Mario Chimanovitch
A devastação da floresta amazônica, brutalmente enfatizada no governo atual através da ação de madeireiros inescrupulosos, ausência premeditada de fiscalização e avanço célere das frentes garimpeiras, está deixando cada vez mais vulneráveis os povos indígenas que habitam a região. Uma ameaça dramaticamente enfatizada pela pandemia, que já fez vítimas entre diversas etnias.
Essa situação nos remete fatalmente à época do governo militar, que desejava transformar a Amazônia num imenso pasto. A Transamazônica era também a via natural para que a gripe, o sarampo e outras doenças servissem para dizimar centenas de índios enquanto o gado de investidores, como o apresentador de TV Silvio Santos, tomava lugar de árvores e gente. Era a chamada “frente pioneira”, na qual os militares esperavam materializar o grande projeto de colonizar a região sob a premissa falsa de que estaria “integrando-a” ao resto da nação.
Já no início da década de 1970, o sertanista Apoena Meireles, juntamente com os irmãos Villas Bôas, alertava para o perigo que o processo acarretaria para as nações indígenas amazônicas.
A situação culminou no pedido de demissão do sertanista da Funai (Fundação Nacional do Índio), em 7 de fevereiro de 1972, em carta encaminhada ao general Ismarth de Araújo Oliveira, então coordenador-geral de operações da Transamazônica. A estrada, identificada como BR-230 e hoje com 4.260 km, metade do previsto, "delirava" ligar o Nordeste brasileiro ao Peru e Equador. Era o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, e a ordem era rasgar a floresta a qualquer custo —de vidas, inclusive (que naqueles tempos tinham pouca importância). Elas eram o ônus do “Brasil grande”, o país que, cantavam, “vai pra frente”, e deixou saudades na Regina Duarte.
Para proteger as etnias da região, um punhado de sertanistas se mobilizava pelas matas na tentativa frustrante de evitar a razia levada por gripe, sarampo e outras doenças típicas do “homem branco”.
Um dos mais relevantes nomes desse pequeno grupo de sertanistas foi Apoena Meireles, herdeiro direto dos irmãos Leonardo, Claudio e Orlando Villas Bôas, por cujas mãos se consolidou o Parque Nacional do Xingu.
Apoena, filho do também sertanista Chico Meireles, trazia a questão indígena no DNA. Nascido na reserva xavante Pimentel Barbosa, em Mato Grosso, foi batizado com o nome de um cacique da etnia contatada pela equipe de seu pai.
Em 1972, com 23 anos, peitou os militares que exigiam a rápida liberação das terras lindeiras ao traçado da estrada e pediu a sua saída da Funai. Na carta em que formalizou o pedido, Apoena já criticava a burocracia cega. Dizia sair por não querer compactuar com “esbulho, exploração, miséria” que a ação militar impunha aos cintas-largas e aos suruís. E lamentava “ter contribuído para tal situação” nas ações de aproximação necessárias à liberação do percurso da estrada.
Afirmava, ainda, que tanto a Funai como o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) “não tomaram nenhuma providência concreta para solucionar o problema dos índios e dos colonos”. Quase meio século depois, a acusação ainda vale.
No mesmo tom do Brasil ufanista, o presidente Jair Bolsonaro insiste na aprovação de projetos que permitem exploração mineral e hídrica em terras indígenas (PL 191/2020) e legalização de terras griladas até dezembro de 2018. O argumento é que isso vai levar desenvolvimento às tribos que, em tese, se beneficiariam do negócio.
É mais do que sabido que não será assim. As grandes mineradoras não vão negociar com os índios, mas, sim, expulsá-los das terras já invadidas e registradas pelos grileiros. Uma coisa vem com a outra, e o saldo não tem como ser positivo.
Aos 55 anos, Apoena foi assassinado em 9 de outubro de 2004, à porta de um banco em Porto Velho (RO), já de volta à Funai e cuidando mais uma vez de conflitos entre garimpeiros e cintas-largas. A polícia concluiu que foi um simples assalto. Lideranças indígenas nunca acreditaram nessa versão. Pensando bem, por que deveriam acreditar?