quinta-feira, 12 de outubro de 2023

A comovente e perigosa caminhada dos peregrinos na Via Dutra, Mauro Calliari, FSP

 

Às vésperas do feriado de Nossa Senhora de Aparecida, os romeiros tomam a Via Dutra.

Em grupos ou em pares, em excursões organizadas ou sozinhos, o hábito de ir a pé até Aparecida está aumentando ano a ano. Em 2017, eram 10 mil. Em 2023, serão 50 mil.

Eu passei de carro pela via Dutra na semana passada e vi centenas de romeiros andando no acostamento nos dois lados da rodovia. Muitas portam um cajado. A maioria usa chapéu e coletes com cores vivas para serem vistas.

Milhares de romeiros caminham todos os anos na Via Dutra rumo ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida
Milhares de romeiros caminham todos os anos na Via Dutra rumo ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida - Eduardo Knapp - 12.out.17/Folhapress

O que faz uma pessoa enfrentar o sol, a chuva, o cansaço, o barulho dos carros e o perigo real de um atropelamento?

A peregrinação cristã vem desde os primeiros séculos da nossa era e se afirmou na Idade Média como um ritual de purificação, de agradecimento por uma graça, de penitência por um crime ou uma prova de fé.

"O cansaço purifica, destrói o orgulho", diz o filósofo Frederic Gros sobre os peregrinos. Para ele, a peregrinação implica na perda da vaidade, pois o andarilho se despe de tudo o que é supérfluo e se concentra no ato mais básico do homem, andar.

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Caminhar nas estradas medievais era perigoso. O auto do livro "A History of Walking" ("Uma História de Caminhada"), Joseph Amato, estima que metade dos peregrinos era roubado ou assassinado em seus trajetos. Tão comum eram os crimes que a pessoa era obrigada a fazer um testamento antes de partir em peregrinação.

Companheiro, é nossa obrigação caminhar, sem nos demorarmos

canto do peregrino do Caminho de Santiago de Compostela

Espanha

Jerusalém e Roma eram os principais destinos até que Santiago de Compostela começou a atrair cada vez mais pessoas, num roteiro mais seguro e mais organizado, com paradas protegidas, cidades acolhedoras e um roteiro que valorizava tanto o destino como o próprio caminho.

Aliás, Paulo Coelho é um dos responsáveis pelo sucesso contemporâneo do caminho, desde a publicação de seu best-seller "O Diário de um Mago", de 1987, traduzido em 150 países.

Hoje, há outros grandes centros de peregrinação no mundo, como o circuito de 1.200 quilômetros na ilha de Shikoku, no Japão, que passa por 88 templos budistas, começando e terminando no mesmo lugar. A rota da Misericórdia é a mais longa, com seus 1.770 quilômetros entre Viena, na Áustria, e Cracóvia, na Polônia.

O caminho até Aparecida do Norte conta com o apoio de voluntários que organizam tendas com bebidas geladas e sanduíches, mas tem seus perigos. Neste ano, já houve seis atropelamentos e um homem morreu.

Existem outras alternativas sem tanto barulho e fumaça. A Rota da Luz sai de Mogi das Cruzes, o Caminho de Aparecida sai de Alfenas e o Caminho da Fé junta outros ramais a partir de Águas da Prata. A Secretaria de Turismo de São Paulo tem também a ideia de construir uma trilha ao longo do Rio Paraíba. Além de mais seguros, talvez tragam aos caminhantes cansados a chance de pensar mais profundamente em suas vidas e suas provações.

De qualquer modo, é comovente ver as pessoas num mundo tão cheio de estímulos como o nosso desligando-se por alguns dias da vida cotidiana e, principalmente, escolhendo os pés e o cansaço para buscarem as suas verdades.


Itamar Vieira Junior - Existe vida em Nova York, FSP

 

Mesmo para um brasileiro afetado pelo imperialismo cultural norte-americano, estar em Nova York é uma experiência impossível de esquecer. Reclamam da poluição sonora de São Paulo, Rio ou Salvador? Acreditem, Nova York é dez vezes mais ruidosa.

Todo o mundo conhece a sirene de uma ambulância, um carro de bombeiro ou uma viatura policial, mas aqui elas parecem estar no volume mais alto e passam em carreata, dia e noite, sem interrupção. Os canteiros de obras se multiplicam: o som das estacas de ferro e das britadeiras, das betoneiras e de outros veículos não identificáveis se juntam à barafunda sem fim que percorre as ruas apinhadas de carros e de pessoas de todos os lugares. Esta é a ruidosa sinfonia nova-iorquina.

Vista aérea de Manhattan - Angela Weiss - 24.jul.23/AFP

As ruas tremem com os vagões do metrô se deslocando de um lugar a outro, incessantemente. Esqueçam estações limpas e organizadas como a da Cinelândia, no Rio, ou a de Pinheiros, em São Paulo. O metrô de Nova York é antigo, eficiente, é verdade, mas sujo, com cheiro de óleo e máquina e habitado por ratos tão grandes e peludos —eu pude ver com meus próprios olhos—, que nos lembram que um dia essa cidade será dominada por eles.

Aliás, o lixo é parte da paisagem. Revirados, acondicionado em sacos, empilhados à noite para serem recolhidos durante a madrugada. As calçadas se tornam trincheiras, e depois não é difícil imaginar porque a expressão "montanha de lixo" não faz mais sentido por aqui. São "cordilheiras" inteiras, "cadeias de montanhas" que crescem na velocidade dessa era.

Em toda parte, um simples café é servido em grandes copos descartáveis de papel com tampas plásticas, cinta de papel para segurar o copo, bandeja de papel ou de plástico para poder transportar, hastes de plástico ou de madeira para mexer, saquinhos de açúcar e muitos guardanapos de papel para limpar a sujeira. Um único café se transmuta num pequeno saco quase cheio de lixo e esse rito sinaliza que o dia —e a produção de resíduos— está apenas começando.

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O horizonte é concreto e vidro, vidro e concreto, com formas e cores diferentes. Recorda-nos que os humanos exploram e ocupam até os espaços inabitáveis. Olhar para o céu em Nova York é olhar para os homens e seus feitos, mesmo que esses feitos sejam feios e a feiura revele, de maneira paradoxal, a face da beleza que é nossa humanidade. O azul ou o cinza do céu é ferido pelas lanças de ferro e cimento erguidas como bandeiras que demarcam a nossa existência sobre a terra.

A aparente hostilidade da cidade, da paisagem às pessoas, é interrompida pelas flores que crescem do improvável, pelas folhas que caem neste outono e pela chuva que deixa tudo mais caótico.

A desigualdade, tão aviltante quanto a desigualdade das nossas cidades, não chega a ser um muro a dividir as pessoas para impedi-las que caminhem lado a lado. Olhe para o seu lado no café e haverá alguém descalço e amarrotado segurando um copo igual ao que te serve, refletindo que somos, sim, partes do todo. Nos vagões do metrô todos os rostos do planeta se misturam, se sentam nos mesmos bancos e seguram as mesmas barras de ferro.

Nova York não vive apenas nos painéis eletrônicos da Broadway, nas lojas de luxo da Quinta Avenida ou nos restaurantes cinco estrelas que a classe rica de qualquer lugar se orgulha de poder frequentar. Nova York é um sorriso improvável que desponta na multidão que corre essa maratona capitalista fracassada.

A cidade é Mohammad, o motorista que veio de Bangladesh, e que une as mãos em reverência quando descobre que alguém escreve: "Love stories, sir?". É o atendente peruano que sente saudade de sua cidade, mas que me jura que é melhor viver aqui. É a comovente intimidade de um homem ajeitando o cabelo de outro homem. Aqui eles se sentem livres para amar, mas se estivessem em seus países é provável que pertencessem a lados opostos de uma guerra.

Nova York é a fúria de duas mulheres empurrando carrinhos de bebês no Harlem proferindo calões aos quatro cantos, sem que ninguém lhes diga que elas devem sufocar sua indignação.

Talvez a luz de uma manhã de outono seja a melhor definição para essa cidade. Ela se espraia tímida, única, uma lanterna iluminando o entulho, o escombro, de onde vai emergir algo que poderemos chamar de vida.


Ruy Castro - Pegar ou largar, FSP

 Desde há algum tempo, ao abrir o pacotinho do adoçante, a impressão é a de que ele está mais leve, talvez mais vazio. E a de que o café também está menos doce. Há algo errado, ou com o meu paladar ou com o adoçante. Como sei de gente com a mesma impressão, fico com a segunda hipótese. Um pacotinho pela metade nos obriga a usar dois pacotinhos, se quisermos manter o nível de açúcar no café. Donde, para o fabricante, 50% a menos em cada embalagem significarão um ganho de 100% na venda do produto.

Na 2ª Guerra, quando fomos anexados ao império Lux-Kolynos, as imagens nos anúncios induziam a um consumo muito maior do que o necessário. Para escovar os dentes, sugeria-se tanta pasta que mal cabia na escova. Idem quanto aos sabonetes: as banheiras transbordavam de espuma e, no chuveiro, o sujeito se ensaboava de tal forma que nem sua mãe o reconhecia. E, quando chegaram os xampus, fomos ensinados que o certo eram duas aplicações.

O custo de fazer a barba dobrou a cada mudança de formato das lâminas. O instrumento original, a navalha, podia durar uma vida inteira e até passar de pai para filho desde que se a amolasse de vez em quando. A gilete, que a substituiu, começou com uma honesta lâmina de dois fios, cortando dos dois lados. Um dia reduziram-na a uma lâmina de um só lado, o que a reduziu também à metade das barbas. Veio então a lâmina dupla, com o que continuamos a fazer metade das barbas, só que com o dobro de lâminas. Hoje temos o aparelho descartável, com uma lâmina quase cega válida para uma única barba —feita esta, joga-se fora o aparelho e se abre outro.

Um refrigerante-família equivale à venda de três ou quatro garrafinhas de uma vez. Os potes de sorvete encolhem, mas o preço se mantém estável. E, quando a farmácia nos oferece um desconto, você vai pagar a metade do dobro do que o remédio deve custar.

Mas é pegar ou largar, não?

Parte de um anúncio de dentifrício numa revista O Cruzeiro, de 1952 --- Reprodução
Parte de um anúncio de dentifrício numa revista O Cruzeiro, de 1952 - Reprodução