“Se a tecnologia fosse um bem comum e não uma propriedade de poucos usada aos interesses do capital, permitiria garantir a produção adequada para o atendimento das necessidades humanas e a redução significativa da jornada de trabalho, sobrando tempo para nos realizarmos enquanto seres humanos de forma mais plena.”
A tecnologia não é neutra. Talvez seja essa a principal explicitação do dossiê Big Techs e os desafios atuais para a luta de classes, do Instituto Tricontinental. Pensemos em alguns exemplos.
Há alguns anos assisti a uma propaganda do Bradesco em que várias pessoas perguntavam, pelo celular, coisas para a Bia. No final ela dizia algo do tipo: “Bia é a inteligência artificial do Bradesco. Ela ainda não tem a resposta para tudo, mas está aprendendo rápido com você.” Pois bem, Bia quer dizer Bradesco Inteligência Artificial e sua mensagem em voz meio sintética provocava-me arrepios na espinha como nas cenas assustadoras dos filmes de terror. Bia parecia dizer: não demora você estará em minha mãos, pois saberei tudo sobre você e lucrarei muito com isso. Não foi assim, sabendo mais sobre nós do que nós mesmos, que Facebook e Google se incluíram entre as seis maiores empresas do mundo?
Parece essencial que, a cada faceta do avanço tecnológico, nos perguntarmos quem ganha e quem perde com tal desenvolvimento. Imaginemos um trator agrícola, equipado com Inteligência Artificial que “lê” as condições de plantio, que une informações sobre as necessidades da planta com as condições de fertilidade de terra, com a meteorologia e faz indicações para o agricultor melhorar sua produtividade, diminuir os riscos inerentes à sua atividade. É plausível acreditar que a entrada desse trator, em nossa sociedade capitalista, derramará benefícios semelhantes a todos? Aos fabricantes de tratores e de insumos, aos grandes e pequenos agricultores, aos países consumidores e produtores dos tratores? Lucrarão igualmente trabalhadores sem terra e donos da terra?
Outro exemplo, em que muitas perguntas precisam ser formuladas, é trazido por Michael F. Schmidlehner, ambientalista e especialista em Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Trata-se do Banco de Códigos da Amazônia:
“Em janeiro de 2018, o Fórum Econômico Mundial lançou, em sua 48ª reunião anual em Davos, a iniciativa do Banco de Códigos da Amazônia, que pretende ser a primeira fase de um programa mais amplo de parceria do Projeto Biogenoma da Terra e do Banco de Códigos da Terra. O primeiro pretende sequenciar e catalogar todos os vegetais, animais, fungos e uma grande parte de todos os organismos unicelulares da Terra, desenvolvendo e implementando drones aéreos, terrestres e oceânicos, e novas tecnologias baratas de sequenciamento nos próximos dez anos.”
Schimidlehner deixa clara sua avaliação sobre o Banco de Códigos da Amazônia no artigo Blockchain e contratos inteligentes: as mais recentes tentativas do capital de se apropriar da vida na Terra: “Devido à pressão cada vez maior, com a qual o capital promove a financeirização da natureza e a ruptura das relações humanas com ela, há uma necessidade urgente de entender essas novas tecnologias, que são uma ameaça iminente às comunidades remanescentes que dependem das florestas e apoiar suas resistências.”
A humanidade como um todo colherá os frutos da chamada quarta revolução industrial? O professor Diógenes Moura Breda, que caracteriza a Indústria 4.0 como resultante de “um conjunto de novas tecnologias capazes de articular, em tempo real e automaticamente, uma quantidade incalculável de informações produzidas por pessoas e aparelhos (computadores, máquinas, robôs, meios de transporte, câmeras, sensores etc.”, revela que mais de 80% dos pedidos mundiais de registro de patentes provêm de empresas ou indivíduos de seis países: EUA, Japão, China, Coreia do Sul, Alemanha e França. Ele complementa:
“A enorme concentração de ciência e tecnologia e seus frutos configura um panorama, na atualidade, da tendência do capitalismo central de estabelecer e atualizar periodicamente a divisão internacional do trabalho a seu favor. O que chamamos aqui de tecnologia nada mais é do que o conteúdo técnico dessa divisão, sua base material, o esqueleto do autômato global que organiza a produção e distribuição mundial da mais-valia.
O que, então, fazer a partir dessa constatação? O dossiê Big Techs e os desafios atuais para a luta de classes, do Instituto Tricontinental, nos traz importantes referências bibliográficas e indica o caminho do conhecimento e debate amplo:
“O debate acerca das tecnologias digitais e o capitalismo não pode ser um debate de nicho, pautado por interesses individuais ou de pequenos grupos sobre o tema. Deve ser um debate do conjunto das organizações em todas as suas dimensões, dado seus impactos na economia, na política, na geopolítica, na formação, na cultura, organização, mobilização e luta. Apenas com um debate amplo, coletivo e participativo poderemos definir os termos da ‘eficiência’ e das ‘soluções’ tecnológicas em uma perspectiva socialista.”
Schimidlehner acrescenta: “Devido à pressão cada vez maior, com a qual o capital promove a financeirização da natureza e a ruptura das relações humanas com ela, há uma necessidade urgente de entender essas novas tecnologias, que são uma ameaça iminente às comunidades remanescentes que dependem das florestas e apoiar suas resistências.”
Um visão um pouco mais otimista e centrada nos movimentos do trabalhadores vem de Esther Majerowicz: “Os povos estão crescentemente opondo-se aos resultados do capitalismo neoliberal, enquanto aparatos de vigilância e guerra são confrontados por resistência interna e externa de whistleblowers e de movimentos sociais. O que concretamente emergirá das expectativas que o estado e o capital estão depositando na renovação da infraestrutura de telecomunicações será contingente na resposta das massas de trabalhadores ao redor do mundo”.
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