Por Flávia Tavares
A história é caprichosa. Enredou a política brasileira, num espaço de 90 anos, com destinos surpreendentemente conexos. Em 1932, a bióloga Bertha Lutz, filha do “pai da medicina tropical”, Adolfo Lutz, e da enfermeira Amy Fowler, foi uma das principais responsáveis pela inclusão do direito das mulheres de votar e serem votadas no novo Código Eleitoral getulista. Dez anos antes, ao conhecer as sufragistas europeias, Bertha iniciou, no Brasil, um forte movimento para que mulheres tivessem direitos políticos. Bertha era cientista, filha de médico com enfermeira. Era feminista. Nove décadas depois, o governo mais abertamente anticientífico e misógino que o país já teve depende delas. Depende dos votos das mulheres, as mais sensíveis aos efeitos nefastos da pandemia de Covid-19, para sobreviver — ou ganhar uma sobrevida.
As pesquisas de intenção de voto indicam, até aqui, que elas não estão muito dispostas a ajudar o presidente Jair Bolsonaro (PL). Na mais recente do Ipec, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aparece com 51% da preferência do eleitorado feminino; Bolsonaro tem 26%. No Datafolha, o placar é de 49% a 29%. Com cerca de 80% dos eleitores e eleitoras decididos sobre quem escolher para presidente, sobra pouco voto para conquistar. Mas o Datafolha mostra que entre as mulheres há 19% indecisas — entre os homens, são 9%. Há mais dois fatores que tornam o voto feminino tão relevante em 2022. O primeiro é matemático: mulheres são maioria. Dos 156,5 milhões de cidadãos que podem votar, 82,7 milhões são mulheres (52,6%) e 74 milhões são homens (47,3%). Isso não seria tão determinante não fosse o terceiro ponto. A forma como as mulheres votam vem se diferenciando da forma de os homens votarem. É essa diferença na lógica da escolha que pode, afinal, ser decisiva. O Meio conversou com as cientistas políticas Nara Pavão, professora da Universidade Federal de Pernambuco, e Lorena Barberia, da Universidade de São Paulo, para examinar em que condições a mulher brasileira vai às urnas no próximo domingo.
No Brasil, a distinção do voto feminino para o masculino não era, historicamente, tão marcada. Fica mais evidente a partir de 2018. Como o voto é secreto, o Tribunal Superior Eleitoral só faz o recorte geográfico do resultado das urnas. Mas naquele ano o Ibope (hoje Ipec) fez uma pesquisa boca de urna e estimou que Bolsonaro bateu Fernando Haddad entre as mulheres, por 52% a 48%. Foi apertado. Dentro da margem de erro. E o presidente recebeu mais votos de mulheres com mais dinheiro. Entre os homens, Bolsonaro ganhou de lavada: 61% a 39%. O que marca essa diferença é que, com Bolsonaro, o tema gênero entrou de forma definitiva na política brasileira. Nem com Dilma Rousseff eleita, em 2010 e 2014, e tendo Marina Silva como concorrente direta, o marcador “mulher” pesou tanto.
Bolsonaro coloca o gênero na pauta pelo pior viés possível. Por condicionar estupro a merecimento, por humilhar a própria filha. E isso considerando somente o plano das palavras.
Ainda assim, com #elenão e tudo, Bolsonaro saiu vencedor entre as mulheres. Como? Desde 2013, o assunto prevalente nas campanhas passou a ser a corrupção. E pesquisas indicam que mulheres não toleram o roubo. A corrupção mancha a cara de um sistema que é um homem branco. Na política, há o estereótipo de que mulheres são mais honestas, mais limpas, não “contaminadas” por terem vivenciado menos o ambiente político. Decorre disso um sexismo duplo: a ideia de que mulheres são ingênuas, não sabem jogar o jogo; e, quando descobertas em casos de corrupção, elas sofrem punições mais pesadas. Dilma saiu preservada da Lava Jato e jamais teve a pecha de corrupta. Mas o forte discurso antipetista e lavajatista posicionou Bolsonaro a usufruir da imagem de antipolítica, anti-sistema e não corrupto.
Eleito, Bolsonaro foi, além de corrupto, Bolsonaro. No ano passado, posicionou-se contra uma lei que promoveria equidade salarial entre homens e mulheres — lei que sancionou semana passada, no desespero de conquistar eleitoras. Na ânsia de evitar turismo LGBTQIA+ no Brasil, deixou claro que “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. Atacou jornalistas. Muitas jornalistas. Sempre que pôde. A opinião pública responde aos estímulos das elites econômicas e sociais. E elas mandaram todos os sinais de que a misoginia de Bolsonaro não tem mais lugar no Brasil. Com isso, a rejeição a Bolsonaro entre as mulheres bateu na casa dos 55%. A inabilidade do presidente com o público feminino é tamanha que ele delegou a tarefa de seduzir esse eleitorado à sua mulher, Michelle — cujo apelo tende a se limitar às mais religiosas. Mas ao colocá-la numa posição de “princesa” ao seu lado no último 7 de Setembro, tornou a própria mulher testemunha de milhares de homens exaltando sua funcionalidade peniana, num coro de “imbrochável”, instantes depois de ter discutido com ela. Isso dá a dimensão do quanto Bolsonaro entende de mulher.
Ideologicamente, a posição das eleitoras tende a caminhar mais à esquerda com o passar do tempo. A literatura da ciência política indica, nos clássicos das décadas de 1950 e 1960, que nos Estados Unidos e na Europa, embora a distinção entre votos de homens e mulheres fosse pequena, elas tendiam mais ao conservadorismo e ao apoio a partidos de centro-direita — inclusive via partidos cristãos. A partir da década de 1980, conforme as mulheres foram lançadas ao mercado de trabalho e tiveram contato com o sindicalismo, com as demandas sociais mais modernas, e com as universidades, essa tendência se inverteu. Isso não quer dizer, de forma alguma, que mulheres sejam necessariamente progressistas, especialmente no Brasil, país profundamente religioso. Mas há algumas pesquisas que mostram uma abertura maior delas a esse tipo de pauta. Uma delas foi feita pelo Datafolha e divulgada em junho deste ano. O levantamento mostrou que 49% dos brasileiros se identificam mais com a esquerda (eram 35% em 2014). E as mulheres se posicionam mais à esquerda do que os homens: 55% a 42%. A pesquisa levou em conta aspectos de valores e econômicos, e os de valores pesaram mais nessa guinada. No congresso mais recente da Associação Brasileira de Ciência Política, também foi apresentado um estudo nesse sentido, que coloca as mulheres um tantinho mais à esquerda, favoráveis aos direitos LGBTQIA+ e mais apegadas à democracia. A antítese do bolsonarismo.
O pior ato de Bolsonaro contra as mulheres brasileiras, no entanto, foi seu próprio governo. A trinca pandemia, fome e bala é devastadora.
As 686 mil mortes por Covid-19 afetam democraticamente a todos que ainda têm senso de humanidade. Mas há muitos sinais de que as mulheres ficaram bem mais vulneráveis aos efeitos da pandemia. Cultural, histórica e emocionalmente ocupando o papel de cuidadoras na sociedade, 50% das mulheres passaram a ser responsáveis pelos cuidados de alguém nesse período. Elas responderam por 72% das vagas assalariadas fechadas no primeiro ano da crise sanitária. Hoje, a taxa de desemprego entre mulheres é 54% maior que a de homens. Imagine aí que há uma estimativa de que são 11 milhões as mães solo que chefiam famílias e que, dessas, quase 60% estão abaixo da linha da pobreza. Agora, visualize aquela imagem de meninas e meninos tendo de dividir um ovo na merenda da escola. E lembre de Bolsonaro dizendo que a Covid-19 matou um “número insignificante” de crianças. Considere, ainda, que a política armamentista do atual governo levou a 1 milhão de armas nas ruas — armas que matam os filhos dessas mulheres, seja nas mãos de bandidos, seja na das polícias em larga medida bolsonaristas. Mesmo as mais conservadoras, que colocam a família como centro das preocupações, podem estar infelizes. Essa é a concretude de uma política misógina.
As mulheres vão analisar, em muitos aspectos, os mesmos pontos que os homens na hora de decidir em quem votar. Mas sob prismas femininos. Eles passam pelo cuidado. Pela ideia de que saúde e educação são tão importantes quanto o preço da gasolina e a economia. Pela noção de que segurança para sua família se dá com menos armas nas ruas. As mulheres estão mais indecisas e demoram mais para decidir porque sempre foram apartadas da política. Veem a política como ambiente hostil. E têm muitas frentes de que cuidar antes de se engajar na política de fato. Por isso, tendem a manifestar seu interesse eleitoral na reta final. Podem estar também intimidadas diante da crescente violência, embora tenham um histórico de maior comparecimento às urnas que os homens. Elas vão fazer, como fazem todos os eleitores, uma espécie de “média” do que é mais importante para elas neste momento. Sob o legado de Bertha Lutz, vão exercer seus direitos plenos e fortalecer a democracia.