instituto Pasteur.

Uma pessoa fotografa a Torre Eiffel, em Paris, em 4 de novembro de 2020, durante lockdown na França
Uma pessoa fotografa a Torre Eiffel, em Paris, em 4 de novembro de 2020, durante lockdown na França - Ludovic Marin - 05.nov.2020/AFP

"Progredimos muito e em muitos aspectos. O planeta conheceu uma crise que não ocorria há muito tempo. Os pesquisadores se mobilizaram em todo o mundo e o avanço mais extraordinário foi a descoberta da vacina a base de RNA mensageiro, uma pesquisa que já existia, mas nunca tinha ido para a frente", disse o cientista em entrevista ao programa Priorité Santé, da RFI.

O especialista lembra também que o aparecimento de antivirais como Paxlovid, que reduz a gravidade dos sintomas e o risco de complicações, representou outro avanço. O medicamento é recomendado para pessoas com mais de 65 anos e outras patologias.

"É preciso consultar rapidamente, porque ele deve ser prescrito cinco dias após o início dos sintomas. Nesse caso, o risco de complicação diminui em cerca de 80%", ressalta. Ele lembra que a Covid não é uma doença benigna, e que, graças às vacinas e aos tratamentos, milhões de vidas foram salvas.

RAPIDEZ NA PROPAGAÇÃO

O que diferencia a Covid de outras epidemias no passado? A rapidez da propagação do SARS-CoV-2 foi sem dúvida um aspecto inédito, lembra Clotilde Biard, especialista em ecologia evolutiva da universidade Sorbonne e pesquisadora do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica da França).

Outros vírus, lembra, se espalham atualmente em silêncio, com potencial epidêmico similar ao do SARS-CoV-2. "Há novos vírus e doenças transmissíveis que estão surgindo, relacionadas à atividade humana e ao impacto dessa atividade nos ecossistemas", diz.

Os vírus respiratórios, ressalta, são mais monitorados pelos cientistas porque se propagam mais rapidamente e têm mais potencial epidêmico para "parar o mundo", como foi o caso do SARS-CoV-2.

RISCO HIPOTÉTICO

Para o especialista do Instituto Pasteur, após a Covid a comunidade científica compreendeu as graves consequências que uma pandemia poderia trazer para o planeta em pleno século 21.

Esse risco era, até então, hipotético, observa. "Para mim, antes da epidemia, esse era um exercício acadêmico: saber como lidar com o perfil hipotético de um vírus "vilão", que provavelmente nunca veria na minha vida", diz.

Mas, esse cenário se tornou real e obrigou a comunidade científica a se organizar melhor, ressalta o pesquisador do Instituto Pasteur. Ele lembra que os cientistas, as autoridades e os profissionais da saúde nos hospitais tiveram que enfrentar uma crise inédita.

DINAMARCA TEVE A MELHOR GESTÃO

Quatro anos depois, Arnaud Fontanet afirma que o país europeu que melhor gerenciou a epidemia foi a Dinamarca. O governo "fechou" todo o país antes que os hospitais ficassem lotados. Os dinamarqueses também fizeram uma campanha massiva de vacinação e só relaxaram as medidas de distanciamento com a chegada da variante ômicron, em 2021. Neste momento, a população já estava mais imunizada e preparada para lidar com o vírus.

O cientista francês reitera que a Covid continua sendo uma doença grave. "Não temos dados recentes, mas sabemos que em 2022 a Covid matou cerca de 40 mil pessoas, quatro vezes mais do que a gripe sazonal. Também não temos dados de 2023, mas o vírus continua muito presente e não se transformou ainda em um vírus totalmente sazonal. A estação tem uma influência, há um número maior de transmissões no inverno, mas ele se adapta e pode ser transmitido durante todo o ano", conclui Arnaud Fontanet.

Governo transfere gestão de dívidas do FGTS da Caixa para a Fazenda, FSP

 Bernardo Caram

BRASÍLIA | REUTERS

O governo está transferindo da Caixa Econômica Federal para o Ministério da Fazenda a gestão de débitos de empregadores com o FGTS em iniciativa que busca ampliar a recuperação dos recursos devidos a trabalhadores, mas que também terá efeito sobre investimentos, já que o dinheiro depositado nas contas do fundo é fonte de financiamento para obras.

Nos últimos anos, o fundo conseguiu reaver um volume crescente de recursos de devedores, mas o montante é insuficiente para compensar os novos débitos e a correção de valores já inscritos.

A dívida total de empregadores com o FGTS saltou de R$ 47,8 bilhões no início de 2020 -- em valor atualizado pela inflação -- para R$ 51,4 bilhões neste ano.

Prédio da Caixa Econômica Federa
Prédio da Caixa Econômica Federal: nos últimos anos, o fundo conseguiu reaver um volume crescente de recursos de devedores, mas o montante é insuficiente para compensar os novos débitos e a correção de valores já inscritos - Reuters

"A gente percebeu que se colocar o FGTS na mesma trilha da dívida ativa da União, a recuperação de recursos aumenta", disse o procurador João Grognet, responsável pela gestão da dívida ativa da União e do FGTS na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).

"Embora sejam de natureza diferente, as estratégias de arrecadação são iguais, a unificação facilita o fluxo de gestão e a arrecadação", acrescentou.

No início deste ano, a Fazenda retirou da Caixa a atribuição de fazer a cobrança de parte das dívidas do FGTS com seu time jurídico próprio. A tarefa agora está integralmente a cargo da PGFN, órgão que também cuida das cobranças e renegociações de dívidas tributárias com a União.

Até o final de 2024, o plano da pasta prevê a conclusão do processo com a transferência dos sistemas da dívida ativa do FGTS, hoje sob guarda da Caixa, para a PGFN. O processo é feito com apoio do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).

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Os serviços delegados à Caixa geravam uma remuneração do fundo para o banco público, e esses pagamentos deixam de ser feitos com a transferência de atribuições. Esse ponto, segundo Grognet, foi relevante nas discussões, mas a decisão se baseou na busca por melhores resultados, não tendo relação com pagamentos operacionais.

Procurada, a Caixa informou que com a implantação do FGTS Digital, novo sistema de arrecadação do fundo, os débitos gerados a partir março deste ano ficarão sob responsabilidade do Ministério do Trabalho e da PGFN, o que poderá aprimorar a fiscalização. O banco não fez comentários sobre a remuneração dos serviços.

O número de empregadores inscritos na dívida ativa do FGTS está hoje em cerca de 239 mil. O fundo tem recuperado débitos de cerca de 20 mil devedores por ano, mas o fluxo é compensado por novas dívidas inscritas.

Em relação aos valores, o volume de recursos recuperados tem aumentado, passando de R$ 530 milhões em 2021 para 615 milhões de reais em 2022 e 689 milhões de reais em 2023, com dados ajustados pela inflação.

Ao afirmar que a tendência é de continuidade da trajetória de ampliação da recuperação, Grognet destacou que 2025 vai registrar uma alta excepcional, porque o FGTS deve receber R$ 560 milhões de um único acordo, firmado entre a União e a massa falida da companhia aérea Varig.

O procurador afirmou que apesar de não colaborarem para o resultado primário do governo federal, os recursos recuperados têm efeito social ao serem devolvidos aos trabalhadores. Além disso, o dinheiro depositado no FGTS é direcionado a um fundo de investimento (FI-FGTS), que aplica nas áreas de habitação e infraestrutura.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Fernando Gabeira - Gênero e as batalhas da guerra cultural, FSP

 Política de gênero não pode ser a espinha dorsal de campanhas majoritárias, pois isso resultaria numa inevitável vitória da direita

Quando deputado, tratei, entre outras, das questões de gênero. Jamais imaginei, entretanto, que, anos depois, viessem a ser tema de uma guerra cultural planetária, que o movimento LGBT+ fosse classificado como terrorista na Rússia e que a extrema direita fosse fazer disso sua principal bandeira de luta.

Volto ao assunto nesta semana, provocado por dois episódios isolados: o embate da famosa escritora J.K. Rowling com a nova lei escocesa contra o discurso de ódio e a leitura do livro de Judith Butler “Quem tem medo do gênero?”.

A autora de “Harry Potter” desafiou a polícia do seu país a prendê-la, sob a nova lei, pois continuaria a chamar de homens as mulheres trans e fazia isso para proteger as que nasceram como mulheres e também as meninas de seu país.

A polícia da Escócia não aceitou o desafio, reconhecendo que Rowling estava amparada pelo direito a expressão. O incidente abriu, entretanto, uma importante discussão sobre a linha divisória entre o debate necessário e o próprio discurso do ódio, extremamente perigoso para a integridade física e até a vida de jovens trans.

A ideia geral é que não só escritoras famosas, mas todos têm direito de externar suas dúvidas sobre novas leis que protegem pessoas trans, abarcando questões que vão de competições esportivas, passando pelo uso de banheiros, até a situação nas cadeias.

No entanto as palavras têm consequências e, na maioria dos casos, o que a extrema direita propaga sobre os direitos de gênero é uma visão apocalíptica que os associam à pedofilia e ao sexo com animais. Esse é o tema de Judith Butler. Ela veio ao Brasil e foi classificada como papisa da política de gêneros. Foi confrontada com manifestações em que seu rosto era pintado de forma diabólica, os olhos vermelhos e no corpo um biquíni.

Butler percebe que a extrema direita usa uma expressão marxista para designar a questão: ideologia de gênero, baseada no clássico “A ideologia alemã”. Ela descreve o medo à política de gênero como uma situação fantasmagórica, uma espécie de sintaxe que utiliza diferentes elementos de linguagem para criar um mundo extremamente perigoso.

Na base desse fantasma, ela vê um desejo de voltar a uma idílica sociedade patriarcal, em que os homens mantêm seu papel tradicional. Usando a psicanálise para definir essa visão de mundo que tem em si um medo desproporcional, Butler fala de deslocamentos e condensações, no caso união de elementos desconexos como acontece nos sonhos.

Nesse ponto tenho uma ligeira discordância. Butler acha que o fantasma ameaçador da política de gênero desloca também alguns perigos reais, como o desastre ambiental e a incerteza sobre o futuro do trabalho. Creio que a extrema direita não tem medo do aquecimento global e o considera uma farsa, no máximo um exagero. Da mesma forma, a precariedade do trabalho é vista como um fator moderno que até amplia a liberdade de escolha.

Se pudesse dar um palpite na roupagem desse fantasma, incluiria o grande medo da castração. Pelo menos é o que depreendo em inúmeros discursos de Bolsonaro, não só contra a vacina, mas até no desejo de uma campanha nacional de higiene peniana, para evitar amputações. Poderia citar cada um desses momentos e reconheço que a sugestão é inadequada para analisar o universo feminino.

No caso das mulheres, a insegurança da desaparição do clássico papel masculino, o medo do que pode acontecer com a sexualidade dos filhos e das possibilidades de violência num contexto liberal, tudo isso pode influenciar o desenho do fantasma.

O importante é continuar refletindo e aprender algumas lições. Insultos de um lado, lacrações de outro não levam a lugar nenhum, exceto ao crescimento do ódio.

Outra coisa que acho ter aprendido ao longo destes anos é que política de gênero não pode ser a espinha dorsal de campanhas majoritárias, pois isso resultaria numa inevitável vitória da direita.