sábado, 24 de setembro de 2022

JOSÉ GOLDEMBERG A agenda ambiental no próximo governo, FSP


José Goldemberg

Doutor em física e professor emérito da USP, é ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo (governo Alckmin, 2002-06) e ex-ministro do Meio Ambiente (governo Collor, 1991-92)

Marina Silva, ministra do Meio Ambiente de 2003 a 2008 no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), fez importante contribuição ao processo de escolha do próximo presidente da República ao apresentar o documento "Compromissos de resgate atualizado da Agenda Socioambiental brasileira perdida".

A ex-ministra tem credenciais inquestionáveis para formular propostas de governo porque sua gestão introduziu políticas e ações que levaram à redução do desmatamento da Amazônia de 27 mil km2 (2003) para 7.000 km2 (2010). Após esse período, o desflorestamento voltou a crescer —em especial nos últimos quatro anos.

Os resultados positivos se deram graças ao aumento, na população local, da percepção do risco de descumprir as leis ambientais, em virtude da forte e permanente presença do governo federal na região, por meio de um conjunto amplo e consistente de políticas públicas e ações de campo, já que a experiência mostrou que ações policiais de comando e controle têm efeito limitado. Ou seja, a presença do poder público conquistou o apoio dos locais, que deixaram de ver o desmatamento (principalmente o ilegal) como solução dos seus problemas econômicos.

Daí a necessidade de uma política ambiental transversal e integrada. O que exige "retomar e atualizar os Planos de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia e do Cerrado e estabelecer planos similares para os demais biomas brasileiros, integrando todos os ministérios relacionados com o tema, sob a coordenação política do mais alto nível de governo, para alcançar o desmatamento zero".

Para conter as emissões de carbono e o aquecimento global, defende-se a criação da Autoridade Nacional de Segurança Climática, responsável por estabelecer metas e verificar a implementação das ações que reduzam as emissões de gases de efeito estufa, o aumento da resiliência e a adaptação às mudanças climáticas. Isso acabaria com as disputas, que vemos nos últimos anos, entre os ministérios do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia.

Propõe-se ainda vincular toda a contratação de energia nova no Sistema Interligado Nacional (SIN) às metas de redução de emissões de gases de efeito estufa do setor elétrico —já que a política atual do Ministério de Minas e Energia tem levado a uma "carbonização" da matriz energética brasileira, o que poderia gerar recursos com créditos de carbono que viabilizariam outras ações.

A implementação, até 2025, do Cadastro Ambiental Rural e do Sistema Nacional de Rastreabilidade da Produção Agropecuária é abordada de forma realista.

Finalmente, o texto destaca "o compromisso de inserir a inadiável universalização do saneamento básico entre as prioridades máximas do governo, estabelecendo metas concretas e efetivas para um salto quantitativo e qualitativo na expansão do sistema, capaz de incluir os 35 milhões de brasileiros sem acesso à água tratada e os mais de acima de 100 milhões sem esgotamento sanitário".

O documento da ex-ministra merece, de fato, ser analisado maduramente por todos os candidatos ao Planalto. 

-Ameaças de Putin enfraquecem o tabu nuclear, FSP

 


Quão sérias são as ameaças nucleares de Putin? Mais que um blefe, vejo nas declarações do líder russo quase que um pedido desesperado para que lhe ofereçam uma saída negociada, pela qual ele possa decretar vitória para seu público interno, suspender as operações militares e retomar os negócios com o Ocidente. Alguns governantes europeus podem sentir-se tentados a aquiescer, diante da perspectiva de um inverno sem o gás russo para aquecer as casas.

Embora um cenário de guerra nuclear me pareça improvável, é forçoso reconhecer que o risco de utilização desse armamento é maior hoje do que um ano atrás. Desde Hiroshima e Nagasaki, o mundo não experimentou ataques com bombas atômicas. Em parte, isso se deveu aos cálculos racionais baseados em teoria dos jogos, que ensinam que, numa guerra nuclear, todos perdem. É a famosa destruição mútua assegurada, MAD, no acrônimo inglês.

Moradora de Hiroshima solta lanternas de papel no rio Motoyasu em memória aos mortos no ataque feito pelos EUA em 1945 - Philip Fong/AFP

Mas não foi só isso. A não utilização das bombas também se explica porque erguemos uma barreira psicológica, que pesquisadores batizaram de tabu nuclear. As pessoas, governantes inclusos, desenvolveram verdadeiro horror à ideia de holocausto atômico e transformaram o veto ao uso de armas nucleares numa regra não escrita da política internacional.

Esse tabu está agora enfraquecido. Putin fala abertamente em lançar bombas. Analistas especificam até o tipo. Seriam armas táticas que, ao contrário das estratégicas, são concebidas para uso em campo de batalha, não para arrasar cidades inteiras. Pelo menor poder destrutivo, não engendrariam retaliação maciça. A analogia é com as chamadas armas não letais. Elas são desenhadas para não matar (embora eventualmente o façam) e, por isso, acabam sendo usadas pelas polícias com liberalidade.

É aí que mora o perigo. Armas táticas pequenas não necessariamente deflagram a MAD. A proteção contra seu uso seria apenas o tabu nuclear, que é uma barreira mais frágil.