quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Fernando Sabino, 100, ergueu sua literatura popular da crônica, Alvaro Costa e silva FSP

 


RIO DE JANEIRO

A história é manjada. Mas incontornável quando o assunto é Fernando Sabino, cujo centenário se completa nesta quinta, dia 12. O próprio escritor a contou em detalhes inúmeras vezes, falando com naturalidade, mas no fundo evidenciando seu incômodo.

Na tradição mineira de conversar fiado a sério, Sabino recebeu um telefonema de João Guimarães Rosa, que logo bisbilhotou: "Que é que você está fazendo?". Ao ouvir a resposta de que o amigo e colega de ofício estava tentando transformar um conto em peça de teatro, advertiu com "ar blandicioso": "Não faça biscoitos, faça pirâmides...".

O escritor mineiro Fernando Sabino - Paulo Cerciari/Folhapress

Ao entender o sentido lógico da metáfora —uma pirâmide é eterna, um biscoito, efêmero—, Sabino se sentiu não só incomodado como esmagado em suas pretensões de autor. Lembrou-se dos críticos impiedosos que praticamente o expulsavam da literatura, afirmando que ele era o inventor de um gênero composto de pequenos escritos sem qualquer dimensão literária. Ou seja: crônicas.

Sabino nunca foi o inventor da crônica. Nem poderia. Na língua portuguesa, o gênero vem se desenvolvendo desde os relatos sobre glórias e desastres da conquista marítima, com Diogo do Couto, passa por Machado de Assis e João do Rio e chega ao ponto alto de lirismo, invenção e coloquialidade com Rubem Braga e Paulo Mendes Campos.

Colaborando para jornais e revistas de todo o país desde a década de 1940, Sabino fez da crônica um instrumento para se comunicar mais diretamente com os leitores e se estabelecer como escritor profissional.

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Algumas delas –em especial duas que estão entre as mais famosas, "O Homem Nu" e "A Última Crônica" – fogem ao formato; são tecnicamente contos, escritos sem qualquer literatice, com aquela simplicidade que custa muito para se conseguir. O estilo de Sabino, limpo e musical, vale a emulação.

No entanto, a frase de Guimarães Rosa —que ergueu uma pirâmide de Quéops, o "Grande Sertão: Veredas" – não lhe saiu da cabeça.

Para desassossego, elaborou uma lista de classificação: tudo bem que Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Victor Hugo, Dickens, Melville, Pedro Nava eram piramidais. Em compensação, Tchékhov, Montaigne, Kafka, Poe, Twain, Borges e Machado eram confeiteiros de mão cheia. É um sofisma, mas bem bolado.

A provocação rosiana está ligada a outro momento inevitável da trajetória de Sabino, a publicação, em 1956, do autobiográfico "O Encontro Marcado", livro que "corre", na definição de Paulo Mendes Campos. Com apenas uma palavra, explica o prazer da leitura, a estima crítica e o alcance de circulação entre o público.

Em termos de Brasil, foi uma façanha: mais de 500 mil exemplares vendidos, mais de cem edições (a mais recente sai agora pela editora Record, comemorando a data redonda de nascimento do autor). Em época de maior difusão no currículo básico de ensino, chegou a ter duas reimpressões por ano. Hoje, ao lado da troca de correspondências com Clarice Lispector, continua a ser a obra mais falada de Sabino, sobretudo pelos jovens.

O enorme sucesso de "O Encontro Marcado" bloqueou o Sabino romancista? O escritor Lúcio Cardoso tinha certeza de que a maldição do segundo romance —conseguir fazer algo tão perfeito quanto o primeiro— seria longa: "Ah, que ótimo! Vamos ficar livres de Fernando Sabino por mais 30 anos".

Cardoso quase acertou na previsão maledicente. O segundo romance, "O Grande Mentecapto", só viria 23 anos depois. Foi a terceira mulher do escritor, Lygia Marina, quem achou numa limpeza de gavetas os originais batidos a máquina de uma obra interrompida mais de três décadas antes. Em apenas 18 dias, as 40 folhas amareladas se transformaram em 250 estalando de novas.

Nelas, conta-se a história picaresca de Geraldo Viramundo, um vagabundo das estradas de Minas Gerais com insights de Dom Quixote, Lazarillo de Tormes, Pantagruel, Carlitos e até de Vinicius de Moraes.

Publicado em 1979, "O Grande Mentecapto" foi a divertida resposta às angústias da entressafra. Durante o jejum romanesco, o escritor experimentou outras áreas. Fundou duas editoras com Rubem Braga: a Editora do Autor, especializada em crônicas, e a Sabiá, que lançou entre nós Gabriel García Márquez e Manuel Puig.

Associado ao cineasta David Neves, criou a Bem-te-Vi Filmes, que produziu uma série de documentários sobre escritores brasileiros: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Erico Verissimo.

Escreveu para o Jornal do Brasil perfis de dar inveja a Gay Talese, mais tarde reunidos em dois volumes intitulados "Gente" —que deveriam ser adotados em escolas de jornalismo.

Foi cancelado, antes que a expressão existisse, ao publicar em 1991 o livro "Zélia, uma Paixão", em que a narra o envolvimento amoroso, na base do bolero, entre a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, da Economia, e o ex-ministro Bernardo Cabral, da Justiça, ambos do governo Collor.

Àquela altura, ele já se considerava membro de uma sociedade em extinção: um homem de letras. Dedicou-se a preparar sua "obra póstuma antecipada", dando à luz, entre outros livros, "Os Movimentos Simulados", romance iniciado em 1946.

Ao morrer de câncer em 2004, na véspera de completar 81 anos, tinha pronto o epitáfio que se lê na lápide do seu túmulo: "Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino".

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Bolsonaro terá de pagar, Ruy Castro, FSP

 Confesso que estava com saudade de escrever sobre Bolsonaro. Dia sim, dia não, durante quatro anos, manchei esta coluna com o nome dele, mas por motivo justo. Era preciso alertar para o perigo sobre a democracia. Desde o primeiro minuto de governo, a estratégia de Bolsonaro era clara: costurar o Judiciário por dentro e pelas beiradas, corromper os militares e fomentar uma milícia popular armada para o caso de ele não se reeleger. Sem reeleição, era o golpe. Nos dois casos, viria a ditadura.

O próprio formato do golpe estava na cara: instaurar um clima de insurreição que obrigasse a uma definição dos generais —ou embarcavam na sua aventura ou teriam de se haver com as polícias, os oficiais mais jovens e os particulares armados. Tudo se cumpriu. Vieram as provocações ao STF, a tentativa de explosão no aeroporto de Brasília, as concentrações nas barbas dos quartéis e o 8/1 —está tudo nos celulares de Mauro Cid e demais golpistas. Mas, para desgraça de Bolsonaro, a maioria dos generais não embarcou e, diante disso, seus exércitos privados não saíram.

Nunca desperdicei tinta chamando Bolsonaro de burro, aloprado ou incompetente. Sabia que ele não era nada disso. Tudo o que fez, cada destrambelho, insulto ou grosseria, era planejado com método e objetivo: jogar fumaça sobre os atos de governo destinados à sua eternização.

A era Bolsonaro nos conscientizou sobre a diferença entre a democracia e a ditadura no quesito corrupção. A democracia é o estamos aí, o vai da valsa, que favorece a corrupção. Mas, na democracia, ela pode ser denunciada e combatida. A ditadura é o discurso rígido e moralista, mas a corrupção existe do mesmo jeito e não pode ser sequer denunciada.

Exceto pelas duas ditaduras que nos infligiram, de 1937-45 e 1964-85, nunca um presidente brasileiro atentou contra o Estado Democrático. Bolsonaro terá de pagar por isso.