sábado, 2 de julho de 2022

As empresas bilionárias que apostaram na força do interior do Brasil, OESP

 

Brasileiros que vivem fora das regiões metropolitanas devem gastar cerca de R$ 3 trilhões em 2022, o que dá força para negócios gigantes criados bem longe do eixo Rio-São Paulo

 

Texto: André Jankavski e Lucas Agrela

02 de julho de 2022 | 13h50

Com 101 anos, a gigante das confecções Lupo surgiu em Araraquara, no interior de São Paulo. Criada pelo empresário Henrique Lupo, o negócio segue na mão da família – hoje, é comandado por Liliana Aufiero, neta do fundador. Mesmo com faturamento de R$ 1,5 bilhão e a intenção de abrir capital, a empresa não vê razão para trocar o interior pela capital. “Qual seria a vantagem de irmos à capital? Hoje, temos mais de 6 mil funcionários em Araraquara e uma grande simbiose com a cidade. Estamos felizes por aqui”, afirma a empresária.

Fábrica da Lupo: 6 mil funcionários em Araraquara (SP), e sem intenção de vir à capital
Fábrica da Lupo: 6 mil funcionários em Araraquara (SP), e sem intenção de vir à capitalAMANDA BRANDÃO/ESTADÃO

A Lupo não está sozinha nessa tendência. A fabricante de porcelanatos e revestimentos cerâmicos catarinense Portobello, o grupo de atacarejos maranhense Mateus e a empresa de telecomunicações mineira Algar também mantêm suas sedes em municípios do interior. Todas elas sabem que há um enorme potencial de consumo fora das capitais.

Desde 2011, o potencial de consumo no interior é maior do que o das capitais e das regiões metropolitanas. Levantamento feito pela consultoria IPC Marketing a pedido do Estadão, mostra que as cidades do interior atualmente concentram um potencial de quase R$ 3,1 trilhões, ou 54,9% do total do País. Em 2000, esse número era de R$ 382,9 bilhões, com participação de 46,9%.

Qual seria a vantagem de irmos à capital? Hoje, temos mais de 6 mil funcionários em Araraquara e uma grande simbiose com a cidade. Estamos felizes por aqui”.

Liliana Aufiero, presidente da Lupo

E o ritmo de crescimento do interior deve seguir mais acelerado, segundo Marcos Pazzini, fundador da IPC. “Nas últimas décadas, houve um trabalho intenso de prefeituras e governos para levar empresas e indústrias para o interior, com subsídios fiscais e facilidades. Essas empresas se instalaram e ajudaram no desenvolvimento das cidades”, diz Pazzini. “Agora, pelo efeito da pandemia de covid-19, também existe um movimento das pessoas estarem preferindo morar com mais conforto no interior, mas gastando o mesmo que na capital.”

Uma das empresas que mais demonstram esse poder do consumo do interior é o Grupo Mateus, criada no Maranhão. “Temos um jeito simples do interior, somos uns caipiras da roça, e aprendemos a nos ‘virar nos 30’. O nosso modelo de negócio nasceu por causa das dificuldades que tínhamos”, afirma Ilson Mateus, presidente e fundador da empresa, que realizou IPO em 2020 (o segundo maior daquele ano) e faturou R$ 15,9 bilhões no ano passado.

EFEITO DO AGRONEGÓCIO

agronegócio também ajudou a dar mais força à economia do interior. A participação do setor no PIB chegou a 27,4% de toda a economia do País – os cálculos são da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq/USP), em parceria com a Confederação Nacional da Agricultura (CNA).

Para Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, mesmo com um cenário um pouco mais complicado no curto prazo, com o aumento do preço dos insumos causado pela pandemia e a guerra entre Rússia e Ucrânia, a tendência é de que o crescimento do PIB dessas regiões continue muito mais alto do que a média do Brasil.

Para se ter uma ideia, o crescimento acumulado médio do PIB dos Estados do Centro-Oeste entre 1986 e 2022 é estimado em 357%, contra 103,6% da média brasileira, no mesmo período, aponta a MB Associados. Isoladamente, o Estado de Mato Grosso cresceu 639% nesses 36 anos.


A Boa Safra quer representar o interior do Brasil

Nascido e criado no município de Formosa (GO), o empresário Marino Colpo lembra que, desde cedo, seu pai o obrigava a acompanhar a cobertura econômica de grandes jornais. Ao fim de um dia de trabalho na pequena loja de sementes da família, o rapaz anunciou que, no futuro, o negócio faria um IPO (sigla em inglês para oferta inicial de ações).

Mais de 40 anos depois, a Boa Safra é uma das empresas do agronegócio com ações negociadas na B3, após um IPO realizado em 2021. Em seu ano de estreia na Bolsa, a empresa também ultrapassou a barreira de US$ 1 bilhão em faturamento.

Marino Colpo, presidente da Boa Safra: priorização de unidades em municípios do interior
Marino Colpo, presidente da Boa Safra: priorização de unidades em municípios do interiorCAUÃ DINIZ/ESTADÃO

Até por seu setor de atuação, a companhia não tem intenção alguma de se transferir para uma capital. Como a Boa Safra atende fazendeiros de todas as regiões do País, Colpo afirma que não faz sentido pensar em criar unidades de processamento em capitais, mesmo que elas sejam próximas de regiões importantes para o setor.

“No Mato Grosso, por exemplo, não vamos para Cuiabá, mas para Sorriso e Primavera enquanto no Maranhão estamos chegando à cidade de Balsas. Já na Bahia vamos para o município de Jaboranti”, afirma Colpo. “O agronegócio representa o interior do Brasil.”


Aos 140 anos, Döhler prepara sua chegada ao comércio eletrônico

Quem conhece as toalhas da Döhler muitas vezes nem imagina que a empresa tem mais de 140 anos. Criada pelo imigrante alemão Carl Döhler, em Joinville (SC), o negócio surgiu a partir de um tear que ele construiu com as próprias mãos. Alguns anos mais tarde, decidiu importar um tear de ferro da Inglaterra para aumentar a produção. Logo, passou a vender toalhas de mesa, panos de prato e cachecóis, expandindo o comércio para cidades próximas.

Udo Döhler, presidente do conselho de administração da Döhler e neto do fundador, conta que a empresa até considerou sair de Joinville, mas a ideia foi abandonada. A relação de Udo com a cidade é tão forte que ele foi eleito prefeito duas vezes, em 2012 e em 2016, pelo MDB. O executivo toca os negócios da família desde o começo da década de 1970.

Udo Döhler, presidente do conselho administrativo da Döhler: estreia no comércio eletrônico até o fim do ano
Udo Döhler, presidente do conselho administrativo da Döhler: estreia no comércio eletrônico até o fim do anoCARLOS JÚNIOR/ESTADÃO

A Döhler hoje tem como carro-chefe as toalhas, que representam 40% da produção. Cerca de 70% dos produtos da companhia são vendidos para o segmento corporativo e 30% para os consumidores finais. Em 2021, a receita de vendas foi de R$ 674 milhões, com lucro líquido de R$ 77,3 milhões.

A companhia comercializa produtos de cama, mesa e banho no varejo, além de atender hotéis e hospitais, mas também tem itens mais sofisticados, como uniformes com tecido invisível ao infravermelho, voltados às forças armadas.

Para aumentar as vendas no varejo, a empresa planeja a entrada no comércio eletrônico ainda em 2022. A médio prazo, o próximo passo da Döhler é avançar na agenda de sustentabilidade e governança para captar recursos de investidores na bolsa de valores para continuar a expandir os negócios.


Catarinense Portobello vai ampliar exportação e abrir fábrica nos EUA

Portobello atua no segmento de revestimentos cerâmicos desde 1979, e tem sede no município de Tijucas (SC). Depois de manter por algum tempo um negócio no ramo de açúcar, a família do fundador César Gomes migrou para o ramo de produção de cerâmica, aproveitando a localização que permitia tanto a venda para São Paulo quanto para países vizinhos, como Argentina e Chile. Hoje, a companhia tem 150 lojas pelo País e exporta para 60 países.

“Diversificamos para uma atividade em um setor forte, que podia ir ao mercado internacional e tinha muito avanço de tecnologia que nos traria ganhos de mercado”, conta César Gomes Júnior, filho do fundador, que tocou os negócios da empresa por mais de 40 anos e ocupa a posição de presidente do conselho de administração desde 2020.

César Gomes Júnior, presidente do conselho de administração da Portobello: pronto para concorrer no exterior
César Gomes Júnior, presidente do conselho de administração da Portobello: pronto para concorrer no exteriorANDERSON COELHO/ESTADÃO

A história da Portobello foi construída por profissionais que moram tanto em Tijucas quanto em cidades próximas, como Florianópolis e Camboriú. “A localização oferece qualidade de vida para as pessoas”, diz. A empresa tem mais de 5 mil funcionários.

Atualmente, cerca de um quarto das operações são internacionais. Com uma nova fábrica nos Estados Unidos, prevista para começar a funcionar no fim do ano, a empresa almeja duplicar esse porcentual ao acelerar sua produção.

A localização oferece qualidade de vida para as pessoas.”

  César Gomes Júnior, presidente do conselho da Portobello

Em 2021, o faturamento da Portobello chegou a R$ 1,9 bilhão, salto de 43% ante 2020 graças ao comércio de produtos de maior valor agregado, ao aumento de vendas no varejo e à ampliação de negócios internacionais. A receita vinda do mercado externo subiu 50%, chegando a R$ 401 milhões no ano passado.


Aos 101 anos, a Lupo espera o melhor momento de ir à Bolsa

Em um século, a Lupo saiu de uma pequena tecelagem com duas máquinas de costura na casa do fundador Henrique Lupo, na cidade de Araraquara (SP), para se tornar uma das maiores fabricantes de roupas do País, com receita de R$ 1,5 bilhão em 2021 e mais de 6 mil funcionários.

Neta do fundador e presidente da Lupo, Liliana Aufiero orgulha-se de que a força de trabalho da empresa é predominantemente feminina – mais de 80% dos funcionários da Lupo são mulheres. Por isso, a companhia criou uma creche em 1988 para garantir a amamentação das crianças de até 6 meses, além de dar orientações pedagógicas e ajudar no desenvolvimento de crianças até os dois anos e meio.

Liliana Aufiero, presidente da Lupo, quer abrir caminho para o IPO da empresa
Liliana Aufiero, presidente da Lupo, quer abrir caminho para o IPO da empresaAMANDA ROCHA/ESTADÃO

Para além de Araraquara, a empresa também tem outras duas fábricas localizadas fora das capitais – uma no Ceará e outra na Bahia. Para os próximos anos, a empresa quer aumentar tanto a sua presença no varejo físico – a meta é alcançar as 975 lojas até dezembro, com a abertura de mais 160 unidades até o fim do ano.

Desta maneira, a empresa quer abrir caminho para uma estreia na Bolsa de Valores. A vontade, segundo Liliana, era que isso já tivesse acontecido, porém o momento complicado do mercado não ajudou no planejamento. “O ‘quando’ é muito difícil de estimar agora pois as janelas, como são chamadas as oportunidades na Bolsa, não estão abertas nesse momento”, diz.


Varejista do interior, Grupo Mateus só agora pensa nas capitais

O empresário Ilson Mateus é um ex-garimpeiro que viu a oportunidade de abrir uma mercearia na cidade de Balsas (MA), conhecida por ser uma grande produtora de soja. No início, Mateus vendia cachaça e produtos diversos para a cidade que começava a crescer, mas logo observou uma grande oportunidade: comprar a prazo dos distribuidores e vender à vista para uma região que sentia os primeiros efeitos da expansão trazida pelo agronegócio.

O resultado disso foi o surgimento do Grupo Mateus, empresa que faturou R$ 15,9 bilhões no ano passado e 218 lojas espalhadas pelas regiões Norte e Nordeste. O detalhe principal, no entanto, é que toda essa expansão da companhia foi realizada em cidades do interior, estratégia que foi mantida desde a sua fundação.

Ilson Mateus, presidente do Grupo Mateus, planeja 50 lojas novas até o fim do ano
Ilson Mateus, presidente do Grupo Mateus, planeja 50 lojas novas até o fim do anoJONAS BRAZ/ESTADÃO

Somente neste ano a empresa abriu a sua primeira loja em uma capital (Aracaju), e agora planeja mais duas para Maceió. A atual missão do fundador é se consolidar como o maior grupo do varejo nas regiões do Norte e do Nordeste. Os olhos do mercado estão voltados à companhia: em 2020, fez a segunda maior abertura de capital daquele ano na B3, levantando cerca de R$ 4 bilhões.

Tenho me desdobrado junto à nossa cúpula, trabalhado muito e enxugando as empresas porque nós acreditamos que vamos dar bons resultados”.

Ilson Mateuspresidente do Grupo Mateus

De acordo com Mateus, a empresa segue cumprindo cada linha do plano de seu prospecto de IPO. “Tenho me desdobrado junto à nossa cúpula, trabalhado muito e enxugando as empresas porque nós acreditamos que vamos dar bons resultados”, diz Mateus, que planeja entregar 50 novas lojas até o fim de 2022.


Do arroz ao 5G, Algar virou referência em Uberlândia

A história do começo da Algar remete à Primeira Guerra Mundial, quando Alexandrino Garcia deixou Portugal rumo ao Brasil e conseguiu um emprego na construção de uma ferrovia. Após algum tempo, o projeto foi interrompido em Uberlândia (MG), e Garcia acabou se estabelecendo por lá. Com veia empreendedora, fazia de tudo um pouco, mas viu uma oportunidade de negócio no beneficiamento do arroz. Junto aos irmãos, ia em seu caminhão a São Paulo para vender produtos agrícolas.

O negócio deu certo, mas Garcia não se deu por satisfeito. Já perto dos 50 anos, começou a expandir sua empresa para novas áreas, até que, em 1954, entrou para o ramo de telecomunicações. Após negociações com empresas de telefonia, Garcia estendeu uma ligação telefônica de Ribeirão Preto a Uberlândia –um trajeto de cerca de 350 km.

Ali, começava a nascer a Algar Telecom, que hoje fornece serviços de telefonia e internet. Nos últimos quatro anos, o faturamento da divisão de telecomunicações subiu 230%, chegando a R$ 3,3 bilhões em 2021.

Luiz Alexandre Garcia, presidente do conselho do Grupo Algar: diversificação desde a gênese do negócio
Luiz Alexandre Garcia, presidente do conselho do Grupo Algar: diversificação desde a gênese do negócioGRUPO ALGAR

Além do agronegócio e das telecomunicações, o terceiro pilar da Algar começou a surgir na década de 1970, para diversificar negócios enquanto enfrentava pressões de estatização de seus serviços de telefonia. Foi quando o turismo se apresentou como uma oportunidade. Hoje, uma das verticais da empresa é chamada Aviva, controladora da Pousada do Rio Quente. Cada empresa tem sua diretoria independente e hoje o neto do fundador ocupa o cargo de presidente do conselho da Grupo Algar.

A decisão de ficar em Uberlândia foi uma escolha pessoal do fundador. Mas, hoje, mais de 60% dos negócios são gerados fora da nossa área de abrangência inicial.”

 Luiz Alexandre Garcia, presidente do conselho do Grupo Algar

“A decisão de ficar em Uberlândia foi uma escolha pessoal do fundador. Mas, hoje, mais de 60% dos negócios são gerados fora da nossa área de abrangência inicial”, afirma Luiz Alexandre Garcia, presidente do conselho do Grupo Algar. Ao longo de sua história, a empresa se beneficiou da formação de talentos na Universidade Federal de Uberlândia. Portanto, ele diz não ter encontrado dificuldades para ter mão de obra qualificada mesmo estando fora do eixo Rio-SP.

Matador de Bruno e Dom era o ‘menino’ de expedição de combate a invasões de 2002, OESP

 


Há 20 anos, em junho de 2002, começava no Vale do Javari a última grande expedição indigenista na Amazônia. Uma equipe de 35 indígenas e ribeirinhos, chefiada pelo sertanista Sydney Possuelo, atravessou a selva durante 105 dias para combater invasões no território habitado por 16 grupos isolados. Entre os mateiros que ajudavam na abertura de trilhas e na construção de canoas estava um ribeirinho que cometeria um dos crimes de maior repercussão da história recente da floresta.

O pescador Amarildo Costa de Oliveira, o Pelado, que na época da expedição tinha 21 anos, confessou ter executado o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. O assassinato completa um mês na terça-feira e com as circunstâncias sob investigação. Indígenas apontam crime de mando. A Polícia Federal chegou a descartar a hipótese, mas voltou atrás.

Em primeiro plano, o pescador Amarildo Oliveira Costa, o Pelado. Ao fundo, o sertanista Sydney Possuelo, no Vale do Javari, em 2002.
Em primeiro plano, o pescador Amarildo Oliveira Costa, o Pelado. Ao fundo, o sertanista Sydney Possuelo, no Vale do Javari, em 2002. Foto: Sydney Possuelo/ Acervo Pessoal

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Da expedição de Sydney para cá, a rede criminosa da pesca e do garimpo se sofisticou com recursos do narcotráfico na tríplice fronteira com o Peru e a Colômbia. O esquema de drogas e armas capturou comunidades ribeirinhas ao redor do território dos isolados. Pelado morava numa delas, a São Gabriel, onde um certo Rubens Villar, o Colômbia, que a polícia procura, controla a venda de pescados clandestinos.

“O que leva um jovem que participou daquela viagem a cometer um assassinato 20 anos depois? Não acompanhei a vida dele”, disse Sydney.

Talvez as condições às quais um homem é submetido podem impulsioná-lo para certas coisas. A vida dos ribeirinhos é difícil

Sydney Possuelo

Sydney disse ver indígenas e ribeirinhos como brasileiros afetados por um processo injusto de País. “Talvez o narcotráfico e a pesca ilegal sejam as únicas oportunidades. A gente não tem resposta para o caso desse rapaz. Se for questão de índole, numa família de classe média também pode ter criminoso. É índole ou são as duas coisas.”

Pelado, na popa do barco, durante a expedição ao Vale do Javari, em 2002.
Pelado, na popa do barco, durante a expedição ao Vale do Javari, em 2002.  Foto: Sydney Possuelo/ Acervo Pessoal

Farda

O universo de ribeirinhos e indígenas sempre foi de tensão por espaço. Indigenistas procuram apaziguar as relações e evitar o avanço de inimigos.

Esse menino (Pelado) era trabalhador, sempre sorrindo nos momentos de descanso. Não me despertou atenção maior

Sydney Possuelo

Na expedição, Pelado e colegas mateiros ganharam farda, tênis Kichute e chapéu. A rotina era acordar antes do sol, tomar um rápido café, passar o dia em caminhada, verificar vestígios de isolados e criminosos. O grupo construiu duas canoas para descer o Rio Jutaí.

Pelado, de farda, é o primeiro da esquerda para a direita. Ao lado, Orlando Possuelo, filho de Sydney.
Pelado, de farda, é o primeiro da esquerda para a direita. Ao lado, Orlando Possuelo, filho de Sydney.  Foto: Sydney Possuelo/ Acervo Pessoal

Ao longo da viagem, ribeirinhos contavam histórias de violência. Pelado relatou que, dias antes da expedição, ele e parentes tiveram um barco roubado. A família teria pago policiais para “acabar” com os bandidos. Num acampamento, Pelado sonhou com “flecheiros” levando facões e machados. Seus gritos acordaram o grupo. A história da expedição foi relatada no livro Homens Invisíveis, que publiquei em 2007, pela Record.

Buscas

No dia 15 de junho, a PF organizou entrevista em Manaus para anunciar ter desvendado o crime. A busca pelos corpos foi feita, na verdade, por uma equipe de marubos, kanamaris e matises e pelo indigenista Orlando Possuelo, filho de Sydney e colega de Bruno.

Pelado comanda o motor de um dos barcos da expedição em 2002.
Pelado comanda o motor de um dos barcos da expedição em 2002. Foto: Sydney Possuelo/ Acervo Pessoal

Em 2002, Orlando tinha 17 anos quando participou da expedição do pai em 2002. Nos últimos anos, ouvia histórias de Pelado agora dono de um barco de pesca de 14 metros de comprimento que invadia a área indígena. Em 2017, Pelado ameaçou Bruno de morte. E teve o nome fichado por tráfico de munições. Com o governo Jair Bolsonaro, a partir de 2019, invasores intensificaram as ações no Javari.

A equipe de Orlando e dos indigenistas ouviu, ainda no dia das mortes, um pescador relatar ter visto “seu Bruno” passar numa “voadeira”, como chamam lanchas de alumínio, motor 40, no Itaquaí, e o “60″ indo atrás, com dois “caras”. O barco de motor 60 era pilotado por Pelado. Na comunidade de São Rafael, o pescador pegou uma cartucheira e uma espingarda: “Bora, bora, vamos pegar esse cara”, disse, segundo relatos. Entrou na embarcação Jeferson da Silva Lima, um homem que não tinha a tez exposta ao sol dos ribeirinhos. Os indígenas passaram a trabalhar com hipótese de crime de mando.

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A diferença dos motores dos barcos permitiu que Pelado se aproximasse da voadeira. Com duas pessoas, o barco de Bruno fazia 45 km/h, dez a menos que o de Pelado. “Isso é muita coisa na Amazônia”, disse Orlando. A perseguição foi facilitada porque o barulho do motor não permitiu a Bruno perceber a aproximação.

A cerca de 15 metros, Bruno, que estava na proa, levou um tiro no abdômen – a perícia registrou outro no tórax e um na cabeça. Ele perdeu a direção e disparou uma arma a esmo. A voadeira entrou na vegetação da margem direita do Itaquaí, quebrou galhos, a hélice se enroscou no mato. Em seguida, houve mais disparos. Dom morreu com um projétil também no abdômen. A sequência foi descrita pelos indígenas da equipe de busca a partir de profunda análise das alterações do mato e do solo.

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Orlando e os indígenas foram a São Gabriel, onde vivia Pelado. Jeferson entrou na conversa: “Ninguém conhece Pelado aqui”. Um policial militar que acompanhava o grupo comentou: “Esse Jeferson não é ribeirinho, é branco demais, tem tatuagem de cadeia”. “Se ele não era pescador local, nunca teve prejuízo com ações do Bruno. Por que entraria nessa?”, questionou Orlando.

Preso pela Polícia Militar, Pelado disse que houve um “embate” entre Jeferson e Bruno antes dos tiros. “Não houve nada disso. Matou por trás”, disseram os indígenas. Pelado foi com a polícia num igarapé, onde deixara os corpos. Mas foi um indígena que chamou a atenção para uma árvore derrubada. Debaixo da galharia o chão estava queimado. Os ribeirinhos tinham posto fogo nos corpos e galões, mas não conseguiram destruí-los. Esquartejaram e enterraram. “O que você fez?”, disse baixinho Orlando a Pelado, quando os corpos foram encontrados. “Pois é, agora tenho que pagar”, respondeu.

Orlando afirmou que Bruno tinha por marcas coragem, confiança e lealdade. E paixão pelos indígenas. “No campo, era parceiro e firme nas suas posições”, lembrou o indigenista.