segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

GIANPAOLO SMANIO A soberania do Tribunal do Júri e a defesa da sociedade - FSP

 


Gianpaolo Smanio

Procurador de Justiça, foi procurador-geral de Justiça do estado de São Paulo (2016-2020); mestre e doutor em direito (PUC-SP) e professor de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Ao emprestar status constitucional ao instituto do Tribunal do Júri, o constituinte conferiu ao Poder Judiciário, no tocante à defesa do direito à vida, o maior de todos os bens jurídicos, uma legitimidade que se confunde com a própria origem da Carta Magna: a legitimidade da vontade popular.

De forma cristalina, a Constituição Federal estabelece, no inciso XXXVIII do seu artigo 5º, que "é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei", assegurando "a soberania dos veredictos".

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Foi com base neste princípio que o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federalsuspendeu os efeitos de decisão liminar concedida em habeas corpus pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A medida do STF restabeleceu, assim, a ordem constitucional ao fazer com que os réus condenados por homicídio e tentativa de homicídio pelas 242 mortes e mais de 600 feridos causados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), passassem a cumprir pena imediatamente.

A condenação imposta aos réus não pode mais ser reformada em sua essência (culpados ou inocentes), posto que os jurados são soberanos. E não se trata aqui de um exercício de hermenêutica, mas sim da leitura de um trecho claro da Constituição. Caberá oportunamente ao Tribunal de Justiça, pela via recursal própria, apenas manifestar-se sobre os aspectos formais, nunca os materiais, do julgamento.

Neste momento, o ministro Fux não se imiscuiu em qualquer questão do mérito da condenação. Em sua decisão, provocado pelo Ministério Público e verificando risco de grave lesão à ordem jurídica em caso de manutenção da liberdade dos réus, o ministro corretamente limitou-se a derrubar um entendimento contrário à ordem constitucional. Permitir ao Ministério Público utilizar esse instrumento processual no caso concreto é permitir a defesa da sociedade para a garantia da soberania constitucional do Tribunal do Júri, bem como possibilitar a defesa da ordem jurídica e do interesse público, missão constitucional do Ministério Público.

Somente o desconhecimento da jurisprudência do STF pode explicar a injustificada surpresa que parece marcar a reação de alguns operadores do direito. Há inúmeros precedentes que se coadunam com o posicionamento adotado, já que esta não é a primeira vez que a Suprema Corte enfrenta questões de tal natureza.

Em mais de uma ocasião, os ministros do STF proclamaram a tese segundo a qual a "prisão do réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não culpabilidade", como exemplifica o habeas corpus 118.770, julgado em 2017. Essa decisão é inclusive anterior ao chamado "pacote anticrime", de forma a deixar claro que o que se discute aqui não são os dispositivos dessa referida legislação, mas sim a afirmação da soberania do Tribunal do Júri e dos instrumentos necessários para a sua defesa.

Enfim, uma análise desapaixonada do caso redundará, inevitavelmente, na conclusão de que o Supremo Tribunal Federal agiu nos estritos limites do ordenamento constitucional e infraconstitucional, reafirmando um valor expresso de maneira cristalina na Constituição, segundo o qual cabe aos cidadãos julgar aqueles que atentam contra a vida.

Espera-se, assim, que a comunidade jurídica deixe de lado interpretações derivadas de interesses ocasionais e cerre fileiras na firme defesa da Carta que recolocou o nosso país na trilha de democracia. E essa Carta garante a defesa da ordem jurídica e do interesse público, sobretudo assegurando a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri!

A favela mais forte que o vírus , Preto Zezé, FSP

 Preto Zezé

Presidente da Cufa Global

A pandemia foi um caos para o mundo, em particular para o nosso país com tamanhas desigualdades. Ela amplificou problemas estruturais já existentes e aumentou os desafios que enfrentamos todos os dias.

Muitos perguntam como conseguimos números tão expressivos num mundo caótico, com mais de 20 milhões de pessoas atendidas através de mais de R$ 500 milhões arrecadados e transformados em cestas, chips, botijão de gás, material de higiene e limpeza e transferência diretas para as mães das favela.

Organizado pela Central Única das Favelas, projeto Mães da Favela instala torres de wifi livre em favelas atendidas
Organizado pela Central Única das Favelas, projeto Mães da Favela instala torres de wifi livre em favelas atendidas - Marlene Bargamo/Folhapress
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Esse mundo caótico a que todos conheceram é o habitat da maioria da população que vive em favelas e periferias do país, que, enquanto se falava em ficar em casa ou álcool em gel, mais de 45% dessa gente batalhadora nem tinha sabão e água regularmente saindo nas torneiras.

Muitos até hoje nunca souberam o que é ficar em casa, já que tiveram que manter o país andando, lotando ônibus, trens, metrôs e vans para ir trabalhar, limpando as ruas, sendo a massa de trabalhadores da saúde que manteve hospitais andando, mesmo correndo riscos. Foi esse povo que se refez, que entrega o alimento que você pede no aplicativo, que atende no posto de gasolina, cuida de estoque e atendimento do supermercado, mantém farmácias abertas, só para citar algumas atividades essenciais ao país, mas que não foram priorizadas no primeiro processo de vacinação.

O tal distanciamento social é impossível de ser mantido devido às desigualdades já conhecidas, que distanciam milhões a direitos básicos, como saneamento, emprego, educação e serviços de saúde, dignos.

Lembro que, quando a OMS pediu a desativação de todas as atividades, fomos pegos de surpresa no que tínhamos de mais sagrado na nossa rede: a mobilização. Mas já na primeira semana articulamos meios de comunicação, nossas lideranças em mais de 5.000 favelas, nossas redes de norte a sul do país, em 26 estados, no DF e em mais 20 países e partimos para uma guerra de vida ou morte, pois não era possível observar nossos pares sucumbindo sem perspectivas de dias melhores.

Chegamos ao final de 2021 certos de que somos mais fortes do que imaginávamos e de que é possível produzir engajamento em parceria com setor privado, o que evitou caos pior e criou o maior movimento de solidariedade que este país já viu.

O desafio é manter a esperança e trabalhar para que a solidariedade continue mais forte e mais contagiosa que o vírus, e que possamos produzir agenda pública que tenha como eixo a vida e o enfrentamento das desigualdades estruturais do país, pautando a política e os políticos, e continuar reduzindo os impactos da pandemia na vida dos mais vulnerabilizados.

A pandemia foi como um naufrágio, mas o afogamento foi seletivo, com critérios claros de cor, cep, classe e sexo.

Nossa missão é não deixar ninguém para trás.