quarta-feira, 2 de julho de 2025

Sou filho de analfabetos e escrever é vingança por eles, diz autor premiado, FSP

 Gabriela Caseff

Belém (PA)

Serra Pelada uniu os pais do escritor paraense Airton Souza, 43, nos anos 1980. Analfabetos e pobres, movidos pelo ouro, foram atraídos ao garimpo, à prostituição, ao jogo do bicho e ao alcoolismo.

Sem o retorno financeiro idealizado, os nordestinos viveram na miséria em Marabá (PA), tendo pouco além de milharina a oferecer aos filhos. Debaixo do teto destelhado onde a família morava, as crianças miravam estrelas e rezavam pelo fim da chuva —e Airton menino rascunhava seus poemas.

"Tive que aprender a mediar essa relação difícil entre ser trabalhador, que foi para isso que fui criado, e ser escritor. Escrever me manteve vivo. Serviu como vingança pelos parentes que não tiveram a chance de ler e escrever", diz ele.

Um homem está em um palco, segurando um livro aberto. Ele usa uma camiseta de manga longa azul clara e tem um microfone preso à orelha. O fundo é escuro, destacando sua figura enquanto ele parece estar falando ou apresentando algo.
O escritor paraense Airton Souza lê uma de suas obras no palco do TEDxAmazônia, em Belém - Felipe Martins/Divulgação

Em 2023, seu romance "Outono de Carne Estranha" (editora Record, 176 págs.) venceu o prêmio Sesc de Literatura. O enredo trata do amor entre dois garimpeiros. Uma das cenas, que descreve o sexo entre os homens, foi lida na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) naquele ano —e incomodou diretores do Sesc.

A polêmica levou a demissões, mudanças no edital do prêmio, circulação restrita no circuito do Sesc e ao fim da parceria de 20 anos entre o Grupo Editorial Record e a premiação que costuma revelar talentos.

As críticas, diz o autor, não o abalaram. "Do lugar que eu venho, pouquíssimas coisas me afetam de verdade. O que se tem é um olhar enviesado sobre quem escreveu, sobre a história que está sendo escrita. É um olhar de barbarismo."

Ele contou sua história à Folha minutos depois de se apresentar no TEDxAmazônia, em um domingo (8) de junho no Theatro da Paz, em Belém.

Souza foi o único que aceitou, nos bastidores, subir ao palco depois de Gaby Amarantos, que precisou adiantar seu show de encerramento. Temia-se o esvaziamento do público, mas o autor paraense foi aplaudido de pé.

"Meu pai entrou no alcoolismo obcecado pela ilusão de enriquecer. Foi o garimpo que trouxe esse problema para dentro da nossa casa.

Ele veio do Piauí para o Pará para ser garimpeiro em Serra Pelada. Assim como minha mãe, lavradora destemida que deixou nove irmãos e atravessou o Maranhão, aos 17 anos, em busca de uma vida além da roça. Nessa travessia, ela engravidou de mim.

Aqui em Marabá, Maria Barbosa foi parar em um cabaré. Não tive a oportunidade de conversar com minha mãe sobre isso, mas a gente pensa que ela se prostituía. E foi em Serra Pelada que ela conheceu meu pai, Raimundo, esse sujeito que não era meu pai de verdade, mas que me criou desde a hora em que eu nasci.

Éramos oito pessoas em uma casa feita de barro, sem piso. Eu e meus irmãos podíamos ver estrelas entre os espaços das telhas. E, quando chovia, eu rezava para acabar. Por mais de 20 anos, vivemos mergulhados na extrema pobreza, por dias comendo só milharina, aquela massa feita de milho com sal e água.

Um dos meus irmãos foi assassinado perto de casa. A boca ficou meio curvada, como se fosse gritar à nossa mãe pela última vez. A gente nunca soube o porquê daquela morte.

Depois do garimpo, meu pai foi cuidar de um cabaré. E nós nos mudamos para lá. Minha mãe lavava roupa e bancava jogo do bicho. E eu aprendi a bancar também, ainda criança, pois a essa altura meu pai já vivia para a bebida.

Cresci em um ambiente racista e homofóbico. Mas não culpo meus pais. Como vou apontar o dedo para uma pessoa que não aprendeu a escrever o próprio nome?

Aos 16 anos, engravidei uma menina de 14 e fui morar com ela. Abandonei a escola. E aí fui ser o que sempre fui, um trabalhador braçal. Montava feira de rua, fui borracheiro, sapateiro e ajudante em mercado.

E no meio disso tudo eu arranjava tempo para escrever. Sou filho de analfabetos, mas desde criança eu escrevia, só que tinha vergonha de mostrar meus textos, meus poemas. Aos 18 anos, tomei coragem. Mandei um deles para o jornal. E, quando o poema foi publicado, em outubro de 2000, eu me reconheci como autor.

Tive que aprender a mediar essa relação difícil entre ser trabalhador, que foi para isso que fui criado, e ser escritor. Escrever me manteve vivo. Serviu como vingança pelos parentes que não tiveram a chance de ler e escrever.

Fui o único filho que terminou o ensino médio, chegou à universidade e, depois, ao doutorado. Sou professor e escritor. Vim de uma pobreza que impede aos homens como eu compreender que a arte salva.

Nesses 25 anos dedicados à literatura, enfrentei todas as angústias que atravessa um escritor vivendo em um território silenciado. E ter me tornado leitor tardio, aos 30, fez com que esse processo fosse ainda mais dolorido. Mas foi essa maneira que encontrei para renomear as coisas as quais fui proibido de nomear.

Vim de uma pobreza que impede aos homens como eu compreender que a arte salva

Airton Souza

Autor de 'Outono de Carne Estranha'

Tenho 50 livros publicados, e um deles, 'Outono de Carne Estranha', recebeu premiações importantes.

Mesmo assim, a grande maioria das pessoas o lê com desconfiança, com aquele olhar enviesado pelo que a gente aqui do Norte produz. Por que essa história deveria ser escrita? É um olhar de barbarismo.

A violência foi o primeiro aprendizado que eu tive sobre a Amazônia, provocada por grandes projetos econômicos, como Serra Pelada. Mas a Amazônia não é território de barbárie. São anos de processos coloniais. Anos desse olhar estereotipado sobre nós. É uma falsa máquina progressista.

Durante o governo Bolsonaro, fizemos críticas ao garimpo na terra ianomâmi. Mas o que está acontecendo lá agora, acabou a garimpagem? Acabou o extermínio?

Do lugar que eu venho, pouquíssimas coisas me afetam de verdade. O único problema da minha vida é que sempre penso primeiro no que ela pode me ofertar de ruim. E não consigo me livrar disso."

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