quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Elio Gaspari Desconforto da Anvisa estimularia revolta contra a vacina voluntária, FSP

Depois de ter dito que a Covid era uma "gripezinha" que o brasileiro tiraria de letra e que a cloroquina era remédio eficaz, Jair Bolsonaro não deve esperar da plateia que ela lhe dê ouvidos.

Já morreram mais de 170 mil pessoas, número superior ao dos mortos de Hiroshima em 1945. Contra bomba atômica não há vacina, mas contra a Covid haverá. Enquanto o processo de imunização segue um curso de racionalidade pelo mundo afora, em Pindorama o jogo político contaminou a discussão.

O governador João Doria anunciou que começará a oferecer vacinas a partir do dia 25 de janeiro. Pintada para a guerra, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária apressou-se para informar que "não foram encaminhados dados relativos à fase três, que é a fase que confirma a segurança e eficácia da vacina, esse dado é essencial para a avaliação tanto de pedidos de autorização de uso emergencial quanto pedidos de registro".

Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde. A vacina só será oferecida em janeiro aos índios, quilombolas e profissionais de saúde. Quem anda pelas ruas de São Paulo não costuma cruzar com índios nem quilombolas. Restam os profissionais de saúde. Admitindo-se que esse burocrata existe, seria ridículo vê-lo dizendo ao doutor David Uip que não pode tomar a Coronavac.

Até as pedras sabem que os tribunais derrubarão quaisquer tentativas para impedir a aplicação das vacinas. Países andam para trás: em 1904 houve no Rio uma revolta contra a vacina obrigatória. O desconforto da Anvisa estimularia em 2020 uma revolta contra a vacina voluntária.

Bolsonaro falava em "menos Brasília, mais Brasil". Pois é disso que se precisa. Se o almirante da Anvisa ou o general do Ministério da Saúde tiverem argumentos para bloquear a aplicação da Coronavac, que coloquem a cara na vitrine dando suas razões. Há poucas semanas a Anvisa meteu-se num vexame suspendendo testes a partir da morte de um voluntário que se havia suicidado.

Bolsonaro e Doria acusam-se de fazer política no meio da pandemia. É verdade, mas um detalhe os separa. Um faz política com a "gripezinha", o outro oferece uma vacina.

A Coronavac só será oferecida para quem tem mais de 75 anos a partir de 8 de fevereiro. Jair Bolsonaro, se quiser, só poderá ser vacinado a partir de 22 de março, quando completará 65 anos.

O negacionismo de Bolsonaro levou-o a uma armadilha. Continuar na linha que adota desde março será apenas falta de juízo. A Anvisa e o Instituto Butantan têm profissionais qualificados para discutir as qualidades ou os defeitos da Coronavac. Um finge que se deve respeitar o rito burocrático e o outro finge que respeita esse mesmo rito, impondo-lhe um prazo de validade.

O ministro da Saúde, general Pazuello, fez fama como um especialista em logística. Reunido com governadores, disse a João Doria: "Não sei por que o senhor diz tanto que ela [a vacina] é de São Paulo. Ela é do Butantan".

Ganha uma viagem a Caracas quem souber a importância disso. Do jeito que o general fala, se a logística do desembarque na Normandia estivesse nas suas mãos, em agosto de 1944 os Aliados não estariam em Paris. Os alemães é que teriam chegado a Londres.

Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Antonio Delfim Netto Esperanças para 2021, FSP

 Depois de um ano trágico, diante de uma das maiores pandemias dos últimos cem anos, que tirou a vida de mais de 1,5 milhão de pessoas e deixou graves sequelas na economia mundial, os ventos para o próximo ano trazem maior prosperidade.

Pela primeira vez na história do homem, a ciência foi capaz de inventar, testar e produzir, em tempo recorde, uma vacina (mais de uma) para combater um vírus até então desconhecido. A notícia sobre o início do programa de vacinação em alguns países desenvolvidos já nesta semana e, ao que tudo indica, de boa parte de sua população até o primeiro semestre de 2021, traz otimismo para o desempenho da economia global no ano que vem.

Nos Estados Unidos, o início de um governo que diz que o país "está de volta, pronto para liderar", reforça essa percepção. O presidente eleito, Joe Biden, promete afastar-se do isolacionismo trumpista e refazer as pontes com os aliados históricos dos EUA e com as instituições multilaterais, como a OMC. Parece ter entendido o que Trump jamais conseguiu entender: que, apesar dos defeitos e dos erros cometidos nas últimas décadas por esses organismos, eles só poderão ser superados por uma aliança global crível, que faça com que todos cumpram as regras comuns do jogo ou arquem com as consequências.

A volta ao multilateralismo, entretanto, não significa uma política comercial necessariamente menos protecionista. Basta ver que o presidente eleito afirmou que, por enquanto, manterá as tarifas sobre a China e irá lutar para que a indústria americana invista na "América primeiro". Isso sugere que haja um respaldo bipartidário da população americana a essa agenda, reflexo dos efeitos da globalização, que, embora favoreça o crescimento e a produtividade, sem as políticas adequadas pode deixar sequelas sobre o emprego e a distribuição de renda.

De todo o modo, a prioridade de Biden à manutenção dos estímulos fiscais e a escolha de pessoas experientes, em Washington e na academia, para os postos-chave da administração, como a competentíssima Janet Yellen para o Tesouro, garantem uma política estimulativa mais duradoura, ao mesmo tempo em que os freios e contrapesos de um provável Senado republicano bloqueiam as políticas mais "criativas" da ala mais radical do Partido Democrata.

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Quanto ao Brasil, que não pode —nem deve— se desentender com seus principais parceiros comerciais, deveria aproveitar os ventos externos mais propícios para resolver seus problemas internos, abandonar sua ridícula e infrutífera vassalagem aos EUA e colocar os interesses nacionais como prioridade.

Antonio Delfim Netto

Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.

Ruy Castro Bolsonaro oficializou o faroeste, FSP

 Há anos fui abraçar um amigo, amado por muitos, e senti sob o casaco algo sólido na sua cintura. Uma arma, claro, e recolhi a mão. Ele não percebeu minha repulsa, mas fiquei triste. Por que alguém iria armado a um encontro de pessoas que se estimavam? Temia ser atacado, precisaria se defender e, talvez, reagir atirando? O que teria feito para isso? E só então o travo se dissipou. O objeto era um celular.

Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, deixou-se fotografar há dias com pai e irmãos no gabinete presidencial com um trabuco no cinto. O Planalto tem segurança própria, donde ninguém deveria sentir-se em perigo. Mas, conhecendo bem o governo de que faz parte, Eduardo Bolsonaro está atento. Com a quantidade de armas de fogo em mãos de particulares no Distrito Federal, nem o palácio é seguro. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o registro de armas no DF cresceu 539% em 2019, e um em cada 11 de seus cidadãos anda armado —sem contar o mercado ilegal.

Para sorte dos Bolsonaros, muitos dos brasileiros armados são seus amigos. Como a polícia acaba de descobrir, Ronnie Lessa, acusado de assassinar Marielle Franco e ex-vizinho do presidente num condomínio na Barra, comprava ferramentas pela internet para a montagem de fuzis de guerra. Imagino que, em seus churrascos, eles trocassem dicas sobre balas dum dum e silenciadores.

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Bolsonaro oficializou o faroeste. Um decreto seu dificultou o rastreamento das armas em circulação. Com isso, o armamento apreendido diminuiu e o que volta para o crime aumentou. Qualquer um compra agora 300 munições por mês —eram 50 por ano até há pouco. Pessoas apontam armas no nariz uns dos outros e bandos praticam assaltos de cinema. Aumentou o feminicídio. Bandidos e policiais continuam matando e morrendo e, cada vez mais, sobram balas para as crianças.

Eduardo Bolsonaro tem razão em andar prevenido.

O presidente Jair Bolsonaro com os filhos, Flavio, Carlos, Eduardo, com revólver na cintura, e Renan - @BolsonaroSP no Twitter.
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.