A atriz Sidse Babett Knudsen tem atuação impecável como a doce mas realista primeira-ministra Birgitte Nyborg
Os países escandinavos, como Dinamarca, Suécia e Noruega, são vistos como exemplos para o mundo — dado o fato de, embora capitalistas de matiz socialdemocrata, suas sociedades serem mais igualitárias. O que a série “Borgen” — em exibição na Netflix, na terceira temporada (a quarta será em 2022) — mostra é a complexidade da sociedade e da política da Dinamarca. O país é mais multifacetado do que parece à primeira vista e a série disseca isto muito bem.
“Borgen” (Castelo, como os dinamarqueses chamam o Parlamento) é a história da primeira-ministra Birgitte Nyborg (personificada pela atriz Sidse Babett Knudsen).
Ao assumir o governo, Birgitte Nyborg, por não ter muita experiência política, precisa do aconselhamento de aliados, como o jornalista Kasper Juul, e do amigo Bent Sejro. Aos poucos, enfrentando raposas da política e com rara perspicácia, vai se firmando e descobrindo que as principais decisões de um líder — ainda que se possa consultar outras pessoas — são mesmo solitárias.
Birgitte Nyborg ouve as pessoas com atenção, às vezes segue o que postulam, mas, com sua personalidade tão forte quanto perceptiva, toma decisões por conta própria. Ela percebe que, no poder, não se pode fazer tudo e que é muito difícil fazer o bem de maneira ampla. É preciso jogar com as forças contrárias, adaptando as próprias ideias a partir do conflito com projetos diferentes. Ao final, tem de se aceitar um projeto que não se queria, mas que, se não é o melhor, é menos pior do que aquele que outros grupos planejavam impor.
Pelo caminho de um político em ascensão vão ficando aliados, às vezes atropelados pelo realismo do gestor. Devido à política de alianças, o primeiro a ficar para trás é o principal amigo e aliado de Birgitte Nyborg — Bent Sejro. Depois, ao perceber que ainda podia dar uma contribuição, ele é reconvocado. Mas a primeira-ministra agora ouve mais pessoas e formula seu próprio ideário.
Kasper Juul — que foi abusado sexualmente pelo pai, na infância — é um jornalista que entende como poucos tanto de comunicação quanto de política e também de uma certa “maldade” que cerca o mundo dos governantes e parlamentares. Birgitte Nyborg segue quase tudo o que propõe, mas às vezes segue suas próprias intuições, contrariando o assessor presciente.
Quem também fica pelo caminho, atropelado pelo realismo da primeira-ministra, é Amir Diwan, um muçulmano dinamarquês. Ele é filiado ao Partido Verde e não quer aprovar um projeto de Birgitte Nyborg. Então, a primeira-ministra autoriza Kasper Juul a municiar a imprensa com a história de que o ecologista mantém um automóvel antigo que gasta muito combustível. A reportagem massacra Amir Diwan, que acaba tendo de deixar o partido.
Ao perceber que havia passado dos limites, Birgitte Nyborg pede “desculpas” a Amir Diwan e admite que foi a responsável pela publicação das reportagens. A primeira-ministra sugere, com seu ato, que as razões de Estado estão acima das razões do indivíduo.
O exercício do poder é ligado ao realismo. Um gestor precisa decidir, e, no mais das vezes, tem de agir rapidamente. Por isso, não há tempo suficiente para pensar nas consequências. Então, a mão pesada pode ser destrutiva.
Se um político, como qualquer ser humano, tem de ser avaliado pela média, e não pelos extremos (pelos extremos têm de ser avaliados ditadores, como Stálin e Hitler), há de se concluir que Birgitte Nyborg é uma grande política e governante, sobretudo porque coloca o bem comum acima das questões privadas e de interesses pessoais e de grupos.
O poder exige muito dos políticos. E, se o governante é uma mulher, o sacrifício acaba por ser maior. Dado o cargo, que exige muito dela, Birgitte Nyborg acaba por ter problemas com o marido, Philipp Christensen (Mikael Birkkjaer).
Philipp é professor de economia e cuida da casa e dos filhos. Mas, a partir de determinado momento, começa a questionar o fato de Birgitte Nyborg quase não parar em casa — a filha começa a ficar deprimida — e arranja um trabalho de CEO numa empresa. Porém, como a empresa tinha negócios com o governo, teve de deixar o cargo. O casal acaba se separando.
Birgitte Nyborg ama Phillip e vice-versa, mas o casamento vai mal. Numa prova de que se tornou uma realista absoluta, a primeira-ministra sugere que o casamento seja mantido e que vai tolerar possíveis casos do marido, que não aprova sua proposta e sai de casa.
Mais tarde, Birgitte Nyborg deixa de ser primeira-ministra e passa a ser consultora, bem-sucedida. Ganha dinheiro e viaja pelo mundo. Ela começa a namorar o inglês Jeremy Welsh (Alastair Mackenzie) e, ao verificar o que novo primeiro-ministro está fazendo — contribuindo para tornar a Dinamarca mais conservadora e fechada a imigrantes —, decide voltar à política.
Numa operação malsucedida, Birgitte Nyborg tenta retomar o comando do partido dos Moderados. Leva uma rasteira e decide criar um novo partido, os Novos Democratas. E assim vai… na sua tentativa de retomar o controle do governo da Dinamarca.
As relações entre a política e o jornalismo na Dinamarca não diferem muito de outros países, como o Brasil. Há relacionamentos moralmente promíscuos. Katrine Fonsmark (Birgitte Hjort Sorensen) é considerada uma repórter ética e idealista. Sua principal fonte é o namorado (depois, marido) Kasper Jull, o assessor de imprensa da primeira-ministra. Noutra temporada, ela mesma passa a assessorar Birgitte Nyborg, agora na oposição, e Kasper Jull se torna apresentador de um programa de televisão, ao lado do diretor-editor Torben Friis.
Há também jornalismo “marrom”, que se preocupa mais com audiência e sensacionalismo do que com a qualidade da informação.
A Dinamarca, que é muito menor do que Goiás e tem menos de 6 milhões de habitantes (o Estado brasileiro tem 7 milhões), é um país com alta qualidade de vida. Mas o que a série mostra é que, no fundo, seus problemas, inclusive os dilemas éticos e ambientais (como excesso de antibióticos na carne de porco), são parecidos com os de quaisquer outros países. Não deixa de ser sintomático que os episódios comecem com citações de Maquiavel e Churchill — dois realistas absolutos.
A atriz Sidse Babett Knudsen faz uma impecável e crível primeira-ministra Birgitte Nyborg. Assim como estão muito bem Birgitte Hjort Sorensen e Pilou Asbaek. Mas é ela quem, com sua atuação precisa, sua diplomacia e seu belo sorriso (às vezes natural), segura a série.