quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Agnese, Beatrice e Parisina foram decapitadas por terem desejos, FSP

 

Eu assisti à opera "Beatrice di Tenda", de Vincenzo Bellini, ainda menino, provavelmente na Scala de Milão. Beatrice era Joan Sutherland, a soprano australiana que todos chamavam "la stupenda".

Beatrice é uma de três mulheres, filhas de famílias poderosíssimas, que, entre 1391 e 1425, foram condenadas à morte por seus cônjuges —isso, no norte da Itália, que na época era uma constelação de pequenos Estados e cidades independentes.

Agnese Visconti (dos Viscontis de Milão) casara com Francesco Gonzaga, senhor de Mântua. Beatrice Tenda (viúva de Facino Cane, um dos maiores capitães de exército mercenário) casara com Filippo Maria Visconti, duque de Milão, e Parisina Malatesta (dos senhores de Rimini) casara com Nicoló 3º d'Este, senhor de Ferrara.

Bustos de três mulheres com trajes antigos que cobrem suas cabeças, mostrando apenas os rostos, elas estão com expressões tristes. Cada uma tem seu um nome escrito na imagem, Christine de Pizan, Isotta Nogarola e Marguerite de Navarre. O fundo é tomado por fogo
Luciano Salles/Folhapress

Elas foram acusadas de adultério e decapitadas; seus amantes executados. Os adultérios eram verdadeiros, salvo, provavelmente, no caso de Beatrice.

Dois excelentes historiadores da Renascença italiana, Elizabeth Crouzet-Pavan e Jean-Claude Maire Vigueur, acharam essas execuções estranhas.

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As denúncias públicas por adultério, na época, eram raras. Não que faltassem os comportamentos adúlteros, mas, em geral, o adultério era tolerado ou silenciado porque o traído não tinha muito o que ganhar tornando pública a "traição" sofrida. Além disso, a punição legal não seria a morte.

Em suma, se os adúlteros e as adúlteras dessa época fossem mortos, seriam provavelmente assassinados numa rua escura ou envenenados, sem que o adultério fosse mencionado como razão da "punição".

A partir dessa constatação inicial, Crouzet-Pavan e Vigueur começaram uma pesquisa que é hoje um livro, infelizmente ainda sem tradução em português, "Décapitées - Trois Femmes dans l'Italie de la Renaissance" (decapitadas, três mulheres na Itália da Renascença, ed. Albin Michel, 2018).

Perguntas. Por que, no espaço daquelas três décadas, essas três mulheres foram condenadas à morte e executadas por um crime que, em regra, até então, seria sobretudo silenciado e escondido e que, mesmo tornado público, não implicaria a pena de morte?

E por que tudo aconteceu com uma certa cumplicidade das famílias das três jovens? Afinal, se as famílias de origem tivessem engrossado o tom, provavelmente os maridos traídos teriam desistido de massacrar suas mulheres infiéis.

Mas tudo parece acontecer numa conivência generalizada, em que a morte dessas mulheres, misteriosamente, parece interessar a todos, aos maridos, à família de origem e, por que não, à sociedade inteira.

Como isso se explica? A resposta dos autores, no fim de sua indagação pelos arquivos (quando eles não foram destruídos propositalmente pela suposta "Justiça"), é que a morte das três adúlteras foi uma maneira de consolidar um poder senhorial que tentava e precisava muito se afirmar.

Mas essa consolidação do poder dos senhores se dá de um jeito específico: sacrificando suas mulheres, que se revelaram livres além da conta.

Ou seja, é como se as mortes de Agnese, Beatrice e Parisina fossem uma reação contra a nova liberdade e o novo peso político, cultural e simbólico das mulheres no mundo das senhorias renascentistas, ou seja, na aurora da modernidade.

Claro, a mulher renascentista ainda parecia ter só uma escolha "aceitável": o casamento ou o convento. Mas, no fim do século 14, as mulheres começam a voltar publicamente para o palco da história.

Seria bom, aliás, que nossas meninas, hoje, conhecessem as vidas e obras de Christine de Pizan (1364-1430), Isotta Nogarola (1418-1466), Marguerite de Navarre (1492-1540) e muitas outras. Quem eram? Hoje é fácil saber: use a internet.

E, ao reaprender a história das mulheres e de seu suposto "silêncio" no passado, não se esqueça de Agnese, Beatrice e Parisina, que foram "canceladas" justamente por terem desejos.

Também não nos esqueçamos de que elas foram decapitadas nas mesmas décadas em que, mundo cristão afora, começou a estação de caça às bruxas, ou seja, de caça às mulheres que ousassem manifestar desejo próprio.

Regra: qualquer volta das mulheres ao palco da história sempre suscitará reação brutal. A estupidez misógina atual é a reação previsível a meio século de liberação dos corpos e dos desejos femininos.

Nota: Voltou a funcionar meu Twitter, que tinha sido hackeado, @ccalligaris, e abri um novo Instagram, @contardocalligaris.

Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)

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