quinta-feira, 4 de maio de 2023

Ruy Castro - Bolsonaro tem de pagar, FSP

 Não tem sido fácil a vida desta República. Sempre que desprevenida, tentam dar-lhe um tombo. É verdade que já começou, em 1889, com um golpe militar. Mas, ali, não havia outro jeito ---seria demais esperar que a Monarquia promovesse um plebiscito contra si mesma. Desde então, periodicamente, a República foi sacudida por sucessivos golpes vindos de militares insuflados por civis e vice-versa. Vide 1891, 92, 93, 94, 1904, 22, 24, 30, 32, 35, 37, 38, 45, 55, 61, 64, 68 e, agora, 2023, além de tentativas menores. De tédio não se morreu.

Alguns desses golpes inovaram na forma. Em 1937, Getulio Vargas deu um autogolpe, promovendo-se de presidente quase outorgado a ditador sem disfarce. Em 1961, Jânio Quadros inventou o golpe pelo suicídio: renunciou à Presidência, esperando voltar "nos braços do povo" e governar sem o Congresso. Mas o Congresso aceitou sua renúncia, o povo cruzou os braços e ele foi lamber sabão. E, em 1968, com o AI-5, os militares deram o golpe dentro do golpe, para asfixiar o mínimo de legalidade que restava.

Mas nenhum chegou perto do perigo que Bolsonaro representou para a democracia. Seu projeto era o de se eternizar no poder. O primeiro mandato seria para a firme costura dos órgãos internos (daí a dificuldade do novo governo para desfazer esses nós). No segundo, viria a camisa de força. Só que as urnas frustraram o seu plano e, no desespero, ele partiu para o supergolpe no 8/1 —que, pela audácia, terá de custar-lhe caro. Custará?

Getulio nunca pagou pelas torturas e mortes que praticou. Assim como, negando todas as evidências, não há militar pós-1964 que sequer reconheça a tortura em seus quartéis. É esse passado de leniência que gera os Bolsonaros.

Bolsonaro não tem apenas um passado pelo qual responder. Se não for neutralizado, nós é que teremos de responder pelo futuro.

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Este colunista vai ali e volta no dia 24.

O QUE A FOLHA PENSA - CLT, 80

 A baixa eficácia da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que acaba de completar 80 anos, pode ser constatada com clareza nas estatísticas do emprego no país.

De acordo com os dados mais recentes do IBGE, relativos ao primeiro trimestre deste ano, 38,2 milhões de brasileiros trabalham com carteira assinada no setor privado e fazem jus aos direitos que a legislação promete garantir.

Um contingente quase idêntico, de 38,1 milhões, está na informalidade. São empregados sem carteira, incluindo domésticos, autônomos e empregadores sem CNPJ. O restante da população ocupada é composto por funcionários do setor público (11,8 milhões) e autônomos e empregadores regularizados (que somam 9,7 milhões).

O percentual de informais no mercado, elevadíssimo, pouco tem se alterado ao longo dos anos. Desde 2016, quando começam os números da pesquisa nacional do IBGE, a cifra varia entre 38,3% e 40,9%, fora uma queda a 36,5% no período atípico da pandemia. A marca atual é de 39%.

A exclusão de tantos brasileiros demonstra que a CLT, no afã de regular as relações entre capital e trabalho até a minúcia, acaba por não se adequar à realidade nacional. Os resultados da reforma da legislação promovida em 2017 ainda são incipientes para avaliação.

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As novas regras tiveram os objetivos corretos de permitir maior flexibilidade nos contratos e fortalecer as negociações coletivas, garantidos direitos básicos. Já houve sucesso na redução dos contenciosos na Justiça Trabalhista, mas a geração de empregos formais é prejudicada pela escassez de vigor da atividade econômica.

Ao longo do ano passado, quando houve expressiva melhora do mercado de trabalho, a população ocupada aumentou de 95,7 milhões para 99,4 milhões, enquanto o número de informais teve pequena queda, de 38,9 milhões para 38,6 milhões. A continuidade dessa melhora, porém, é incerta, dada a desaceleração do PIB.

A octogenária CLT está decerto enraizada na cultura política do país. Sua primeira versão, em decreto-lei do regime autoritário de Getúlio Vargas, data de 1º de maio de 1943, num período de crescente intervenção do Estado nas relações econômicas e sociais —discute-se na academia o quanto ela teve de influência do fascismo.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem intenção explícita de interromper o processo de liberalização das normas, incluindo aí uma ofensiva contra o trabalho por meio de aplicativos.

Será um retrocesso retomar, por ideologia ou corporativismo, a obsoleta orientação controladora e paternalista que décadas atrás inspirou a hoje remendada CLT.

editoriais@grupofolha.com.br

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Nada é integralmente sustentável, Rodrigo Tavares, FSP

Nesta semana, o Fórum Econômico Mundial convocou uma entrevista coletiva para dizer várias coisas importantes sobre o futuro do trabalho. Baseado no estudo "O Futuro do Trabalho", declarou que especialistas em sustentabilidade serão os profissionais mais procurados no mercado global, depois de especialistas em inteligência artificial. Mas e se o mercado estiver objetivamente à procura de especialistas em "insustentabilidade", não em "sustentabilidade"?

Não é tecnicamente possível para um produto, uma empresa ou uma ação ser integralmente sustentável. A sustentabilidade é um conceito espaçoso, desde que foi cunhado nos anos 1980. Para uma empresa ser sustentável, devemos considerar não só a sua sustentabilidade corporativa interna (por exemplo: segurança laboral, igualdade de gênero, transparência fiscal) como os impactos positivos e negativos dos seus produtos e serviços (pegada carbônica, impactos nas comunidades locais, entre outros). Ou seja, deve contabilizar-se tanto o que uma empresa faz quanto como o faz.

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Fumaça em fábrica em São José dos Campos (SP) - Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress

Deve também ser levada em consideração toda a sua cadeia de valores e o conjunto das partes interessadas (stakeholders). Uma empresa é, por definição, um organismo que só sobrevive se estiver em permanente conexão com outras entidades. Uma célula-mãe origina células-filhas, sejam elas clientes, fornecedores ou empregados. Uma empresa isolada e esvaziada não é uma empresa, é um CNPJ.

Aplicando essa visão holística da sustentabilidade, abriremos a porta a contradições e limitações. A busca da totalidade do conceito leva à sua abolição.

Vejamos a descarbonização do planeta.

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Praticamente todos os países têm metas de transição energética e de desenvolvimento sustentável. O Brasil, por exemplo, tem como objetivo a neutralidade carbônica até 2050. Essas metas só serão atingidas com fortes investimentos em energias renováveis e eletrificação de automóveis. Mas a tecnologia subjacente a essa transformação depende da extração de minérios.

Segundo o Banco Mundial, será necessário extrair até 3 bilhões de toneladas de minerais e metais raros até 2050 —um crescimento de 500% sobre a capacidade extrativa atual— para atingirmos as metas do Acordo de Paris. Precisaremos da "perversa" indústria de mineração, conhecida assim por muitos ambientalistas, para construirmos uma sociedade ambientalmente sustentável.

De acordo com a Agência Internacional de Energia, um carro elétrico requer seis vezes mais insumos minerais do que um carro movido a combustíveis fósseis, enquanto um parque eólico offshore requer nove vezes mais minerais do que uma usina a gás de tamanho similar. Segundo a União Europeia, só para as baterias dos automóveis elétricos e para o armazenamento energético, a Europa necessitará de 18 vezes mais lítio até 2030 e de até 60 vezes mais até 2050.

Projeto piloto da mineradora Sigma para extração de lítio no Vale do Jequitinhonha - Eduardo Knapp - 6.dez.18/Folhapress

Sem lítio, níquel, cobalto, manganês e grafite não haveria fontes de energia limpa, incluindo energia geotérmica, solar, hidrelétrica e eólica. Ou veículos elétricos. A nossa capacidade coletiva de enfrentar as alterações climáticas depende de suprimentos confiáveis de minerais.

A China, com 70% da produção global e 85% da capacidade de processamento, lidera esse mercado. Outros países produtores, como Maláui, Angola, África do Sul ou República Democrática do Congo, também têm baixos índices de proteção dos direitos humanos.

Há alguns meses, a Tesla assinou contratos de US$ 5 bilhões com empresas indonésias para a compra de níquel. O primeiro-ministro de Portugal esteve no mês passado na Coreia do Sul, onde promoveu seu país como a oitava maior reserva de lítio do mundo (e a maior da Europa), com mais de 60 mil toneladas, apagando do cartão de visitas os protestos populares que tem enfrentado contra a exploração do mineral na região norte do país. A mineração pode ter um impacto destrutivo não apenas no meio ambiente como nas comunidades locais.

Protesto em Lisboa em 2019 contra minas de lítio no país - Rafael Marchante - 21.set.19/Reuters

Mas, mesmo que consigamos aplicar mecanismos de rastreabilidade dos materiais raros e, hipótese igualmente rara, impor práticas responsáveis a mineradores em mercados emergentes, iremos sempre encontrar algum tipo de incongruência no domínio da sustentabilidade –na produção, no processamento, no transporte, na utilização fabril, na utilização pelo consumidor final, no pós-uso desses produtos.

Na cadeia de valores, haverá sempre violações de indicadores ESG, por menores que sejam. A insustentabilidade é uma inevitabilidade, não uma exceção.

E será cada vez mais fácil encontrar quem nos aponte os pecados. Nos últimos dois anos, têm despontado centenas de startups que monitoram as ações das empresas e das suas cadeias de valores, usando internet das coisas, imagens de satélite e inteligência artificial. Medir a insustentabilidade será tão recorrente quanto medir a sustentabilidade de uma empresa.

Operário arruma baterias de lítio para veículos em fábrica da Xinwangda Electric Vehicle Battery Co, em Nanjing (China) - 12.mar.21/AFP

Para uma empresa, há certamente benefícios em perfilhar a sustentabilidade como objetivo final. Há uma lógica de positividade e de evolução inerente à comunicação, mobilizando funcionários e apaixonando clientes. O mercado está formatado dessa forma. Por isso temos normas técnicas, prêmios, rankings e certificações que premiam o aparente sucesso. Damos destaque a um conselho de administração que atingiu a igualdade de gênero, mas negligenciamos se a cadeia de suprimentos é composta por empresas sem preocupação pelo empoderamento feminino.

A impossibilidade de atingirmos essa meta final leva necessariamente a frustrações e a greenwashing. Um passo para a frente e dois passos para trás. No Brasil, a euforia em torno da sustentabilidade, visível no mercado há poucos anos, não produziu resultados consistentes em todo o ecossistema.

Medir sustentabilidade reflete não apenas uma visão fragmentada da realidade; é também tecnicamente difícil. Cada setor industrial tem as suas próprias práticas em sustentabilidade, cada empresa tem a sua própria cultura e interpretação de sustentabilidade e cada país tem o seu próprio quadro normativo e legal. Para uma empresa brasileira, diversidade de orientação sexual é um fator positivo. Em Uganda ou na Arábia Saudita dá prisão.

Em breve deixaremos de tentar medir a capacidade das empresas de atingir o apogeu da sustentabilidade. Adotaremos, como alternativa, uma lógica semelhante à das análises clínicas. Para cada indicador ESG, como se fossem eritrócitos ou leucócitos, conheceremos os valores de referências e o nosso histórico.

Hoje nenhum médico parabeniza um paciente por ter o mais alto valor de hemoglobina, tal como nós ainda valorizamos as empresas que têm os mais altos valores ESG. Nem há médicos que analisem apenas o valor da hemoglobina, negligenciando todos os outros elementos que contribuem para a saúde de uma pessoa.

Uma visão holística da sustentabilidade de uma empresa deverá incluir, por isso, as discrepâncias e as imperfeições concretas que acontecem enquanto implementamos os nossos planos de descarbonização. O objetivo de uma organização não será atingir o máximo da sustentabilidade, mas reduzir ao máximo os elementos de insustentabilidade.

Na Europa já se deu o primeiro passo. A partir do próximo mês, todas as instituições financeiras terão que declarar os seus Principais Impactos Adversos (PAIs, na sigla em inglês).

A sustentabilidade total é uma fantasia. A sustentabilidade realista, por outro lado, deverá ser o eixo central da nossa economia e sociedade.