Por Flávia Tavares
Heloisa Starling faz história como quem faz poesia. É difícil antever que uma entrevista sobre república e democracia vá tratar de amizade. De compaixão. Solidariedade. Mas é nesses afetos que Heloisa, essa “professorinha da província”, como ela se define, desemboca. No caminho, vai desenhando ideias belas — bebendo na fonte de Hannah Arendt, mas abrasileirando com Lupicínio Rodrigues — como a de que pensamento é vento que bagunça as coisas para que, em seu lugar, construa-se a liberdade.
Mas essa construção só é possível quando os “repúblicos” de uma república estão com coragem e disposição de ocupar os espaços públicos e imaginar um futuro juntos. “Na hora em que vamos pensar que brasileiros queremos ser, quais são as escolhas que vamos fazer, temos de ir pro debate público”, ela incentiva. Heloisa é professora de História na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutora em ciência política. É autora de Ser Republicano no Brasil Colônia e nessa obra explora o que ela chama de “tradição esquecida”. Para ela, ao fundar a República brasileira, os abolicionistas e os grupos mais compromissados com o país buscaram torná-la sinônimo de democracia. Não são sinônimos. Mas são complementares. E estamos num momento decisivo para resgatar os valores de ambas.
A historiadora vai pontuando sua descrição de como o republicanismo se degradou com o mineiríssimo “Repara”. Heloisa é também coautora, com Lilia Schwarz, de Brasil: Uma Biografia. E está lançando o livro Independência do Brasil — As mulheres que estavam lá. Confira os principais trechos da entrevista.
O que significa ser republicano hoje?
Para sermos republicanos, precisamos sair do nosso espaço individual, dos problemas pessoais, das relações imediatas para pensar como cidadãos. Isso significa que temos de ser capazes de ir para o espaço público conversar com os outros sobre o que é nosso, para definir aquilo que é o nosso bem comum. O bem comum é aquilo que vamos fazer juntos para o nosso bem. Ir para o espaço público significa ir para lugares em que possamos conversar uns com os outros sobre aquilo que diz respeito a todos nós. Então, a primeira coisa sobre ser republicano é como vamos conseguir deixar nosso mundo privado para nos interessar pelo outro, por aquele que mora na mesma comunidade. Ser republicano também é praticar alguns princípios, valores e afetos importantes.
Quais são os afetos republicanos?
São os que nos ensinam a sair do nosso mundinho e olhar para o conjunto de pessoas que ocupa o mesmo espaço. Um deles é a amizade, que é o momento em que eu aprendo a ouvir o outro, avaliar seu argumento e ser capaz de devolver esse argumento para ele. Fazer o juízo e devolver. Isso é fundamental para que se possa criar um debate público no Brasil. Na hora em que vamos pensar que brasileiros queremos ser, quais são as escolhas que vamos fazer, temos de ir pro debate público. A amizade nos ensina isso. O outro afeto importante é a compaixão. A ideia de que não me interessa quem é aquela pessoa que está sofrendo, eu sou capaz de me mobilizar, de ter empatia porque ela está sofrendo. E o terceiro afeto é a solidariedade, que é emprestar apoio a uma ideia. Um exemplo: não me interessa quem foi preso pelo crime de ideias. Interessa que vou ser solidária àquela pessoa, independente de eu conhecê-la. Como eu defendo o conjunto de direitos que as pessoas têm? Ser solidário tem a ver com isso. É por isso que na pandemia o ser solidário era tão importante.
Quando eu punha a máscara, estava sendo republicana. Porque estava defendendo a mim, claro, mas também o outro e não me interessava saber quem era esse outro.
A república nasce com base nesses afetos ou eles foram se desenvolvendo?
A república surge como uma forma de derrotar a tirania. Qualquer forma de tirania. Mas os repúblicos não nascem. Você constrói um cidadão. Desde a politeia grega temos de aprender como vamos para a cena pública e como vamos nos relacionar com os outros. Esses afetos vão ser cultivados. A Hannah Arendt tem uma discussão muito legal sobre a solidariedade, em que ela mostra a diferença para a fraternidade, que é apoiar apenas aqueles iguais a mim. Ela defende que temos de ser capazes de discutir com quem é diferente. Por isso, é preciso emprestar a ideia, apoiar os direitos, independentemente de quem está ali. Os afetos nos ensinam a praticar isso. Eles ajudam o cidadão a se formar, a sair de dentro da casca privada e ir pra cena pública, o que não é fácil. É preciso coragem para dar opinião. Novamente, na pandemia, lembra?, era preciso coragem pra fazer certas coisas. Os afetos nos ensinam a fazer esse trânsito. São formadores de um repúblico.
Essa coragem de estar num espaço público pelo bem comum está em desuso? Ou está representada no que se diz nas redes sociais?
Nas arcadas do Largo São Francisco, foi um momento importante para pensar o repúblico. Estávamos reunidos para, independente dos nossos interesses privados, discutir o que íamos fazer em comum para defender a democracia e dar um basta. A coragem de ir pra cena pública, essa coragem republicana não é eu botar em risco a minha vida, mas eu ser capaz de expor uma ideia em defesa da liberdade contra a tirania. Agora, todas as vezes que eu for a público defender a tirania isso não tem nada a ver com o repúblico. Essa distinção é importante porque senão vamos normalizar tudo. Outra coisa importante é que tem se misturando a ideia de dois espaços. Uma coisa é o espaço das redes sociais, onde eu digo o que o outro quer ouvir e de forma rasa. Isso não tem nada a ver com coragem. Eu estou ali protegido atrás de um pseudônimo ou algo assim. Repara. Não fui pra cena pública. Não estou me expondo e estou falando para a minha turma. Ir pra cena pública é ir para as arcadas, para os pilotis da PUC. Para os espaços onde podemos olhar uns pros outros e debater a liberdade.
As redes não seriam uma nova instância do espaço público?
Eu estou convencida de que não. O espaço público exige, demanda... Uma comparação que a Arendt iria me matar é com a sala de aula. Dei muita aula virtual na pandemia. Mas não via o olho do meu aluno. Ele estava escondido atrás de uma câmera. Na sala de aula, estamos juntos ali para fazer algo em comum. Como podemos pensar um futuro, um presente para esse país juntos? Isso exige que eu compareça. Por isso preciso ter coragem, sair do meu conforto, da minha casa, sem estar atrás das câmeras. Eu preciso ir, tomar essa decisão. Como vamos defender a liberdade? Garantir os direitos? Quando Thomas Jefferson estava escrevendo a declaração de independência americana, recebeu uma carta do John Adams alertando: “não escreve isso, não, Jefferson. Daqui a pouco as mulheres vão querer votar, o jovem de 16 anos vai querer dar palpite, não ponha tantos direitos”. Adams e Jefferson sabiam o mesmo que a gente sabe. Direitos, uma vez enunciados, não desaparecem. Mesmo que não sejam praticados. Então, ir pra cena pública significa retomar a discussão dos direitos. E os direitos não têm fim.
Mas as redes sociais não funcionam hoje um pouco como substitutas disso?
Funcionam como ilusão. As pessoas estão iludidas de que se faz política ali. As redes sociais funcionam como uma boa ferramenta de propaganda. Quando as pessoas começam a ir ao espaço público debater o bem comum de verdade, fazer a república sendo repúblicos, elas descobrem que é muito bom fazer isso. E nós podemos transformar vários espaços em espaço público. Não precisamos só ir pra praça. Na época da grande campanha pela redemocratização do Brasil, pensa na quantidade de formas de intervenção e de ação política que nós brasileiros fomos capazes de criar para que pudéssemos debater juntos. Veja, não acho que tenhamos que prescindir das redes sociais. O que não pode é confundir.
Temos que usar de todos os recursos para defender a liberdade e a democracia e ser contra a tirania. Pombo correio, sinal de fumaça, rede social, tudo. O que não podemos é achar que a internet é o lugar por excelência, porque não é. O lugar por excelência exige uma presença.
De que maneira o debate público é pilar da república?
Eu só vou conseguir entender os argumentos do outro nesse processo de debate, que é de descoberta. É aquela coisa de o cara discordar de você e você não entender como o cara foi ganhar aquele argumento, sabe? E aí você vai debater e isso faz com que você cresça, no sentido de ser capaz de emitir sua opinião. E o nosso mundo cresce. A nossa imaginação cresce. A Hanna Arendt, não conta para ninguém, mas ela fez um plágio de uma música do Lupicínio Rodrigues, que dizia “O pensamento parece uma coisa à toa/ Mas como é que a gente voa/ Quando começa a pensar?”. Arendt diz que o pensamento é um vento. Ele entra pela janela e desarruma o que está no lugar. Pensar junto é um jeito de a gente desarrumar e ter que arrumar de novo. Quando a gente consegue conversar e o outro te diz algo em que você nunca pensou, isso é o vento do pensamento desarrumando tudo. E ela diz que não é à toa que esse vento aciona a nossa imaginação. Porque na hora que nós tivermos que arrumar de novo nós temos que imaginar. Como é que vai ser? Nós nos tornamos muito melhores, até como pessoas, porque dotados de uma imaginação ativa, de uma capacidade de desarrumar o que está pra colocar ali a liberdade, pra colocar ali novos direitos, pra colocar ali a luta contra a tirania.
Mas isso exige que se chegue a um consenso. E as pessoas parecem não falar a mesma língua. Qual é a linguagem republicana e como ela tem mudado?
Olha, o que mudou é fácil de a gente ver. Estamos vendo uma degradação da linguagem. Quanto mais degradada for a linguagem, menores são as condições de formulação de ideias e de pensamento. Isso atinge o espaço da democracia, repara. Teve uma reunião dos ministros com o presidente Bolsonaro, aquela da boiada, e a gente viu como a linguagem estava degradada ali. Agora, aquilo ali era a sede da república. O que estava sendo degradado no entorno? Era a democracia. Quando eu uso a minha linguagem para degradar a democracia, para degradar a república, para eliminar a possibilidade do pensamento, eu não preciso pensar. É um efeito de degradação dos valores do mundo público. Do significado de ser do país. Da qualidade de ser brasileiro. Não é à toa que formas de tirania se utilizam de uma linguagem degradada e escolhem destruir a cultura. Nós temos que nos imaginar como comunidade. E o que dá subsídio e elemento pra essa imaginação é a cultura. Destruir a cultura significa destruir a nossa capacidade de nos imaginarmos como comunidade. A Arendt fala de como formas totalitárias vão se utilizar do que ela chama de funcionários ou de agentes cujo objetivo é esse, é destruir. Ele não está destruindo por acaso. Ele está destruindo porque ele precisa destruir a nossa imaginação.
E colocando o que no lugar? A cultura religiosa ou uma visão mais reacionária? Isso também não é legítimo?
A república é laica. Não cabe. Uma coisa é a minha crença, a minha fé. Isso é da ordem do íntimo. Na hora que eu levo isso pro campo da política, necessariamente eu vou excluir o outro, porque eu só reconheço aquele que professa a minha fé. Por princípio, isso não é republicano. O que eu estava chamando da destruição da cultura é a nossa imaginação cultural, com o seu suporte na literatura, no cinema, na música. Isso não tem substituição possível. Tem é uma perversão. Vejo muito nessas falas, quando Bolsonaro e outros levam pro campo da religião, a ideia do bem contra o mal. Como assim o bem contra o mal? Não tem divergência? Se não tem divergência, não tem o outro. É muito autoritário. Você elimina o diferente.
O que se revela da nossa república quando se nota que ela é degradável nesse nível? Ela já era muito frágil?
Nós temos uma república sem repúblicos. A nossa república está oca. Faltam os valores e os princípios da república. Falta praticar esses valores. Eu reli recentemente o livro do Joaquim Nabuco e ele falou já no século XIX o seguinte: o estado nacional, lá na Independência, está fundado numa estrutura principal que é a escravidão. E aí Nabuco diz que isso tem consequências. Em torno disso vai surgir e se alimentar uma sociedade hierárquica, desigual, violenta, racista. E ele diz que nós criamos uma epiderme civilizatória, a nossa ficção engenhosa de nação. Só que ela se rompe, porque ela é uma epiderme. O nó dos nós pra gente entender essa condição que vivemos é a nossa ficção engenhosa de nação. Com a Constituição de 1988, fizemos um investimento muito grande na democracia com prática política, eleição, partidos, votos. Na democracia como instituição. Mas esquecemos da nossa epiderme civilizatória. De olhar para o passado e nos enxergar. Quando a epiderme rompe, emerge esse fundo recessivo do Brasil.
Como curar isso?
Precisamos ter um investimento muito grande, a sério, para criar as ferramentas de como é que se constrói uma cultura democrática, uma cultura republicana. Como é que a gente faz para que a sociedade tenha orgulho de ser uma democracia, de ser uma república? Não podemos fazer a troca entre um e outro. Temos uma tradição republicana que se formou no Brasil que eu chamo de tradição esquecida. E que se perde a partir da Proclamação da República, porque é como se os abolicionistas e os grupos mais compromissados com o país tivessem pensando o seguinte: “olha, numa sociedade desigual como essa, numa sociedade escravista, vamos fazer a república se tornar sinônimo de democracia e está bom”. Não são sinônimos. Cada uma tem princípios e valores próprios. Então, precisamos de uma república que não seja oca e precisamos exercitar a prática democrática. Isso tem que fazer parte da nossa agenda de presente. Mas um jeito de fazer isso é olhar para trás. O projeto vitorioso da independência que está na matriz do estado nacional manteve a escravidão, a monarquia, fez uma centralização na base da força em várias províncias. Vamos olhar para essa instituição escravidão. Nós temos que enfrentar o nosso passado para que a gente possa criar e alimentar essa cultura.
Então, os ideais republicanos não nascem com as repúblicas?
É algo construído. Nunca nasceram junto com as nações. Pensa o caso dos Estados Unidos. Eles levaram 100 anos para tentar construir um catálogo de direitos no país. Lembra Martin Luther King? Eles fazem a república lá em 1776 e vão passar os séculos XIX e X desenvolvendo a luta pelos direitos civis, pela questão da cidadania. Não é simples. E corre-se muito risco. Se a sociedade não garantir, não tem jeito. Quem vai defender a república se não forem os repúblicos? Ou seja, se não for a sociedade? E quem vai defender a democracia se não for os democratas? E isso não nasce. A gente não nasce democrata e republicana. A gente se torna. Agora, existe república sem democracia? É claro. Quanto mais próximo nós estivermos da nossa modernidade mais claro vai se tornar pro pensamento republicano a importância de que a república tem que ser democrática. Mas na própria politeia grega ou na república romana, você está lidando com quem é cidadão. Se eu definir que quem é cidadão são só os homens brancos, acabou. A minha república não tem nada de democrática.
Por que é tão importante que república e democracia andem juntas?
Não podemos admitir uma república que não seja democrática, porque ela tem que praticar o princípio não apenas da igualdade, que não é um princípio republicano mas é um princípio democrático, como ela tem que estender o princípio democrático a todos. A democracia vai criar o princípio da igualdade e o princípio do plebeísmo, em que eu estendo o princípio da igualdade a todos. E a república, por sua vez, tem que dizer — e eu preciso que essas pessoas se tornem cidadãs e se mobilizem pra definir — o que elas querem fazer em comum para o seu próprio bem. Não dá para nós separarmos mais as duas coisas, embora historicamente sem dúvida elas já tenham estado separadas.
A palavra “republicano” foi ficando esvaziada no marketing político, na demagogia. Como é que se recupera o republicanismo por parte dos políticos?
Historiador, você sabe, é bom pra prever o passado, né? Mas a gente está vivendo um momento muito decisivo e inédito. Não existe precedente no processo de degradação que o país está vivendo em todos os seus sentidos: da democracia, da ausência dos valores do mundo público, da corrosão de sua cultura. Nós já sabemos como morrem as democracias. E como é que elas renascem? Se a gente construir. E se a gente aproveitasse esse momento pra encarar essas questões para valer? Juntos. Vamos ter que fazer isso juntos. Chamar as pessoas das mais diferentes maneiras.
O mundo da política é um mundo criativo. As formas de ação política que a gente constrói, nossa capacidade de imaginarmos soluções... Então, que tal tentarmos fazer isso? Vamos olhar para o passado e enfrentar ele direito?
Tivemos ditaduras, golpes, momentos muito críticos ao longo da república brasileira. De que forma esse momento é sem precedentes?
A democracia no Brasil e a república sempre estiveram ameaçadas pela força do golpe de estado. O golpe de estado é um movimento de dentro pra fora ou de fora pra dentro em que você vai ocupar o estado. Mas esse processo de corrosão e de degradação das instituições e da cultura nunca aconteceu. Nunca tivemos um presidente eleito democraticamente que tenha atuado no sentido de degradar a democracia por dentro. Repara. A corrosão é interna. A segunda coisa é o fato de que pela primeira vez nós não temos um projeto de país. A ditadura militar, eu posso discordar dela, como discordo, mas ela tinha um projeto de Brasil. Eles imaginaram, construíram um projeto de Brasil e tentaram implementar. Qual é o nosso projeto hoje? Qual é o futuro? Não tem. É como se o futuro tivesse desaparecido. Quando Bolsonaro tomou posse, logo depois, ele foi para os Estados Unidos. Ele vai num jantar em Washington e diz o seguinte: o nosso propósito não é construir nada. Nós vamos destruir. Ele fez esse discurso e está cumprindo. Ninguém pode dizer que ele mentiu. Novamente falando de Arendt, ela chama atenção para as experiências históricas do totalitarismo, o fascismo, o nazismo e o stalinismo. Mas ela fala de como a essência totalitária continuam correndo. Subterraneamente. Se eles emergem e se cristalizam, pode ser que seja o que vem depois da destruição. Por isso, é muito importante que os repúblicos compareçam à cena pública para dizer qual é a expectativa, qual é o nosso futuro. Também as nossas lideranças políticas de oposição precisam fazer isso. Nós precisamos de um futuro.