quinta-feira, 5 de novembro de 2020

PAULO FELDMANN Quem vai pagar a conta?, FSP

 Paulo Feldmann

Professor de economia da USP e ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas)

O rombo fiscal deste ano, nele incluídos os juros que o governo federal precisa pagar, já supera R$ 1 trilhão. Não apenas é o maior de nossa história, mas, de acordo com a revista britânica The Economist, é o terceiro maior do mundo.

Esse déficit enorme se deve à queda na arrecadação decorrente da diminuição da atividade econômica, mas também ao aumento dos gastos do governo referentes à pandemia, aí incluído o auxílio emergencial. A questão que se coloca é como o Brasil pode voltar a ter uma situação fiscal equilibrada.

O professor de economia da USP Paulo Feldmann - Reinaldo Canato - 30.nov.18/Folhapress

Claro que o ideal seria o país voltar a crescer de forma vigorosa, pois assim voltariam os empregos, os investimentos e, para o governo, a arrecadação de impostos. Infelizmente, se isso acontecer, será apenas em 2022.

Agora, o caminho mais adequado seria promover uma reforma tributária que tornasse o Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) um imposto relevante e justo, aumentando significativamente a arrecadaçãoInjustiças não faltam, a começar pelo fato de que os super-ricos pagam muito pouco se comparados à classe média.

Segundo os dados que a Receita Federal divulga todos os anos, as famílias muito ricas, com renda acima de R$ 160 mil por mês, pagam em média 5% de impostos sobre tudo o que recebem; enquanto isso, uma família classe média alta, que recebe R$ 12 mil por mês, paga 15% de impostos.

Por que essa discrepância? Porque os super-ricos vivem de dividendos de suas ações, do lucro de suas empresas e raramente possuem algum salário. Ou seja, a renda dos super-ricos é isenta de Imposto de Renda, enquanto os salários são taxados pesadamente.

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Mas a injustiça não para por aí. Enquanto na grande maioria dos países o IRPF é o principal imposto, no Brasil ele tem um papel menor, representando apenas 17% do total que se arrecada no país. No Brasil, a grande maioria da arrecadação vem de impostos sobre produtos e serviços, como ISS, IPI ou ICMS. Acontece que esses modelos de impostos oneram os ricos e os pobres da mesma forma: todos pagam o mesmo sobre o quilo de feijão; o que, convenhamos, não é justo.

Na questão da taxação sobre as heranças, também fazemos o contrário da maioria dos países, que aplica uma taxa de 18%, enquanto a nossa é, na média, 4%. Fala-se que há o perigo da fuga de capitais, mas a verdade é que os bilionários, quando deixam o Brasil, o fazem por medo da violência —nunca pelos impostos.

Recentemente, a imprensa divulgou o levantamento da Oxfam, uma instituição internacional que mede o tamanho da pobreza no mundo. Por esse levantamento soubemos que o Brasil conta com 210 famílias bilionárias. Em apenas três meses, de março a junho deste ano, 20% deste grupo privilegiado —apenas 42 famílias— aumentaram sua fortuna em R$ 176 bilhões. Enquanto isso, 60 milhões de brasileiros dependem do auxílio emergencial para viver, o que custa ao governo R$ 36 bilhões por mês.

Ou seja, apenas o ganho trimestral dessas 42 famílias equivale a cinco meses do que o país gasta com o auxílio emergencial. Pelo mesmo levantamento soubemos que aquelas 210 famílias brasileiras super-ricas possuem bens equivalentes a R$ 1,7 trilhão, mas, no Brasil, não há imposto sobre patrimônio —exceção feita ao IPTU municipal.

Existe uma proposta de reforma tributária, em discussão no Congresso, que foi elaborada em conjunto por deputados, senadores e técnicos da Receita Federal. Chama-se RTS (Reforma Tributária Solidária). Ela propõe muitas das medidas acima mencionadas, que, se implementadas, trarão uma arrecadação adicional de R$ 290 bilhões ao governo federal. E isso taxando menos de 4% dos brasileiros.

O fato é que temos uma oportunidade única de resolver as várias mazelas brasileiras se levarmos a frente uma reforma que realmente ponha o dedo na ferida. Precisamos dar poder de consumo à imensa maioria da população brasileira, que é muito pobre. Os super-ricos precisam entrar com sua cota de sacrifício. Só uma reforma tributária justa e benfeita pode promover isso.

Startups ganham destaque ao engajar mulheres no mercado de trabalho, OESP

 Letícia Ginak, O Estado de S.Paulo

05 de novembro de 2020 | 05h02

Aumentar a presença das mulheres no mercado de trabalho e em cargos de liderança é o foco de duas startups que começam a despontar no cenário nacional. Vencedora do Startup Awards (premiação da Associação Brasileira de Startups entregue no fim de outubro) na categoria impacto social, a Se Candidate, Mulher tem apenas sete meses e surgiu como um projeto de mentoria e conteúdos gratuitos organizado por Jhenyffer Coutinho. A Women Leadership, criada por Isabella Quartarolli, também nasceu de um programa de educação e mentoria para mulheres, tornando-se startup há pouco mais de um ano. 

O cenário nacional para a carreira feminina respalda a pivotagem feita pelas criadoras desses negócios. A participação feminina no mercado de trabalho (indicador que considera mulheres com mais de 14 anos que trabalham ou estão procurando emprego) ficou em 46,3% no segundo trimestre deste ano. Desde 1990, o índice não atingia valor tão baixo, quando ficou em 44,2%, segundo o IBGE. Além disso, no início da pandemia, 7 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho na segunda quinzena de março, segundo Pnad. 

O conhecimento sobre os dados e a vivência no mercado de tecnologia impulsionaram Jhenyffer Coutinho a criar o Se Candidate, Mulher em abril. A administradora de empresas tinha acabado de se mudar para os Estados Unidos em um ano sabático, mas decidiu ajudar na recolocação de mulheres no mercado de trabalho compartilhando os conhecimentos que adquiriu em sua formação e na carreira, com passagem pelo Sebrae e atuando como gerente de gente e gestão na ABStartups. 

“Por mais que eu desenhasse uma vaga pensando no público feminino, porque a quantidade de mulheres no setor de tecnologia é muito baixa, sempre se candidatavam homens”, diz. Outro dado que a motivou foi descobrir em um workshop que grande parte das mulheres se candidatam apenas se tivessem 100% dos pré-requisitos para a vaga, enquanto os homens fazem isso com 60% das competências exigidas (segundo dados compilados por uma pesquisa da HP).

“Decidi criar uma newsletter para passar dicas de como montar um bom currículo, um perfil no LinkedIn e como se portar em entrevistas”, conta. De forma orgânica e com a ajuda das redes sociais, ela diz que o projeto cresceu vertiginosamente e, em meados de julho, entendeu que poderia se posicionar como um negócio. 

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Jhenyffer Coutinho criou o Se Candidate, Mulher para ajudar profissionais femininas a se recolocarem no mercado de trabalho.  Foto: ABStartups

“Tenho essa bagagem de startups e percebi que sai da parte da ideação e tinha validado o problema. Então trouxe um time para trabalhar comigo”, conta. De acordo com a fundadora, até agora a startup contribuiu para a recolocação de 97 mulheres no mercado de trabalho e já mentorou mais de 150 profissionais femininas. São 3 mil membros na comunidade que criou nas redes LinkedIn, WhatsApp e Telegram, nas quais troca conhecimentos e dá mentorias. 

Ganhar o Startup Awards em outubro foi uma surpresa para ela, segundo quem a premiação abriu espaço para a startup ser notada pelo ecossistema. “Recebemos convite de aceleradoras, investidores-anjo nos procuraram para entender o modelo, empresas nos procuraram para acessar nosso banco de dados e também para receber consultorias. Os holofotes se viraram para nós.” 

O primeiro produto lançado no mercado foi uma aula sobre como construir o perfil no LinkedIn, o currículo e dicas para se sair bem na entrevista. A aula aconteceu em outubro, com 150 participantes. Jhenyffer e o time da startup, composto por 19 mulheres, planejam lançar mais produtos ainda neste ano. Sobre o futuro da empresa, Jhenyffer já planeja a volta para o Brasil, em janeiro, e pretende apostar no modelo bootstrap, em que a empresa se financia com os próprios recursos.

Treinamento para cargos de liderança

Há pouco mais de um ano no mercado, a Women Leadership também surgiu como um projeto antes de pivotar o modelo e se tornar uma startup. A ideia foi criada por Isabella Quartarolli, que trabalhava no hub de inovação curitibano How Education.

“Tive muito contato com o ecossistema de startups e percebi que havia poucas mulheres em cargos de liderança ou mesmo fundadoras de startups. Propus então criar esse projeto na área de educação para falar de liderança feminina”, conta. 

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Isabella Quartarolli foca no desenvolvimento de líderes mulheres por meio da startup Women Leadership. Foto: Arquivo Pessoal

Antes atuando por meio de eventos e bootcamps presenciais, toda a metodologia teve de ser adaptada para o online com a pandemia. Agora, com um curso de 20 horas divididas em quatro módulos, a CEO conta que já está na terceira edição e vê vantagens no novo modelo. “O online deu a possibilidade de eu aumentar o alcance e conseguir escalar. Já tive na turma uma mulher da Argentina e na próxima teremos uma da França e outra em Portugal”, diz.

“Ser uma edtech também foi positivo, é uma área que se desenvolveu bastante na pandemia porque as pessoas começaram a querer estudar e se capacitar. É um mercado que vai crescer muito daqui para frente e quem se consolidou na pandemia vai colher mais frutos”, completa. A metodologia conta com técnicas para desenvolver soft skills, mentorias com grandes nomes femininos à frente de empresas e startups no País e um módulo prático. 

Atualmente atendendo nos formatos B2C e B2B, está nos planos de Isabella criar um modelo específico para o B2B para 2021. “As empresas já estão olhando para isso (diversidade de gênero), viram o quanto é importante e vão investir na capacitação do time”, acredita. As inscrições para a próxima turma, que acontecerá ainda este ano, estão abertas. 


Agnese, Beatrice e Parisina foram decapitadas por terem desejos, FSP

 

Eu assisti à opera "Beatrice di Tenda", de Vincenzo Bellini, ainda menino, provavelmente na Scala de Milão. Beatrice era Joan Sutherland, a soprano australiana que todos chamavam "la stupenda".

Beatrice é uma de três mulheres, filhas de famílias poderosíssimas, que, entre 1391 e 1425, foram condenadas à morte por seus cônjuges —isso, no norte da Itália, que na época era uma constelação de pequenos Estados e cidades independentes.

Agnese Visconti (dos Viscontis de Milão) casara com Francesco Gonzaga, senhor de Mântua. Beatrice Tenda (viúva de Facino Cane, um dos maiores capitães de exército mercenário) casara com Filippo Maria Visconti, duque de Milão, e Parisina Malatesta (dos senhores de Rimini) casara com Nicoló 3º d'Este, senhor de Ferrara.

Bustos de três mulheres com trajes antigos que cobrem suas cabeças, mostrando apenas os rostos, elas estão com expressões tristes. Cada uma tem seu um nome escrito na imagem, Christine de Pizan, Isotta Nogarola e Marguerite de Navarre. O fundo é tomado por fogo
Luciano Salles/Folhapress

Elas foram acusadas de adultério e decapitadas; seus amantes executados. Os adultérios eram verdadeiros, salvo, provavelmente, no caso de Beatrice.

Dois excelentes historiadores da Renascença italiana, Elizabeth Crouzet-Pavan e Jean-Claude Maire Vigueur, acharam essas execuções estranhas.

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As denúncias públicas por adultério, na época, eram raras. Não que faltassem os comportamentos adúlteros, mas, em geral, o adultério era tolerado ou silenciado porque o traído não tinha muito o que ganhar tornando pública a "traição" sofrida. Além disso, a punição legal não seria a morte.

Em suma, se os adúlteros e as adúlteras dessa época fossem mortos, seriam provavelmente assassinados numa rua escura ou envenenados, sem que o adultério fosse mencionado como razão da "punição".

A partir dessa constatação inicial, Crouzet-Pavan e Vigueur começaram uma pesquisa que é hoje um livro, infelizmente ainda sem tradução em português, "Décapitées - Trois Femmes dans l'Italie de la Renaissance" (decapitadas, três mulheres na Itália da Renascença, ed. Albin Michel, 2018).

Perguntas. Por que, no espaço daquelas três décadas, essas três mulheres foram condenadas à morte e executadas por um crime que, em regra, até então, seria sobretudo silenciado e escondido e que, mesmo tornado público, não implicaria a pena de morte?

E por que tudo aconteceu com uma certa cumplicidade das famílias das três jovens? Afinal, se as famílias de origem tivessem engrossado o tom, provavelmente os maridos traídos teriam desistido de massacrar suas mulheres infiéis.

Mas tudo parece acontecer numa conivência generalizada, em que a morte dessas mulheres, misteriosamente, parece interessar a todos, aos maridos, à família de origem e, por que não, à sociedade inteira.

Como isso se explica? A resposta dos autores, no fim de sua indagação pelos arquivos (quando eles não foram destruídos propositalmente pela suposta "Justiça"), é que a morte das três adúlteras foi uma maneira de consolidar um poder senhorial que tentava e precisava muito se afirmar.

Mas essa consolidação do poder dos senhores se dá de um jeito específico: sacrificando suas mulheres, que se revelaram livres além da conta.

Ou seja, é como se as mortes de Agnese, Beatrice e Parisina fossem uma reação contra a nova liberdade e o novo peso político, cultural e simbólico das mulheres no mundo das senhorias renascentistas, ou seja, na aurora da modernidade.

Claro, a mulher renascentista ainda parecia ter só uma escolha "aceitável": o casamento ou o convento. Mas, no fim do século 14, as mulheres começam a voltar publicamente para o palco da história.

Seria bom, aliás, que nossas meninas, hoje, conhecessem as vidas e obras de Christine de Pizan (1364-1430), Isotta Nogarola (1418-1466), Marguerite de Navarre (1492-1540) e muitas outras. Quem eram? Hoje é fácil saber: use a internet.

E, ao reaprender a história das mulheres e de seu suposto "silêncio" no passado, não se esqueça de Agnese, Beatrice e Parisina, que foram "canceladas" justamente por terem desejos.

Também não nos esqueçamos de que elas foram decapitadas nas mesmas décadas em que, mundo cristão afora, começou a estação de caça às bruxas, ou seja, de caça às mulheres que ousassem manifestar desejo próprio.

Regra: qualquer volta das mulheres ao palco da história sempre suscitará reação brutal. A estupidez misógina atual é a reação previsível a meio século de liberação dos corpos e dos desejos femininos.

Nota: Voltou a funcionar meu Twitter, que tinha sido hackeado, @ccalligaris, e abri um novo Instagram, @contardocalligaris.

Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)