quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Se Bolsonaro existe, tudo é permitido, até marcar com ferro quem rouba R$ 30, FSP

 Falar em fascismo é pouco. Corremos o risco, todos os dias, de regredir aos tempos da escravidão. O caso é tão escabroso que hesito em descrevê-lo. Mas vamos em frente. Aconteceu em Salvador, lá onde tem o Pelourinho.

Um dono de loja, cujas preferências políticas não foram reveladas —mas não me deixam em dúvida—, perdeu a paciência com o funcionário William de Jesus, a quem acusou de furtar R$ 30. Pelo jeito, não era a primeira vez que isso acontecia. Com ajuda do gerente, esse "empresário", como se gosta de dizer, levou William e outro funcionário mal comportado aos fundos do estabelecimento. Ligou o celular, para gravar o que ia fazer.

Publicada nesta terça-feira, 6 de setembro de 2022
Publicada nesta terça-feira, 6 de setembro de 2022 - André Stefanini

Não, não iria matar os dois; iria aplicar-lhes um "corretivo". Seguiu-se uma sessão de pauladas nas palmas das mãos; conforme hábitos disciplinares imemoriais, a vítima foi obrigada a contar os golpes que recebia. Era pouco; com um ferro de passar, o "comerciante" —que, leio, professa a religião evangélica, não que, haha, isso signifique muito— resolveu marcar o dorso das mãos do empregado: inscrito a ferro, o número "171" queria indicar a desonestidade da vítima.

Há tempos, os moradores do bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, prenderam um menor infrator a um poste, pelo pescoço, usando uma trava de bicicleta. Daí para o linchamento, seria só um passo.
O que aconteceu em Salvador foi pior. Os torturadores gravaram tudo, orgulhando-se do que faziam. Por desonestos que fossem, os funcionários não representavam nenhuma ameaça à segurança física de quem passasse pelas ruas.

Um boletim de ocorrência, uma prisão em flagrante não eram coisas fora do alcance do dono da loja. Com um pouco de cinismo, eu diria até que os supostos infratores provavelmente apanhariam na delegacia, não havendo razão para organizar a sessão de tortura num local privado. E é nisso que tudo se encaixa.

Detalhe de mãos com marcas de queimadura em homem em Salvador; Polícia Civil e Ministério Público do Trabalho apuram denúncia - Reprodução/TV Bahia

Primeiro, elege-se um presidente que só se tornou um nome nacional na política ao fazer o elogio de um torturador. Depois, segue-se uma doutrina religiosa que abandona o que o cristianismo trouxe de mais bonito e civilizador ao mundo ocidental: a ideia de que "os mansos herdarão a terra"; os valores do amor, da bondade e da tolerância; o princípio de que somos todos, realmente, irmãos —que a fraternidade não se esgota nos que pertencem a uma mesma seita, a uma só igreja.

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Em terceiro lugar, defende-se a privatização de tudo: das armas, da Justiça, da floresta, da escola, da saúde, da vida humana. A mentalidade privatista se recusa a usar máscara cirúrgica para evitar que outras pessoas se contaminem. O fazendeiro pode queimar a mata que quiser, desde que seja sua. E, se não for —se estiver nas mãos de uma entidade coletiva como um povo indígena, por exemplo, ele acha que tem direito de ocupar.

Como na escravidão, ele faz com o funcionário o que bem entender. Não precisa mais recorrer à polícia: possui o corpo da vítima, para bater e marcar a ferro. Só não estuprou porque o rapaz não merecia.
Por fim, divulga-se o feito nas redes sociais. O narcisismo eletrônico nem sequer imagina que possa ser denunciado pelas barbaridades que diz ou que comete.

Por que seria? Se Bolsonaro existe, tudo é permitido. Para se eleger, o bolsonarismo usou como pretexto o combate à corrupção, iludindo quem queria se iludir. Hoje, a bandeira bolsonarista é outra: esses escravocratas, esses fanáticos, esses criminosos falam em "liberdade".

Como se o "comunismo" fosse uma ameaça real, e como se Lula e o PT, depois de anos e anos de governo moderado, em que estiveram a anos-luz de distância de qualquer ditadura chavista, agora resolvessem instaurar esse tipo de regime.

A "liberdade" do bolsonarismo se resume a um único projeto: ignorar a lei. É proibido torturar? É proibido destruir o ambiente? É proibido ameaçar de morte um jornalista, um político, um ministro do Supremo? Que absurdo! Onde está a nossa liberdade?

Defendemos o direito de torturar, de matar, destruir o ambiente, ameaçar de morte um jornalista, um político, um ministro do Supremo. É o neoliberalismo sem máscara, que se exacerba em escravidão. E que viva dom Pedro 1º. Leis penais? Não precisamos delas para punir quem furtou R$ 30. Leis trabalhistas? Que atentado à liberdade econômica! Como sobreviver sem a hiperexploração da mão de obra?

Direitos humanos? Mas como? O funcionário é meu e o trato como merece. Aliás, a frase é outra. O preto é meu, bato nele o quanto eu achar melhor.

Portugal precisa do Brasil para ser português?, Rodrigo Tavares, FSP

 Não há nenhum outro caso semelhante na História. Depois de ter sido o artífice da independência de uma ex-colônia, D. Pedro volta à metrópole para assumir a coroa do colonizador acrescentando ao título régio a expressão "defensor perpétuo do Brasil."

Nos últimos 200 anos, celebrados nesta quarta-feira (7), a relação entre os dois países independentes foi-se modelando, ao longo do tempo, de acordo com oscilantes interesses nacionais, circunstâncias inesperadas, visões ideológicas cíclicas e afeições pessoais entre alguns líderes.

Nada que seja incomum nas relações internacionais entre Estados. Mas, no caso do Brasil e Portugal, há um elemento imaterial que torna a relação incomparável e complexa: a consciência autoinduzida, por parte de Portugal, do seu excepcionalismo.

dom pedro está ao centro da imagem, com a espada em riste. dezenas de soldados o rodeiam em cavalos, seguindo o seu exemplo e celebrando a proclamação. ao fundo, vê-se uma fazenda e as serras do vale
Tela de Pedro Américo, finalizada em 1888, imagina a cena da proclamação da Independência do Brasil, com dom Pedro ao centro montado sobre um cavalo - Reprodução/ Livro "O Sequestro da Independência"

Como ensinaram os republicanos brasileiros, as identidades coletivas podem ser moldadas. E, ao longo de centenas de anos, a identidade portuguesa foi forjada em torno da ideia de que a vulnerabilidade do país (pobreza, pequenez territorial e isolamento geográfico) pode ser superada pela heroicidade do seu povo.

A função messiânica do país, como nação pluricontinental, miscegenadora e multirracial, é um elemento estruturante da sua identidade. Camões, António Vieira, Pessoa, Freyre celebraram-na sem meios-tons.

Tal como a celebram todos os governantes portugueses contemporâneos, de todos os matizes partidários, que enfatizam, em discursos públicos, o impulso português para o universalismo. São também recorrentes as obras públicas contemporâneas com nomes de navegantes que deram "novos mundos ao mundo".

A partir de 1974, com o fim do império colonial e o enxugamento territorial do país, Portugal apropriou-se da ideia de lusofonia para continuar a irradiar a sua influência pelo mundo. Criou a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), com sede em Lisboa e atualmente com nove países membros, incluindo o Brasil.

Portugal também é um país europeu e europeísta, mas na Europa voa sem sair do lugar; a sua influência é diretamente proporcional à sua vulnerabilidade. É apenas no campo da lusofonia que Portugal tem conseguido consumar a sua identidade universal. O que significa que Portugal, para ser português, precisa acreditar que exerce algum tipo de influência sobre o Brasil, e que tem o seu respeito.

Mas isso não acontece. O Brasil é um país superlativo que nunca reconheceu em Portugal uma prioridade longeva. E sempre que o Brasil mostra mais frieza, Portugal contorce-se, retorce-se, desconforta-se e azia-se enquanto sob o tom para falar "nos laços de amizade que unem dois povos irmãos."

Bolsonaro, Temer e Dilma mostraram muita indiferença por Portugal. As passagens pelo país foram poucas e fugidias. Como reagiu o atual presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa? Fazendo seis visitas ao Brasil em seis anos, um recorde que viola códigos diplomáticos de reciprocidade.

Marcelo, como é carinhosamente tratado pelos portugueses, nasceu no berço do universalismo português. Na década de 1960, o seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, foi nomeado governador-geral de Moçambique. Após a revolução dos Cravos, refugiou-se no Brasil.

O avô de Marcelo, António Joaquim, viveu em Angola, depois de também ter trabalhado no Rio de Janeiro. Para o presidente português, as capitais da lusofonia, de Díli a Luanda ou a Maputo, não são capítulos da história portuguesa, mas páginas no álbum de família. O Brasil é um assunto de Estado, mas também é uma memória pessoal.

Nestas semanas consensualizou-se em Portugal a ideia de que a presença do presidente nas celebrações dos 200 anos da independência do Brasil é uma inevitabilidade histórica. As relações são entre Estados e não governantes e o Brasil não se pode esgotar na pessoa de Bolsonaro, um líder consensualmente desdenhado pelos portugueses.

Mas seria a presença de Marcelo inevitável?

rei de Espanha participou dos 200 anos da independência da Colômbia (em 2010), do Chile (em 2010), da Argentina (em 2016) ou da Venezuela (em 2010-2011)? Não.

São inúmeros os exemplos em que chefes de estado de países com tradição colonial não participam deste tipo de cerimônias.

A presença de Marcelo no Brasil é um gesto retórico de um presidente que é particularmente sensível à importância de manter o Brasil dentro da esfera de influência. A sua sexta visita ao Brasil é mais importante para os portugueses do que para os brasileiros.

Mas está a relação entre Brasil e Portugal condenada a ser um rendilhado de insígnias, um permanente pretérito perfeito, um discurso panegírico?

À coluna, o ex-chanceler Celso Lafer (1992, 2001-2002) salienta que os dois países sempre conseguiram encontrar "convergências úteis", em torno de temas pontuais, principalmente quando há afinidade pessoal entre líderes luso-brasileiros.

FHC nutria muito apreço pelo premiê António Guterres e pelo presidente Jorge Sampaio, o que facilitou a intervenção de Portugal, na União Europeia, para que o Brasil não fosse prejudicado pelo surto da doença das "vacas loucas" em 2001-2002.

A boa relação entre Lula e o premiê José Sócrates ou entre os chanceleres Celso Amorim e Luis Amado e Celso Lafer e Jaime Gama são outros exemplos. Mas o Brasil é pragmático e transacional. É condescendente com a retórica universalista portuguesa apenas quando vê a possibilidade de extrair dividendos específicos.

E o futuro? Uma eventual vitória de Lula abrirá um campo de novas oportunidades. Se cumprido o programa eleitoral, a sua política externa será vigorosa. Enquanto Alckmin arrumará a casa interna a partir do Jaburu, Lula tentará arrumar o mundo a partir do Planalto.

Em declarações à coluna, o ex-ministro das relações exteriores de Portugal Luis Amado (2006-2011) reforçou que estamos atravessando uma "reconfiguração geopolítica de larga escala".

Enquanto o norte global obedece a uma lógica binária que opõe países democráticos a estados autocráticos, o sul global tem uma visão mais utilitarista e menos principiológica das relações internacionais.

Quando a expulsão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU foi a votos, em abril, 82 países do sul puxaram o freio, incluindo a Indonésia, Índia, México e China.

Estes países têm mostrado uma posição neutral no conflito Ucrânia-Rússia. Estimativas de bancos e consultorias europeias indicam que, em 2030, 7 das 10 maiores economias do mundo serão do sul global, incluindo as duas primeiras (China e Índia). As declarações públicas de Lula estão alinhadas com este novo contexto, facilitando a sua ascensão como líder do sul global. Hoje o trono está vazio.

Há aqui uma oportunidade para Portugal forjar com o Brasil de Lula uma aliança de futuro, servindo como um dos países do norte global que é capaz de construir pontes com o sul.

Se atualmente os dois hemisférios são o contraponto um do outro e estão envoltos por um manto de animosidade, Portugal e o Brasil podem serem interlocutores estratégicos numa missão que extravasa a relação bilateral.

Dando a Portugal acesso a novos espaços de influência no sul, o Brasil ajudaria, agora com outros contornos, os portugueses a envigorarem a sua idealização universalista e a perceberem que o ideário da lusofonia também tem limitações.

A língua portuguesa é um poderoso instrumento de unificação entre países, mas também é uma divisa que aparta povos. Portugal e o Brasil podem ser maiores do que o seu idioma comum.