segunda-feira, 8 de novembro de 2021

A mentira disparada no ar, Ruy Castro - FSP

 Em fins de 1945, derrubada a ditadura de Getúlio Vargas e a dias da primeira eleição presidencial desde 1930, havia um favorito disparado: o brigadeiro Eduardo Gomes. Era o símbolo da honestidade e da oposição a Getúlio, mas de total inaptidão para o poder. Seu adversário, o general Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro germanófilo da ditadura, convertido à causa dos Aliados na guerra, era dúbio e oportunista. Mas, então, 73 anos antes de a prática receber um nome, o Brasil conheceu o primeiro caso de fake news. E sua vítima foi o brigadeiro.

Num discurso no Theatro Municipal do Rio, indagado sobre se queria conquistar os partidários de Getúlio, ele respondeu que "dispensava o voto da malta de desocupados que apoiava o ditador". Um empresário paulista, Hugo Borghi, notório por transações milionárias e ilegais com o Banco do Brasil sob Vargas e já julgado culpado de corrupção por um órgão federal, ouviu aquilo e foi ao dicionário. Queria saber o que era "malta".

Entre os vários significados, havia o de "quadrilha, bando, súcia" —que nitidamente era o que o brigadeiro queria dizer. Mas havia também o de "turma de trabalhadores que comem em marmita". Borghi, interessado na eleição de Dutra, que poderia suspender sua condenação, foi ao microfone de uma rádio e disse que o brigadeiro tinha dispensado "o voto dos marmiteiros, dos trabalhadores". Era mentira, claro. Só que a rádio era dele e ele tinha 150 retransmissoras pelo país.

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Carlos Lacerda, jovem apoiador do brigadeiro, ouviu aquilo e entrou em pânico. Era urgente desmentir a história antes que ela se consolidasse como verdade. Mas seus correligionários não o ouviram —não imaginavam a força do rádio. O próprio brigadeiro o ignorou. No dia 2 de dezembro, Dutra virou o jogo e venceu com quase o dobro de votos.

O rádio era a internet da época. Uma mentira disparada pelo ar já podia decidir uma eleição. Hoje mais do que nunca.

O brigadeiro da aeronáutica Eduardo Gomes
O brigadeiro da aeronáutica Eduardo Gomes - Reprodução

O QUE A FOLHA PENSA - Carvão e dinheiro

 Ativistas com máscaras de líderes mundiais, acorrentados e apresentados como criminosos climáticos, desfilam durante protesto contra a crise climática, em Glasgow, na Escócia, em que acontece a COP26; estavam representados o ex-presidente dos EUA Donald Trump, o presidente chinês, Xi Jinping, Bolsonaro, o primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, o líder russo, Vladimir Putin, o magnata da mídia Rupert Murdoch, e o premiê indiano, Narendra Modi.

Protesto em Glasgow, na Escócia, durante a COP26 - Ana Estela de Sousa Pinto/Folhapress

Seria precipitado dizer que a cúpula do clima em Glasgow teve coisas boas e novas na primeira semana, mas que as coisas boas não são novas e as coisas novas não são boas. Há notícias animadoras, como a interrupção de investimentos em carvão, ainda que nada garanta desfecho satisfatório até o fim da COP26, na sexta-feira (12).

A Declaração de Transição do Carvão Global para Energia Limpa tem uma única página e fixa o compromisso de interromper licenças para novos projetos de energia com esse combustível fóssil e o financiamento de usinas em outros países. Assinam pesos pesados como EUA, Alemanha e Reino Unido.

Ficam de fora China (50% do consumo) e Índia (10%). A potência chinesa já havia prometido descontinuar o apoio a termelétricas no exterior, mas seguirá aumentando o consumo até 2030, prazo-limite para o mundo cortar em 50% a emissão de CO2 e ter chance de limitar o aquecimento global a 1,5ºC.

Outra boa nova veio com o Compromisso Global sobre Metano, gás do efeito estufa dezenas de vezes mais potente que o CO2. Um grupo de 96 países, entre eles o Brasil, prometeu reduzir em 30% as emissões em nove anos.

A delegação brasileira também concordou com a Declaração de Florestas, ao lado de 123 nações. Outra página genérica, para facilitar "produção e consumo de commodities sustentáveis (...) que não conduzam ao desmatamento e à degradação da terra" —ironia para um país onde desmatamento e emissões estão em alta.

Houve movimento ainda no setor financeiro, este sim capaz de tirar da inércia a questão do clima. Aí surgiram novidades, como a coalizão de instituições financeiras que administram US$ 130 trilhões e se comprometem a custear a transição energética. Mas esta pode custar até US$ 3 trilhões ao ano, por três décadas.

Os países ricos não cumpriram nem a promessa feita em 2009 de carrear R$ 100 bilhões anuais para projetos sustentáveis nas nações em desenvolvimento. Estas falam agora em obter US$ 1,3 trilhão ao ano de financiamento.

China e Índia estão à frente da demanda ambiciosa, as mesmas que, na condição de primeira e terceira maiores emissoras de carbono, não abrem mão do carvão. Novo impasse se desenha.

editoriais@grupofolha.com.br


O inimigo do emprego é a tecnologia?, Por César Locatelli - Carta Maior

  

“Se a tecnologia fosse um bem comum e não uma propriedade de poucos usada aos interesses do capital, permitiria garantir a produção adequada para o atendimento das necessidades humanas e a redução significativa da jornada de trabalho, sobrando tempo para nos realizarmos enquanto seres humanos de forma mais plena.”

A tecnologia não é neutra. Talvez seja essa a principal explicitação do dossiê Big Techs e os desafios atuais para a luta de classesdo Instituto Tricontinental. Pensemos em alguns exemplos.

Há alguns anos assisti a uma propaganda do Bradesco em que várias pessoas perguntavam, pelo celular, coisas para a Bia. No final ela dizia algo do tipo: “Bia é a inteligência artificial do Bradesco. Ela ainda não tem a resposta para tudo, mas está aprendendo rápido com você.” Pois bem, Bia quer dizer Bradesco Inteligência Artificial e sua mensagem em voz meio sintética provocava-me arrepios na espinha como nas cenas assustadoras dos filmes de terror. Bia parecia dizer: não demora você estará em minha mãos, pois saberei tudo sobre você e lucrarei muito com isso. Não foi assim, sabendo mais sobre nós do que nós mesmos, que Facebook e Google se incluíram entre as seis maiores empresas do mundo?

Parece essencial que, a cada faceta do avanço tecnológico, nos perguntarmos quem ganha e quem perde com tal desenvolvimento. Imaginemos um trator agrícola, equipado com Inteligência Artificial que “lê” as condições de plantio, que une informações sobre as necessidades da planta com as condições de fertilidade de terra, com a meteorologia e faz indicações para o agricultor melhorar sua produtividade, diminuir os riscos inerentes à sua atividade. É plausível acreditar que a entrada desse trator, em nossa sociedade capitalista, derramará benefícios semelhantes a todos? Aos fabricantes de tratores e de insumos, aos grandes e pequenos agricultores, aos países consumidores e produtores dos tratores? Lucrarão igualmente trabalhadores sem terra e donos da terra?

Outro exemplo, em que muitas perguntas precisam ser formuladas, é trazido por Michael F. Schmidlehner, ambientalista e especialista em Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Trata-se do Banco de Códigos da Amazônia:

“Em janeiro de 2018, o Fórum Econômico Mundial lançou, em sua 48ª reunião anual em Davos, a iniciativa do Banco de Códigos da Amazônia, que pretende ser a primeira fase de um programa mais amplo de parceria do Projeto Biogenoma da Terra e do Banco de Códigos da Terra. O primeiro pretende sequenciar e catalogar todos os vegetais, animais, fungos e uma grande parte de todos os organismos unicelulares da Terra, desenvolvendo e implementando drones aéreos, terrestres e oceânicos, e novas tecnologias baratas de sequenciamento nos próximos dez anos.”

Schimidlehner deixa clara sua avaliação sobre o Banco de Códigos da Amazônia no artigo Blockchain e contratos inteligentes: as mais recentes tentativas do capital de se apropriar da vida na Terra: “Devido à pressão cada vez maior, com a qual o capital promove a financeirização da natureza e a ruptura das relações humanas com ela, há uma necessidade urgente de entender essas novas tecnologias, que são uma ameaça iminente às comunidades remanescentes que dependem das florestas e apoiar suas resistências.”

A humanidade como um todo colherá os frutos da chamada quarta revolução industrial? O professor Diógenes Moura Breda, que caracteriza a Indústria 4.0 como resultante de “um conjunto de novas tecnologias capazes de articular, em tempo real e automaticamente, uma quantidade incalculável de informações produzidas por pessoas e aparelhos (computadores, máquinas, robôs, meios de transporte, câmeras, sensores etc.”, revela que mais de 80% dos pedidos mundiais de registro de patentes provêm de empresas ou indivíduos de seis países: EUA, Japão, China, Coreia do Sul, Alemanha e França. Ele complementa:

“A enorme concentração de ciência e tecnologia e seus frutos configura um panorama, na atualidade, da tendência do capitalismo central de estabelecer e atualizar periodicamente a divisão internacional do trabalho a seu favor. O que chamamos aqui de tecnologia nada mais é do que o conteúdo técnico dessa divisão, sua base material, o esqueleto do autômato global que organiza a produção e distribuição mundial da mais-valia.

O que, então, fazer a partir dessa constatação? O dossiê Big Techs e os desafios atuais para a luta de classes, do Instituto Tricontinental, nos traz importantes referências bibliográficas e indica o caminho do conhecimento e debate amplo:

“O debate acerca das tecnologias digitais e o capitalismo não pode ser um debate de nicho, pautado por interesses individuais ou de pequenos grupos sobre o tema. Deve ser um debate do conjunto das organizações em todas as suas dimensões, dado seus impactos na economia, na política, na geopolítica, na formação, na cultura, organização, mobilização e luta. Apenas com um debate amplo, coletivo e participativo poderemos definir os termos da ‘eficiência’ e das ‘soluções’ tecnológicas em uma perspectiva socialista.”

Schimidlehner acrescenta: “Devido à pressão cada vez maior, com a qual o capital promove a financeirização da natureza e a ruptura das relações humanas com ela, há uma necessidade urgente de entender essas novas tecnologias, que são uma ameaça iminente às comunidades remanescentes que dependem das florestas e apoiar suas resistências.”

Um visão um pouco mais otimista e centrada nos movimentos do trabalhadores vem de Esther Majerowicz: “Os povos estão crescentemente opondo-se aos resultados do capitalismo neoliberal, enquanto aparatos de vigilância e guerra são confrontados por resistência interna e externa de whistleblowers e de movimentos sociais. O que concretamente emergirá das expectativas que o estado e o capital estão depositando na renovação da infraestrutura de telecomunicações será contingente na resposta das massas de trabalhadores ao redor do mundo”.