Quando as pessoas entram no Teeth, um bar no bairro de Mission, em San Francisco, o segurança lhes explica as opções: elas podem pedir comida e bebida no balcão, ele diz, ou por meio de um QR code.
Cada mesa no Teeth tem um cartão contendo o código, um quadrado com um padrão em pixels. Basta o cliente registrar o código com a câmera de seu celular para abrir um site que contém o cardápio do bar. Depois o cliente pode inserir as informações de seu cartão de crédito para pagar, sem precisar mexer em cardápios de papel ou interagir com garçons.
Uma cena como essa era raridade 18 meses atrás, mas não mais. “Em 13 anos como dono de bar em San Francisco, jamais vi uma mudança tão grande, que tenha levado a maioria dos clientes a alterar seu comportamento tão rápido”, disse Ben Bleiman, dono do Teeth.
Os QR codes —essencialmente uma forma de código de barra que permite transações sem contato físico— emergiram como traço permanente do mundo da tecnologia, com a pandemia do coronavírus. Restaurantes os adotaram em massa, cadeias de varejo americanas como a CVS e a Foot Locker os acrescentaram às suas caixas registradoras, e anunciantes os espalharam por suas embalagens, promoções em mala direta, outdoors e comerciais de TV.
Mas a difusão dos códigos também permitiu que empresas integrassem mais sistemas de rastreamento, direcionamento e análise de dados, o que desperta a desconfiança dos especialistas em privacidade. Isso acontece porque os QR codes têm a capacidade de armazenar informações, por exemplo quando, onde e com que frequência eles são digitalizados. Eles também podem abrir um app ou site que em seguida rastreia informações pessoais ou exige que visitantes as insiram.
Como resultado, os QR codes permitiram que alguns restaurantes criassem bancos de dados sobre os históricos de pedidos de seus fregueses e suas informações de contato. Em cadeias de varejo, em breve os consumidores poderão se ver confrontados por ofertas e incentivos personalizados incluídos em sistemas de pagamento via QR code.
“As pessoas não compreendem que, quando usam um QR code, inserem todo um aparato de coleta de informações entre elas e sua refeição”, disse Jay Stanley, analista sênior de políticas públicas da American Civil Liberties Union (ACLU), uma organização americana de defesa dos direitos civis. “Subitamente, uma atividade offline como ir a um restaurante para uma refeição se torna parte do império da publicidade online”.
Os QR codes podem ser novidade para os consumidores americanos, mas são populares internacionalmente há anos. Inventados em 1994 a fim de enxugar o processo de montagem de carros em uma companhia japonesa, os QR codes passaram a ser usados amplamente na China nos últimos anos, depois de serem integrados aos apps de pagamento digital AliPay e WeChat Pay.
Nos Estados Unidos, a tecnologia foi prejudicada por usos de marketing desajeitados, falta de compreensão da parte dos consumidores e pela dificuldade criada pela necessidade de recorrer a um app especial para ler os códigos, disse Scott Stratten, que em 2013 escreveu o livro “QR Codes Kill Kittens”, com sua mulher, Alison Stratten.
Isso mudou por dois motivos, segundo Scott Stratten. De acordo com ele, em 2017 a Apple tornou possível que as câmeras dos iPhones reconhecessem QR codes, o que ajudou a expandir o uso da tecnologia. Depois veio “a pandemia, e é espantoso o que uma pandemia pode nos levar a fazer”, ele disse.
Metade dos operadores de restaurantes com serviço de mesa nos Estados Unidos adotou cardápios com QR codes, do começo da pandemia para cá, de acordo com a Associação Nacional de Restaurantes americana. Em maio de 2020, o PayPal introduziu pagamentos por QR codes, e eles depois disso foram adotados na CVS, Foot Locker e por cerca de um milhão de pequenas empresas. A Square, outra empresa de pagamentos digitais, lançou um sistema de pedidos por QR code para restaurantes e lojas em setembro.
As empresas não querem abrir mão dos benefícios que os QR codes trouxeram aos seus resultados, disse Sharat Potharaju, presidente-executivo da companhia de marketing digital MobStac. Descontos e ofertas especiais podem ser incorporados a sistemas de QR code e são fáceis de mostrar às pessoas quando elas estão olhando para seus telefones, ele disse. Empresas também podem recolher dados sobre os padrões de gastos dos consumidores por meio de QR codes.
“Com a mídia tradicional, como um outdoor ou comercial de TV, pode-se estimar o número de pessoas que viram o anúncio, mas não se sabe quantas delas efetivamente interagiram com ele”, disse Sarah Cucchiara, vice-presidente sênior da Brand Muscle, uma empresa de marketing que introduziu um produto relacionado a QR codes para cardápios no ano passado. “Com os QR codes, é possível obter informações sobre as pessoas que interagem com os códigos”.
A Cheqout e a Mr. Yum, duas empresas iniciantes que vendem tecnologia para a criação de QR codes em cardápios de restaurantes, também dizem que os códigos propiciam vantagens aos negócios.
Restaurantes que usam QR codes em seus cardápios podem economizar entre 30% e 50% em custos de mão de obra ao reduzir a necessidade de garçons para anotar pedidos e receber pagamentos, disse Tom Sharon, um dos fundadores da Cheqout.
Cardápios digitais também tornam fácil persuadir as pessoas a gastar mais, com ofertas para incluir uma porção de fritas ou usar bebidas mais caras como ingredientes de coquetéis, com fotos de itens do cardápio para tornar a ideia mais atraente, disse Kim Teo, uma das fundadoras da Mr. Yum. Pedidos realizados por meio do QR code também permitem que o Mr. Yum informe aos restaurantes que itens estão vendendo mais, para que eles possam ser destacados no cardápio, ou facilitam que os restaurantes promovam mais os pratos que desejam vender.
Essas capacidades digitais expandidas são o que preocupa os especialistas em privacidade. O Mr. Yum, por exemplo, usa cookies no cardápio digital para rastrear o histórico de compras de um cliente, e dá aos restaurantes acesso a essas informações, vinculada aos números de telefone e cartão de crédito do cliente. Teo disse que a empresa está testando um software na Austrália que permite que restaurantes ofereçam aos fregueses uma seção com pratos “recomendados para você”, tendo por base pedidos anteriores que tenham feito.
Os QR codes são “um importante primeiro passo rumo a tornar as experiências em espaços físicos que uma pessoa tenha fora de casa mais parecidas com o rastreamento que o Google realiza sobre as atividades dela em suas telas”, disse Lucy Bernholz, diretora do Digital Civil Society Lab da Universidade Stanford.
Teo disse que os dados dos clientes de cada restaurante só estavam disponíveis para aquele estabelecimento, e que o Mr. Yum não usa informações para fazer contato com os clientes. E tampouco vende dados a terceiros, ela disse.
O Cheqout recolhe apenas nomes e números de telefone dos clientes, além de informações de pagamento protegidas, e não vende nada disso a terceiros, de acordo com Sharon.
Em uma noite recente de chuva, no Teeth, clientes falaram sobre experiências nem sobre satisfatórias com o sistema de pedidos via QR code da Cheqout, que o bar instalou em agosto. Alguns disseram que era conveniente, mas acrescentaram que prefeririam um cardápio tradicional, em um restaurante da moda.
“Se você está em um encontro, ter de ficar apanhando o celular desvia a atenção”, disse Daniela Sernich, 29.
Jonathan Brooner-Contreras, 26, disse que fazer pedidos por meio de QR codes era conveniente, mas que ele tinha medo de que a tecnologia o levasse a perder seu emprego como bartender em outro bar do bairro.
“É como uma fábrica que substitua todo seu pessoal por robôs”, ele disse. “As pessoas dependem daquelas 40 horas por semana”.
Independentemente dos sentimentos dos fregueses, Bleiman disse que os dados do Cheqout mostravam que cerca de metade dos pedidos do Teeth —e até 65%, durante eventos esportivos televisados— entravam pelo sistema de QR code.
“As pessoas podem não gostar do sistema”, ele disse em uma mensagem de texto. “Mas o estão usando mesmo assim”.
Tradução de Paulo Migliacci