terça-feira, 27 de julho de 2021

QR codes invadem restaurantes na pandemia e levantam debate sobre privacidade, NYT FSP

 

Erin Woo
SAN FRANCISCO | THE NEW YORK TIMES

Quando as pessoas entram no Teeth, um bar no bairro de Mission, em San Francisco, o segurança lhes explica as opções: elas podem pedir comida e bebida no balcão, ele diz, ou por meio de um QR code.

Cada mesa no Teeth tem um cartão contendo o código, um quadrado com um padrão em pixels. Basta o cliente registrar o código com a câmera de seu celular para abrir um site que contém o cardápio do bar. Depois o cliente pode inserir as informações de seu cartão de crédito para pagar, sem precisar mexer em cardápios de papel ou interagir com garçons.

Uma cena como essa era raridade 18 meses atrás, mas não mais. “Em 13 anos como dono de bar em San Francisco, jamais vi uma mudança tão grande, que tenha levado a maioria dos clientes a alterar seu comportamento tão rápido”, disse Ben Bleiman, dono do Teeth.

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Teeth, bar em San Francisco. Estabelecimento começou a usar cardápios digitais por meio de QR code em agosto - Ulysses Ortega - 9.jul.2021/The New York Times

Os QR codes —essencialmente uma forma de código de barra que permite transações sem contato físico— emergiram como traço permanente do mundo da tecnologia, com a pandemia do coronavírus. Restaurantes os adotaram em massa, cadeias de varejo americanas como a CVS e a Foot Locker os acrescentaram às suas caixas registradoras, e anunciantes os espalharam por suas embalagens, promoções em mala direta, outdoors e comerciais de TV.

Mas a difusão dos códigos também permitiu que empresas integrassem mais sistemas de rastreamento, direcionamento e análise de dados, o que desperta a desconfiança dos especialistas em privacidade. Isso acontece porque os QR codes têm a capacidade de armazenar informações, por exemplo quando, onde e com que frequência eles são digitalizados. Eles também podem abrir um app ou site que em seguida rastreia informações pessoais ou exige que visitantes as insiram.

Como resultado, os QR codes permitiram que alguns restaurantes criassem bancos de dados sobre os históricos de pedidos de seus fregueses e suas informações de contato. Em cadeias de varejo, em breve os consumidores poderão se ver confrontados por ofertas e incentivos personalizados incluídos em sistemas de pagamento via QR code.

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“As pessoas não compreendem que, quando usam um QR code, inserem todo um aparato de coleta de informações entre elas e sua refeição”, disse Jay Stanley, analista sênior de políticas públicas da American Civil Liberties Union (ACLU), uma organização americana de defesa dos direitos civis. “Subitamente, uma atividade offline como ir a um restaurante para uma refeição se torna parte do império da publicidade online”.

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Ben Bleiman, proprietário do Teeth, bar em San Francisco - Ulysses Ortega - 9.jul.2021/The New York Times

Os QR codes podem ser novidade para os consumidores americanos, mas são populares internacionalmente há anos. Inventados em 1994 a fim de enxugar o processo de montagem de carros em uma companhia japonesa, os QR codes passaram a ser usados amplamente na China nos últimos anos, depois de serem integrados aos apps de pagamento digital AliPay e WeChat Pay.

Nos Estados Unidos, a tecnologia foi prejudicada por usos de marketing desajeitados, falta de compreensão da parte dos consumidores e pela dificuldade criada pela necessidade de recorrer a um app especial para ler os códigos, disse Scott Stratten, que em 2013 escreveu o livro “QR Codes Kill Kittens”, com sua mulher, Alison Stratten.

Isso mudou por dois motivos, segundo Scott Stratten. De acordo com ele, em 2017 a Apple tornou possível que as câmeras dos iPhones reconhecessem QR codes, o que ajudou a expandir o uso da tecnologia. Depois veio “a pandemia, e é espantoso o que uma pandemia pode nos levar a fazer”, ele disse.

Metade dos operadores de restaurantes com serviço de mesa nos Estados Unidos adotou cardápios com QR codes, do começo da pandemia para cá, de acordo com a Associação Nacional de Restaurantes americana. Em maio de 2020, o PayPal introduziu pagamentos por QR codes, e eles depois disso foram adotados na CVS, Foot Locker e por cerca de um milhão de pequenas empresas. A Square, outra empresa de pagamentos digitais, lançou um sistema de pedidos por QR code para restaurantes e lojas em setembro.

As empresas não querem abrir mão dos benefícios que os QR codes trouxeram aos seus resultados, disse Sharat Potharaju, presidente-executivo da companhia de marketing digital MobStac. Descontos e ofertas especiais podem ser incorporados a sistemas de QR code e são fáceis de mostrar às pessoas quando elas estão olhando para seus telefones, ele disse. Empresas também podem recolher dados sobre os padrões de gastos dos consumidores por meio de QR codes.

“Com a mídia tradicional, como um outdoor ou comercial de TV, pode-se estimar o número de pessoas que viram o anúncio, mas não se sabe quantas delas efetivamente interagiram com ele”, disse Sarah Cucchiara, vice-presidente sênior da Brand Muscle, uma empresa de marketing que introduziu um produto relacionado a QR codes para cardápios no ano passado. “Com os QR codes, é possível obter informações sobre as pessoas que interagem com os códigos”.

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Fundadores do Cheqout, Jamie Sunderland, à esquerda, e Tom Sharon, à direita. Sharon diz que restaurantes que usam cardápios em QR code economizam 30 a 50% de custos laborais - Ulysses Ortega - 9.jul.2021/The New York Times

A Cheqout e a Mr. Yum, duas empresas iniciantes que vendem tecnologia para a criação de QR codes em cardápios de restaurantes, também dizem que os códigos propiciam vantagens aos negócios.

Restaurantes que usam QR codes em seus cardápios podem economizar entre 30% e 50% em custos de mão de obra ao reduzir a necessidade de garçons para anotar pedidos e receber pagamentos, disse Tom Sharon, um dos fundadores da Cheqout.

Cardápios digitais também tornam fácil persuadir as pessoas a gastar mais, com ofertas para incluir uma porção de fritas ou usar bebidas mais caras como ingredientes de coquetéis, com fotos de itens do cardápio para tornar a ideia mais atraente, disse Kim Teo, uma das fundadoras da Mr. Yum. Pedidos realizados por meio do QR code também permitem que o Mr. Yum informe aos restaurantes que itens estão vendendo mais, para que eles possam ser destacados no cardápio, ou facilitam que os restaurantes promovam mais os pratos que desejam vender.

Essas capacidades digitais expandidas são o que preocupa os especialistas em privacidade. O Mr. Yum, por exemplo, usa cookies no cardápio digital para rastrear o histórico de compras de um cliente, e dá aos restaurantes acesso a essas informações, vinculada aos números de telefone e cartão de crédito do cliente. Teo disse que a empresa está testando um software na Austrália que permite que restaurantes ofereçam aos fregueses uma seção com pratos “recomendados para você”, tendo por base pedidos anteriores que tenham feito.

Os QR codes são “um importante primeiro passo rumo a tornar as experiências em espaços físicos que uma pessoa tenha fora de casa mais parecidas com o rastreamento que o Google realiza sobre as atividades dela em suas telas”, disse Lucy Bernholz, diretora do Digital Civil Society Lab da Universidade Stanford.

Teo disse que os dados dos clientes de cada restaurante só estavam disponíveis para aquele estabelecimento, e que o Mr. Yum não usa informações para fazer contato com os clientes. E tampouco vende dados a terceiros, ela disse.

O Cheqout recolhe apenas nomes e números de telefone dos clientes, além de informações de pagamento protegidas, e não vende nada disso a terceiros, de acordo com Sharon.

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Teeth começou a usar cardápios por meio de tecnologia QR code em agosto - Ulysses Ortega - 9.jul.2021/The New York Times

Em uma noite recente de chuva, no Teeth, clientes falaram sobre experiências nem sobre satisfatórias com o sistema de pedidos via QR code da Cheqout, que o bar instalou em agosto. Alguns disseram que era conveniente, mas acrescentaram que prefeririam um cardápio tradicional, em um restaurante da moda.

“Se você está em um encontro, ter de ficar apanhando o celular desvia a atenção”, disse Daniela Sernich, 29.

Jonathan Brooner-Contreras, 26, disse que fazer pedidos por meio de QR codes era conveniente, mas que ele tinha medo de que a tecnologia o levasse a perder seu emprego como bartender em outro bar do bairro.

“É como uma fábrica que substitua todo seu pessoal por robôs”, ele disse. “As pessoas dependem daquelas 40 horas por semana”.

Independentemente dos sentimentos dos fregueses, Bleiman disse que os dados do Cheqout mostravam que cerca de metade dos pedidos do Teeth —e até 65%, durante eventos esportivos televisados— entravam pelo sistema de QR code.

“As pessoas podem não gostar do sistema”, ele disse em uma mensagem de texto. “Mas o estão usando mesmo assim”.

Tradução de Paulo Migliacci


segunda-feira, 26 de julho de 2021

Brasil tentou adquirir ferramenta espiã, Ronaldo Lemos, FSP

 

Repercutiu globalmente o escândalo do Pegasus, tecnologia que vem sendo usada para espionar pessoas como jornalistas e ativistas ao redor do mundo.

Sua operação é assustadora. Ele funciona no modelo “zero clique”. Não é preciso nenhuma ação ou clique por parte da vítima. Basta escolhê-la, e o celular dela praticamente se abre para o atacante, que passa a ter acesso a mensagens, fotos, listas de contatos e assim por diante. Mesmo que você use a versão mais moderna do iPhone ou de um celular Android, ele estará igualmente vulnerável.

O Pegasus é uma arma. Na hierarquia das armas tecnológicas, ele está no topo em termos de capacidade de dano e sofisticação. O sistema é vendido pela empresa israelense NSO. Ela afirma que só vende para governos que respeitam direitos humanos. No entanto, há evidências apontando que países que são contumazes violadores dos direitos humanos estão usando o sistema.

Fachada da empresa NSO, criadora do Pegasus, em Herzliya, Israel - Jack Guez - 28.ago.16/AFP

O Brasil tentou adquirir esse sistema recentemente da forma mais estranha possível. Foi utilizada a modalidade de aquisição chamada “pregão”, que por lei só pode ser usada para produtos simples como lápis, borracha, maços de papel e outros. Jamais para uma ferramenta estratégica militar com repercussões para a segurança nacional e impacto geopolítico. Após reportagem publicada no UOL, a representação da empresa israelense abandonou o procedimento de aquisição.

O Brasil deveria estar preocupado, primeiro, em defender seus cidadãos contra ataques de uma arma como essa. E não com a aquisição dessa arma para aplicá-la contra seus próprios cidadãos. O que, diga-se, é prática de constitucionalidade duvidosa e, no mínimo, requer autorização prévia do Poder Judiciário nos termos da lei de interceptação.

Outro ponto importante é que o Pegasus não é só um software. Ele é uma infraestrutura. Para funcionar nesse modelo “zero clique”, ele precisa de uma série de plataformas. Uma das vulnerabilidades mais exploradas não é no lado das empresas de tecnologia, mas sim no das empresas de telecomunicações.

É na ponta das teles, por exemplo, que o software explora protocolos de envio de mensagem antigos com o SS7, desenvolvido nos anos 1970 e usado até hoje, para invadir celulares. Ou ainda, a empresa infiltra funcionários duplos nas teles para abrir caminhos. Ou ainda, cria torres de celular falsas perto da casa das vítimas, para que se conectem nelas sem perceber, sendo assim atacadas.

Em outras palavras, a prevenção desses ataques passa não só pela parte de software como pela de infraestrutura da rede. Compartilhar ações de prevenção com as teles e criar um plano multissetorial de prevenção a esse tipo de ataque é essencial. Aliás, multissetorialidade é estratégia-chave para cibersegurança. Há muito pouco que o Estado pode fazer sozinho. É preciso trabalhar sempre em conjunto com a comunidade científica, com o terceiro setor e com o setor privado.

Foi o que aconteceu no caso do Pegasus. Foi graças à Anistia Internacional, organização do terceiro setor, e ao centro de pesquisa Citizen Lab, da Universidade de Toronto, que a estrutura do Pegasus e seu uso em larga escala foram revelados. Lições importantes para o Brasil, que está no 66º lugar no ranking de cibersegurança global, atrás de boa parte dos vizinhos latino-americanos.

READER

Já era Vírus de computador inofensivos

Já é A epidemia dos ataques de ransonware

Já vem Ataques de espionagem ‘zero clique’


Mathias Alencastro - O sonho de Shinzo Abe, FSP

 O governo japonês venceu o primeiro teste: apesar das sondagens indicarem que uma maioria rejeitava a organização das Olimpíadas, a transmissão televisiva da cerimônia de abertura teve uma audiência recorde. Uma pequena vitória celebrada como um triunfo pelo premiê Yoshihide Suga, cuja principal missão é desmentir a ideia de que as Olimpíadas estão sendo organizadas contra a vontade dos japoneses.

O então primeiro ministro do Japão, Shinzo Abe, vestido como o personagem Mario, no encerramento das Olimpíadas do Rio, em 2016 - Stoyan Nenov - 21.ago.2016/Reuters

Uma situação inesperada. As Olimpíadas foram trazidas para o Japão pela mão da figura dominante da política nacional neste século: Shinzo Abe, premiê de 2006 a 2007 e depois de 2012 a 2020. O seu objetivo era claro: reativar a memória das Olimpíadas de 1964, quando o Japão, em pleno milagre econômico, celebrou a sua ressurreição depois da Segunda Guerra Mundial.

Reeleito triunfalmente em 2012, o novo premiê prometia uma modernização revisionista: uma política econômica ousada, chamada posteriormente de Abenomics, ajudaria o Japão a relançar a sua indústria. No pano de fundo, Abe, herdeiro de uma dinastia política ultranacionalista, acertaria contas com o passado. Sob o seu comando, o país abandonaria o pacto pacifista construído no pós-guerra pelos Estados Unidos. Nas palavras de Abe, a organização das Olimpíadas de 2020 serviria para “mudar o estado de espírito declinista”.

O plano não correu como previsto. Num cenário semelhante ao do Brasil em 2016, as Olimpíadas de 2021 chegaram tarde demais, quando a sensação de regresso ao marasmo já havia se substituído à euforia dos anos de ouro. A pandemia, e a sua gestão caótica por um governo que nunca conseguiu encontrar o tom certo, reverteu todos os ganhos econômicos conquistados desde 2012.

Durante esse período, o Japão tampouco evoluiu nos grandes desafios dos nossos tempos. A política energética pró-carvão foi na contramão do mundo e o programa de paridade de gênero no mercado de trabalho, especialmente estratégico numa sociedade com taxas de natalidade em mínimos históricos e avessa a incentivos migratórios, trouxe resultados desalentadores. As inúmeras partidas de golfe que jogou com Donald Trump pouco ajudaram Abe a impedir o avanço da China. Símbolo maior do seu fracasso, a sua ideia de um Japão autônomo e militarista nunca suscitou adesão popular.

O corpo de Abe parece não ter resistido ao esgotamento do seu projeto político. No auge da pandemia, em agosto de 2020, quando já estava claro que o seu governo tinha perdido a sua aura, Abe se retirou por razões de saúde. Deixou no seu lugar o seu braço direito Suga, um político de bastidores, inexperiente em diplomacia, para comandar um Japão com fronteiras fechadas e estádios vazios.

O fim abrupto da era Abe deixou o país desorientado. Nas vésperas da cerimônia de abertura, os japoneses temiam tanto o vírus como o vexame de não estarem à altura das expectativas megalômanas criadas pelo ex-premiê. Mas esse mal-estar tem tudo para se dissipar durante a competição. O espírito olímpico supera todas as narrativas fabricadas por políticos, que nunca resistirão à tentação de amarrar o esporte ao destino nacional.