sexta-feira, 9 de setembro de 2022

E, agora, quem vai substituir Elizabeth 2ª e simbolizar solidez, temperança e devoção ao próximo?, Barbara Gancia, FSP

 Embora seja o símbolo mais escancarado do colonialismo e das atrocidades cometidas pelo Império Britânico, é difícil encontrar no mundo inteirinho quem, colonizado ou não, tenha alguma grande queixa contra a figura de Elizabeth Alexandra Mary Windsor, ou melhor, Sua Majestade, a rainha Elizabeth 2ª.

Sua popularidade é de tal ordem que a gente se pergunta como é que 232 anos depois de a civilização Ocidental ter derrubado a Bastilha e promovido o iluminismo globo afora nós ainda guardamos algum tipo de encantamento por uma senhorinha sentada num trono.

Mas o que é que Elizabeth, morta nesta quinta-feira (8), tem que tanto nos fascina?

A rainha Elizabeth 2ª sorri durante evento próximo a St. Austell, no Reino Unido
A rainha Elizabeth 2ª sorri durante evento próximo a St. Austell, no Reino Unido - Oli Scarff - 11.jun.21/AFP

Nos 96 anos que viveu, 70 dos quais passados sustentando o peso da Coroa sobre a cabeça, a soberana possuía um "track record" tão formidável que mesmo tendo sido uma das pessoas mais escrutinadas da história, ninguém até hoje conseguiu identificar nenhum passo em falso que tenha perpetrado.

Alguém dirá que ela não ter saído da Escócia para Buckingham para estar com seu povo quando a princesa Diana morreu foi um erro, mas essa é apenas uma opinião.

Há uma outra, a minha, que sustenta que quem estava errado, evidentemente, era cada um de seus 67,2 milhões de súditos, que tiveram uma reação excessivamente dramática à morte de uma princesa mimada que não só se casou com o herdeiro do trono britânico, mas ainda queria viver uma paixão tórrida.

Nem em Shakespeare nem em Walt Disney, ora bolas!

Naquele episódio, as pessoas reagiram de forma excessivamente melodramática e melíflua, mas, afinal, acabaram se dando conta de que a rainha só estava tentando manter um mínimo de decoro para que a nação não virasse antecipadamente o que o mundo se tornou hoje: um planeta de gente traumatizada com qualquer besteira e mimimi —no que Elizabeth estava coberta de razão, como viemos a constatar.

Mesmo sendo anacrônica e nem sempre surgindo em público com um sorriso nos lábios, a cada dia que passa a impressão que se tem é a de que Elizabeth ganha mais admiradores. Sim, a série "The Crown", da Netflix, talvez tenha ajudado muita gente a conhecer melhor essa figura singular.

Pense em acordar um dia e verificar que seu nome virou nome de estação de trem, de rua, de igreja, de navio, de escola, de conjunto habitacional e que, pasme, seu perfil está estampado em todas as cédulas de dinheiro e moedas, todos os selos e todos os carimbos do seu reino.

Agora imagine mais esta. Todos os soldados, enfermeiros, bombeiros, marinheiros, aviadores, servidores públicos, esportistas ou qualquer britânico que esteja oficialmente servindo à Grã-Bretanha estará a serviço de Sua Majestade, bem como qualquer agente secreto do MI6 ou da Scotland Yard ou até agentes fictícios como James Bond e Austin Powers. Quando achamos a rainha bacana é porque estamos admirando nela aquilo que falta na gente. Irônico, não?

Ela é tão distante. Mas consegue manter nessa dicotomia de superioridade e inferioridade uma certa proximidade. Todo o protocolo é feito para que ela se mantenha próxima do povo e, ao mesmo tempo, inatingível, o que significa manter uma distância respeitável e não ser aclamada feito pop star. A rainha não se veste para matar, não tenta seduzir ninguém. Ela é mais sem graça do que tofu, de propósito.

Nos tempos em que o fascismo pairava sobre a Europa como nuvem plúmbea, George Orwell, autor de "1984", defendia a monarquia constitucional como antídoto a populistas e ditadores: "O Parlamento tem todo o poder e nenhuma glória, e a monarquia tem toda a glória e nenhum poder".

E o rei Faruk (1920-1965), do Egito, costumava dizer que, no futuro, restariam apenas cinco rainhas: "As quatro do baralho e Elizabeth". Sua vivência não se compara com a de ninguém, em nenhuma circunstância. E a longevidade da soberana faz dela um tesouro do nosso tempo pelo simples fato de que ela conheceu pessoalmente todos os grandes protagonistas dos últimos cem anos da nossa história.

E, ainda assim, ninguém fora do círculo íntimo de sua família tem a menor ideia do que ela pensa.

Nenhum ser vivente, nesses anos todos, ouviu a rainha emitir uma opinião importante sobre qualquer assunto que não fosse o tempo, as corridas de cavalos ou o chá da tarde. A rainha não só é proibida de emitir opiniões políticas como não fala sobre emoções, afinal, é uma pessoa de muita temperança.

E talvez seja essa temperança que a torna tão atraente num mundo em que a falta de sinal no celular é capaz de causar pensamentos suicidas nos jovens com impulsos de publicar selfies a cada meia hora.

E para separá-la ainda mais dos comuns mortais, Elizabeth ainda é a "Defensora da Fé e Suprema Guardiã da Igreja da Inglaterra", título que, na equivalência com a Igreja Católica, a colocaria na condição de ocupante do trono de São Pedro. Ou seja, para a maioria dos britânicos, canadenses, neozelandeses, australianos e tonganeses, já que a Igreja Anglicana é a religião oficial na Grã-Bretanha e em algumas de suas ex-colônias, a rainha representa para eles o que o papa Francisco representa para nós.

Há um ato na longa cerimônia de coroação de um monarca britânico, que é executado de forma muito particular há séculos apenas entre o arcebispo da Cantuária e o soberano. A rainha, sabe-se, saiu dessa consagração muito emocionada, como se tivesse passado por uma epifania. Parece coisa da mitologia do rei Arthur, naquela parte em que Merlin lhe confia a missão de tirar Excalibur da pedra...

A gente pode achar que isso é coisa para alimentar as vendas dos suvenires do museu de cera da Madame Tussaud's, de Baker Street, mas é ponto pacífico que a rainha acredita piamente que sua missão na Terra lhe foi confiada pelo Divino. No pronunciamento de rádio que fez em comemoração de seus 21 anos, a então princesa Elizabeth deixou esse compromisso explícito: "Eu declaro diante de vós que minha vida, seja ela longa ou curta, será devotada ao serviço de nossa grande família imperial".

Hoje, 75 anos depois, sabemos que a rainha disse a verdade. Que sua dedicação ao serviço público foi integral e inabalável. Permanência, compromisso e estabilidade são valores admiráveis nesta era em que tudo é passageiro, em que ninguém abre mão de nada em nome de algo maior do que si próprio.

Ela se colocou em segundo lugar. E, agora, quem neste mundo vai simbolizar solidez, temperança e devoção ao próximo, eu não sei. Mark Zuckerberg e Jeff Bezos que não vão ser.