Laura Trajber Waisbich
“Marquetagem imprópria, incompetente e inútil”. Foi assim que Elio Gaspari qualificou, em sua coluna na Folha (24/4/21), a carta de governadores ao presidente norte-americano, Joe Biden, no contexto da mais recente rodada de negociações internacionais sobre o clima.
O texto de Gaspari tem o mérito de abrir o debate sobre o papel das entidades subnacionais, particularmente dinâmicas em tempos de populismo e pandemia, nas relações internacionais brasileiras. No entanto, num contexto complexo de governança global policêntrica, é um equívoco menosprezar a diplomacia subnacional, seja em sua essência, seja em sua eficácia.
Longe de ser uma jabuticaba brasileira ou um devaneio de governadores do Nordeste ou da Amazônia Legal, o ativismo subnacional é cada vez mais importante na diplomacia de países como China, França e Estados Unidos. A descentralização da política externa para as regiões é, por exemplo, um componente essencial da estratégia chinesa na África. Os voos entre as capitais africanas e a China contornam os grandes centros como Pequim e Xangai e seguem diretamente para Chengdu, Sanya e Guangzhou.
Na agenda ambiental, o estado norte-americano da Califórnia desenhou uma ambiciosa agenda climática na contramão do negacionismo de Donald Trump. A Califórnia e outras duas dezenas de estados (inclusive o território de Porto Rico) se juntaram na chamada “U.S. Climate Alliance” a fim manter vivos e ativos os compromissos e as políticas de enfrentamento às mudanças climáticas, ainda que o então presidente tivesse se retirado do Acordo de Paris.
No Brasil, o tema tampouco é de hoje, como bem destaca Gaspari ao rever as relações Brasil-EUA durante as décadas de 1960 e 1970, mas não cessou de crescer com o fim da Guerra Fria. A diplomacia subnacional ganhou contornos ainda mais acentuados desde que Jair Bolsonaro assumiu o Executivo federal. O ativismo subnacional é especialmente visível no enfrentamento à pandemia de Covid-19 e no marco da renovada agenda climática.
No Brasil de Bolsonaro, o desespero da pandemia e a falência moral do Itamaraty sob Ernesto Araújo obrigaram as entidades subnacionais a repetirem o exemplo dos estados norte-americanos a tomarem iniciativas ousadas e, convenhamos, por vezes condenadas ao fracasso. O caso da diplomacia dos respiradores e agora das vacinas dos estados do Nordeste é um bom exemplo.
Tais iniciativas sinalizam, no entanto, um novo impulso de transformação estrutural da política externa brasileira, excessivamente controlada pela diplomacia tradicional, centrada em Brasília. Política externa não se faz apenas no Executivo federal, alijado dos governos subnacionais e de uma vasta gama de atores sociais. Ela pode e deve ser a soma de diferentes iniciativas regionais.
Para tornar essa inovação institucional uma realidade, precisamos nos distanciar de concepções clássicas e algo vetustas que associam o conceito de soberania unicamente ao poder que emana de Brasília (e por vezes de uma concertação no eixo Brasília-Rio-São Paulo). O governo federal não tem o monopólio do nacionalismo. Outros agentes do Estado e da sociedade também participam na vida soberana. E ao fazerem podem inclusive escancarar os abusos de governos como o de Bolsonaro, que sequestram o nacionalismo para atender a interesses privados.
Cada vez mais os atores subnacionais conseguem articular a crítica às desigualdades internacionais e a defesa do meio ambiente sem cair em clichês como o da “Amazonia é nossa”. Dar voz aos nossos atores locais e regionais é uma forma muito mais instigante de manifestar a nossa soberania.
A descentralização da política externa não é apenas uma reação emergencial a um momento raro de caos político, mas uma importante inovação institucional que torna a atuação brasileira no mundo mais democrática e eficiente nas grandes questões do século, começando pela política ambiental. É junto com os atores subnacionais, e não sem eles, que seremos capazes de reinventar nossa luta pela inserção soberana do Brasil no mundo.