Paulo F. G. Harkot, Elizabeth Harkot de La Taille e Yann H. de La Taille
Ausência
Carlos Drummond de Andrade
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Marina era uma pessoa da construção. Marina era uma pessoa da construção e em construção. Na madrugada do dia 8 de novembro, sua morte tirou o chão sob os pés de muita gente. Fez-se uma perda irreparável para Claudia e Paulo, seus pais; para Fabio, seu irmão; para Gabriel, seu meio-irmão; e para seus avós, tios e tias, primos, primas e sobrinhos, amigos, amigas, orientadores, companheiros de trabalho... E para Felipe, o companheiro escolhido para compartilhar a vida.
Mas Marina era uma pessoa da e em construção. Se a perda para familiares, para Felipe, amigos e amigas é irreparável, a perda para o país não é menor.
Marina foi brutalmente arrancada da vida aos 28 anos, enquanto pedalava voltando para casa. Foi violentamente atropelada por um motorista que só soube fugir e se esconder. Uma jovem mulher amorosa, bem-humorada, forte no modo de colocar seus valores, idealista, poliglota, ambiciosa, determinada. Uma idealista rara: do tipo capaz de colocar em ação seus valores.
Por isso, Marina era uma pessoa da construção. Seu trabalho, seus estudos, sua maneira de viver concretizavam a integridade de seus ideais em atos, em ações, em projetos para uma cidade mais humanizada, com trânsito menos selvagem.
Para uma cidade em que todas as pessoas, de todas as idades, condições sociais e gêneros tenham igualmente direito a ocupar livremente as ruas e calçadas, deslocando-se com segurança e respeito, para onde quiserem, na hora em que quiserem. Marina morreu daquilo que mais combatia: um sistema em que o carro é senhor absoluto e que dá a muitos motoristas a sensação de que são os donos do espaço.
Recebemos milhares de mensagens de dor, apoio, solidariedade, pêsames. Mensagens de afeto, enfim, que agradecemos do fundo do coração.
O que mais desejamos é que essa rede de afeto e mobilização que se teceu e se expande espontaneamente em torno da partida de Marina se mantenha firme e coesa, numa união por medidas concretas que humanizem a vida e a circulação nas cidades, evitando mortes prematuras de tantas pessoas.
Em 2019, segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de três crianças por dia perderam a vida para o trânsito no Brasil. Ano passado, o país ocupava o quarto lugar no mundo em maior violência no trânsito.
Marina era uma pessoa da e em construção. Onde quer que esteja estará bem, e temos certeza de que seu maior desejo é que levemos adiante seu poder de integração e construção materializado por tão belo legado. Façamos com que sua trágica morte contribua para a concretização de seus valores e seus ideais.
Assim, estaremos honrando sua memória e sua vida, ajudando-a a construir aquilo que, intuitivamente, sabia ser necessário. Desse modo, estaremos também transformando a ausência agora vivida em sua permanência. Em cada ato, em cada um, a cada dia, em cada vida vivida e, principalmente, em cada morte desnecessária evitada.
Marina Kohler Harkot (22.abr.1992 - 8.nov.20)
Mestre e doutoranda pela FAU-USP, pesquisadora do LabCidade e graduada em ciências sociais (FFLCH-USP)