quinta-feira, 12 de outubro de 2023

ESTADÃO / INTERNACIONAL O horror do Hamas é uma lição a respeito do preço do populismo; leia a análise de Yuval Harari

 


Os israelenses ainda estão com dificuldades para entender o que acaba de nos atingir. Primeiro nós comparamos o atual desastre à Guerra do Yom Kippur, de 1973. Cinquenta anos atrás, os Exércitos do Egito e da Síria lançaram um ataque surpresa e infligiram a Israel uma série de derrotas militares, até que as Forças de Defesa de Israel se reagruparam, recuperaram a iniciativa e viraram a mesa.

Mas à medida que cada vez mais histórias e imagens horripilantes de massacres de comunidades emergem, nós vamos nos dando conta de que os acontecimentos do sábado recente não são de nenhuma maneira parecidos com a Guerra do Yom Kippur.

Em jornais, nas redes sociais e nos lares as pessoas estão traçando comparações com os momentos mais obscuros do povo judeu — da mesma forma que os Einsatzgruppen, as unidades nazistas de extermínio móvel, cercavam e assassinavam judeus durante o Holocausto e que o Império Russo assassinava judeus nos pogroms.

Pessoas exibem imagens das vítimas do ataque terrorista do Hamas em uma manifestação de apoio a Israel, em 11 de outubro de 2023
Pessoas exibem imagens das vítimas do ataque terrorista do Hamas em uma manifestação de apoio a Israel, em 11 de outubro de 2023  Foto: Martin Bernetti / AFP

Eu, pessoalmente, tenho parentes e amigos nos kibbutzim Be’eri e Kfar Aza — e ouvi muitas histórias horripilantes. O Hamas tomou controle total dessas duas comunidades por horas.

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Os terroristas foram de casa em casa, assassinando sistematicamente famílias inteiras, matando pais diante dos filhos e fazendo reféns, até bebês e avós. Sobreviventes apavorados trancaram-se dentro de armários e porões, telefonando para o Exército e a polícia em busca de uma ajuda que com frequência chegou tarde demais.

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Meu tio, de 99 anos, e sua mulher, de 89, são membros da comunidade de Be’eri. Todo contato com eles foi cortado pouco após o Hamas tomar o kibbutz. Eles se esconderam em sua casa por horas, enquanto dezenas de terroristas destruíam e assassinavam. Eu fui informado de que eles sobreviveram. E conheço muita gente que acaba de receber a pior notícia de suas vidas.

Minha tia e meu tio são dois judeus durões — nascidos no Leste Europeu nos anos do entreguerras, eles já perderam um mundo no Holocausto. Nós crescemos com histórias a respeito de judeus indefesos escondendo-se de nazistas em armários e porões sem ninguém acudir em sua ajuda. O Estado de Israel foi fundado para garantir que isso jamais se repetisse.

Então, como isso foi acontecer? Como o Estado de Israel fracassou nessa sua missão?

Em um nível, os israelenses estão pagando o preço por anos de soberba, durante os quais nossos governos e muitos israelenses comuns sentiram que nós éramos muito mais fortes que os palestinos, que nós poderíamos simplesmente ignorá-los. Há muito o que criticar a respeito da maneira que Israel abandonou a tentativa de fazer paz com os palestinos e mantém há décadas milhões de palestinos sob ocupação.

Mas isso não justifica as atrocidades cometidas pelo Hamas, que de qualquer forma nunca contemplou nenhuma possibilidade de algum tratado de paz com Israel e fez tudo o que pôde para sabotar o processo de paz de Oslo. Qualquer um que queira a paz deve condenar e impor sanções contra o Hamas e exigir a libertação imediata de todos os reféns e o desarmamento completo do grupo.

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Além disso, independentemente de quanta culpa seja possível atribuir a Israel, isso não explica a disfunção do Estado. A história não é uma anedota com lições de moral.

A explicação real para a disfunção de Israel é o populismo, não alguma suposta imoralidade. Por muitos anos, o país tem sido governado por um homem-forte populista, Binyamin Netanyahu, que é um gênio das relações públicas mas um primeiro-ministro incompetente.

Ele deu preferência repetidamente aos seus interesses pessoais em detrimento do interesse nacional e construiu sua carreira dividindo a nação e fazendo-a voltar-se contra si mesma. Ele nomeou pessoas para ocupar posições importantes com base mais em lealdade do que em qualificação, assumiu o crédito por todos os sucessos mas nunca admitiu responsabilidade por fracassos e pareceu dar pouca importância tanto em falar quanto em escutar a verdade.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, participa da reunião semanal do gabinete do primeiro-ministro em Jerusalém, quarta-feira, 27 de setembro de 2023.
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, participa da reunião semanal do gabinete do primeiro-ministro em Jerusalém, quarta-feira, 27 de setembro de 2023.  Foto: Abir Sultan / AP

A atual coalizão de governo de Netanyahu é de longe a pior. É uma aliança entre fanáticos messiânicos e oportunistas desavergonhados que ignoraram os muitos problemas de Israel — incluindo a situação de segurança em deterioração — e colocaram foco, em vez disso, em concentrar poderes ilimitados para si mesmos. Na busca deste objetivo, eles adotaram políticas extremamente polarizadoras, disseminaram teorias conspiratórias ultrajantes a respeito de instituições de Estado que se opõem às suas políticas e rotularam elites do país como traidores a serviço do “Estado profundo”.

O governo foi alertado repetidamente por suas próprias forças de segurança e numerosos especialistas que suas políticas estavam colocando Israel em perigo e erodindo a dissuasão israelense em um momento de crescentes ameaças externas.

Quando o chefe do Estado-Maior israelense solicitou uma reunião com Netanyahu para alertá-lo a respeito das implicações em segurança das políticas do governo, o primeiro-ministro recusou-se a recebê-lo. Quando o ministro da Defesa, Yoav Gallant, não obstante, levantou o alarme, Netanyahu o demitiu. Mas o premiê foi então forçado a restituí-lo no cargo, em razão da indignação pública. Comportamentos desse tipo ao longo de muitos anos possibilitaram à calamidade se abater sobre Israel.

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Não importa o que alguém possa pensar a respeito de Israel e do conflito israelo-palestino, a maneira que o populismo corroeu o Estado de Israel deveria servir de alerta para outras democracias de todo o mundo.

Israel ainda pode se salvar da catástrofe. O país ainda conta com uma vantagem militar decisiva sobre o Hamas e seus muitos outros inimigos. A longa memória do sofrimento judaico está agora galvanizando a nação.

As IDF e outros organismos de Estado estão se recuperando de seu choque inicial. A sociedade civil está se mobilizando como nunca, preenchendo muitas lacunas deixadas pela disfunção governamental. Os cidadãos estão formando longas filas para doar sangue, recebendo em suas casas refugiados das zonas de guerra e doando comida, roupas e outros itens básicos.

Neste momento de necessidade, nós também conclamamos nossos amigos em todo mundo a ficar do nosso lado. Há muito o que criticar a respeito do comportamento de Israel no passado.

O passado não pode ser mudado, mas uma vez que a vitória sobre o Hamas esteja assegurada, os israelenses não apenas acertarão as contas com o atual governo, mas também abandonarão conspirações populistas e fantasias messiânicas — e empreenderão um esforço verdadeiro para realizar os ideais fundadores de Israel, de ser uma democracia por dentro e pacífica no exterior. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*Yuval Noah Harari é autor de “Sapiens,” “Homo Deus” e “Unstoppable Us” e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.

Elon Musk não tem caráter para controlar uma plataforma social, Lucia Guimarães, FSP

 Nesta semana ficou claro que Elon Musk não tem caráter ou estabilidade mental para pilotar uma plataforma como o Twitter, que ele rebatizou de X.

Assusta imaginar o que teria ocorrido nas semanas seguintes à invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, se o sociopata nascido na África do Sul já estivesse à frente da empresa. O consenso de solidariedade popular em relação aos ucranianos —contrariado por alguns dinossauros em Brasília— que deu suporte a governos para socorrer o país invadido poderia ter sido erodido pelo pornográfico espetáculo de desinformação e antissemitismo a que assistimos nos últimos dias.

Elon Musk durante conferência Viva Technology dedicada à inovação e startups em Paris, na França - Gonzalo Fuentes - 16.jun.23/Reuters

Sob risco de acomodar psicobobagens, é difícil não destacar como a masculinidade deformada na infância e adolescência age para destruir a ordem internacional ao adquirir poder planetário. DonaldVladimirKim, a lista é longa.

nova biografia de Musk descreve como ele apanhava de "bullies" e foi humilhado pelo pai até sair de casa, na capital sul-africana, Pretória, para o Canadá. Um documentário sobre o bilionário que estreou nesta terça-feira (10) na TV americana também ajuda a explicar seu comportamento repulsivo.

Profundamente tímido, rejeitado até a adolescência, Musk não se satisfez em conquistar o mundo com sua figura de empresário brilhante e inovador. Contra os apelos de parentes e amigos, pagou um preço ridiculamente alto pelo Twitter e se empenhou em desmontar o já frágil sistema de garantias de segurança digital da plataforma.

As consequências —difusão de mentiras sobre guerras e a pandemia de Covid e incitação à violência em nome da liberdade de expressão—, que já se mostravam graves em outubro, assim que ele assumiu o comando da plataforma, não podem mais ser toleradas.

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Lisa Goldman, uma jornalista veterana da cobertura do Oriente Médio analisou cinco dias de postagens sobre o conflito entre Israel e o Hamas e concluiu que nunca testemunhou um ambiente tão perigoso desde a fundação do Twitter, em 2006. Depois do início das ofensivas, a plataforma foi invadida por imagens de videogames descritas como ataques reais do grupo. Hostilidades e teorias da conspiração postadas na rede de Musk levam os alvos a mudar de endereço e colocam famílias em risco, no melhor estilo trumpista.

Nas palavras de uma interlocutora de mais de 20 anos, até para os padrões de puerilidade do Vale do Silício, Musk é extremo, um bobalhão juvenil cuja fisionomia se ilumina quando conta piadas de pum e de pênis.

Numa das mais citadas aberturas de um romance literário, "Anna Karenina", Tolstói escreveu que "todas as famílias felizes são iguais, mas as infelizes o são cada qual à sua maneira". Musk e outros fascistas que ele protege ou admira —ou ambos— mostra que todos os misóginos antissociais emergem de suas famílias infelizes igualmente destruidores.

Walter Isaacson, o autor que teve amplo acesso ao fundador da SpaceX para escrever uma biografia lançada em setembro, tem a palavra final no documentário: "Musk só vive sob uma regra: a de não se submeter a regras".

Ironicamente, este vândalo boçal –"ele realmente pensa que é o Iron Man," diz uma conhecida no filme– se apresenta como um messias demente, um Antônio Conselheiro da distopia digital, que repete ter comprado a plataforma para proteger o futuro da civilização.

A civilização é que precisa se proteger deste bárbaro.