"As agências reguladoras e o BC independente são tentativas de deep state no Brasil", escreveu Reinaldo Azevedo, citando Walfrido Warde (FSP, 10/2). A crítica aos bancos centrais autônomos circula tanto no discurso da esquerda latino-americana quanto no da direita nacionalista europeia. Mesmo assim, é um argumento –e merece, portanto, exame de mérito.
BCs independentes ou autônomos são a regra nas democracias avançadas (EUA, União Europeia, Reino Unido, Japão, Coreia do Sul). Diversos países em desenvolvimento adotaram o modelo (África do Sul, México, Colômbia, Chile, entre outros). Nenhum deles, contudo, é um ente acima da política.
Todos os BCs estão submetidos à soberania popular. Na hora da reunificação alemã, o poderoso Bundesbank alertou para o efeito inflacionário de converter o marco oriental segundo taxas de mercado. O governo de Helmut Kohl ignorou o alerta do Banco Central, convertendo-o pela paridade.
BCs autônomos não fazem o que querem: operam a política monetária para cumprir funções definidas em lei. Nos EUA, o Fed tenta conciliar baixa inflação e baixo desemprego. O Banco Central Europeu, como nosso BC, persegue metas de inflação. Por aqui, é o governo que fixa a meta de inflação, usando sua maioria no Conselho Monetário Nacional. Lula não precisa vociferar contra a meta de 3,25%: bastaria tê-la aumentado na quinta-feira.
A direção dos BCs responde aos representantes eleitos. No Brasil, quando não alcança a meta de inflação, deve justificar-se por meio de carta ao ministro da Fazenda. O presidente do BC tem mandato fixo e não coincidente com o do chefe de Estado –mas pode ser destituído por decisão do presidente da República avalizada pelo Senado.
A autonomia dos BCs destina-se a separar o ciclo de política monetária do ciclo eleitoral a fim de produzir taxas menores de inflação. Funciona, como atestam estudos econométricos da dinâmica dos preços em países em desenvolvimento (veja, entre outros: https://bit.ly/3YmvsdD ).
A Turquia ilustra o perigo de submeter a política monetária aos humores do governo de turno. No final de 2021, invertendo a teoria econômica, o presidente Erdogan, um populista autoritário, decidiu que a redução dos juros provocaria redução da inflação. O BC obedeceu, cortando juros seguidamente quando a inflação crepitava. No intervalo de um ano, a taxa de inflação saltou de 20% a 85%.
O trauma da hiperinflação desencadeou o processo de autonomia do nosso BC. A trajetória começou com o Plano Real (1994), passou pelo regime de metas de inflação (1999) e concluiu-se com a lei de 2021. O passo derradeiro foi uma reação à folia da gestão Tombini (2011-2016), que reduziu os juros para servir à vontade presidencial, colheu um repique inflacionário e acabou elevando os juros à estratosfera. Sob Dilma Rousseff, registrou-se a maior taxa de juros desde 2006. Nosso BC ganhou autonomia legal por uma escolha política da sociedade.
Deep State? A expressão ilumina aparatos típicos de regimes autoritários: as engrenagens ocultas da repressão. Em casos singulares, também identifica aparelhos estatais que se instalam nas democracias, mas abaixo do horizonte de visão dos cidadãos. Usá-la, porém, para desacreditar BCs autônomos nada ensina sobre os bancos centrais – mas esclarece muito sobre o sujeito do discurso.
A esquerda populista fala em deep state para acusar os BCs de servirem ao ganancioso mercado. A direita populista fala nisso para acusar os BCs de servirem aos demoníacos "globalistas". Uns e outros recorrem a teorias conspiratórias para exibir a democracia como farsa: a roupagem sob a qual opera o deep state. Democracia é só ditadura disfarçada –eis a mensagem de fundo.
O presidente (ou seja, o Povo) contra o Deep State (ou seja, a Elite). Lula tem extensa companhia quando adota essa linha de propaganda.