Jair Bolsonaro (PL) conseguiu o que queria: provocou um caos político e mobilizou sua base ao decretar o perdão de Daniel Silveira (PTB-RJ), deputado federal que o STF (Supremo Tribunal Federal) condenou a quase nove anos de prisão.
Conseguiu ainda mais. Ao afrontar a mais alta corte brasileira, percebeu que existe muita gente disposta a aceitar um ato que põe em xeque a estabilidade democrática no país.
Só isso explica por que o indulto individual tem sido encarado por tantos políticos e operadores do direito como se fosse um ato administrativo absoluto, contra o qual não existem recursos jurídicos válidos.
Bolsonaro sente-se tão confortável com esse apoio que voltou a falar sobre o tema: "O decreto da graça e do indulto é constitucional e será cumprido".
A frase resume bem o tamanho da crise. O Supremo sempre teve o proverbial privilégio de errar por último, pois o arranjo entre os Poderes lhe garante a palavra final em uma variada gama de assuntos judicializáveis.
É esse poder decisório que Bolsonaro agora quer tomar para si, como se coubesse ao presidente atuar como juiz de seus próprios atos.
Que a graça está prevista na Constituição é ponto pacífico. Mas o debate não é esse. Num Estado de Direito, todas as leis que regulam um tema precisam ser observadas, sem o que as atribuições do presidente se tornariam puro arbítrio.
No caso do indulto, o STF já estabeleceu a possibilidade de ser feito controle de constitucionalidade. Ou seja, embora o instrumento esteja à disposição do presidente, seu uso precisa respeitar os limites definidos pela Constituição.
Mais importante, o indulto, como qualquer procedimento em uma democracia contemporânea, deve não só seguir as formalidades regulamentares, mas também ser aplicado nas circunstâncias adequadas.
O perdão de uma pena, por força da lógica, só é cabível quando há uma pena a ser perdoada. Daniel Silveira, beneficiado com o indulto de Bolsonaro, não se encaixa nesse critério básico.
Apesar de ter sido derrotado por 10 a 1 no plenário do STF, o deputado ainda pode recorrer e reduzir os oito anos e nove meses de prisão, um tempo que muitos, aliás, consideraram exagerado.
Além disso, do ponto de vista do processo penal, nada impede que seja absolvido ou condenado pelo terceiro crime de que foi acusado. São hipóteses improváveis, sem dúvida, mas elas existem.
Esgotados os recursos, caso a condenação fique mantida, haverá a publicação da decisão, a partir de quando ela passará a surtir efeitos. Somente depois desse momento é que haverá uma pena a ser perdoada.
Como já observou o advogado Pierpalo Bottini, professor de direito da USP, o decreto de Bolsonaro é inválido por falta de objeto —ao menos por enquanto. Afinal, como ele poderia perdoar alguém que, aos olhos da lei, ainda é inocente?
Não pode.
Essa consideração não muda a dificuldade de fundo. Ela apenas empurra o dilema constitucional mais para a frente, para quando o processo de Silveira de fato terminar, com o chamado trânsito em julgado.
Mera formalidade? Talvez. Mas ela ajuda a lembrar que não deveria haver qualquer impasse quanto a esses dois pontos: 1) o perdão a Daniel Silveira é, neste momento, um vazio jurídico; 2) a constitucionalidade de qualquer ato administrativo pode ser avaliada pelo STF.
Só há segurança jurídica quando as normas são respeitadas pelas autoridades constituídas. Enquanto o Brasil for um Estado de Direito, nenhum ato que se desvie dos parâmetros legais deve ficar a salvo do controle judicial. Imaginar que o presidente possa inventar as regras para as suas próprias atribuições é confundi-lo com um ditador.