quarta-feira, 23 de setembro de 2020

JULIA MARISA SEKULA - Vamos parar de falar em desenvolvimento sustentável?, FSP

 Julia Marisa Sekula

Economista e cientista política, é coordenadora do Programa de Clima e Segurança do Instituto Igarapé, fundadora da FinanSOS e coautora de ‘Brasil: Paraíso Restaurável' (ed. Sextante)

Num contexto global de excesso de informação e escassez de significado, palavras se tornam decisivas. Palavras têm peso e vida própria. Com a consolidação da onda do termo “desenvolvimento sustentável” nos setores privado e público, fica claro, mais uma vez, como mal entendemos nossas vantagens competitivas e como empregamos frases emprestadas na busca de uma (não) narrativa de nação. O custo para o Brasil de não enxergar as atuais oportunidades com a linguagem que elas merecem pode ser grande.

A expressão “desenvolvimento sustentável” existe desde 1972. Por 48 anos, circulou quieta, espraiando-se sobre um mundo que, aos poucos, se apercebia das mudanças climáticas. Isso não surpreende. A frase é intrinsecamente passiva em sua própria etimologia. A primeira palavra evoca imagens de máquinas e modernização infinita características do uso generalizado da palavra nos séculos 19 e 20. Na segunda, um efeito amortecedor, um cansaço antecipado da necessidade de “segurar” tal desenvolvimento (intensivo de carbono) em prol da sobrevivência das gerações futuras. Uma palavra presa no conceito econômico que a criou.

Já há países caminhando noutra direção. A China, por exemplo, apresenta uma alternativa de terminologia. Desde 2012, o país abraça em sua Constituição a “civilização ecológica”. O termo é uma resposta às ameaças climáticas; tão extensas, segundo eles, que exigem outra concepção de civilização humana, baseada em princípios ecológicos e nas tradições milenares de taoismo e confucionismo, que entendem o homem e a natureza como entes inteiramente interligados —ideia muito maior do que qualquer modelo de desenvolvimento.

Durante os sete anos em que morei lá, era inimaginável que, um dia, a China pretendesse deixar a posição de maior emissora de gases efeito estufa no mundo. Lembro vividamente das gotas amargas de chuva que faziam a pele coçar, o céu nublado de “smog”, o lago Tai onde jamais havia peixe para pescar... O boom industrial foi acompanhado por uma devastação ambiental. Mas, a partir do momento em que o custo social ficou difícil de ignorar e as oportunidades de tecnologia limpa surgiram, a China se adaptou, construindo uma nova narrativa para o próximo século. Hoje, o gigante asiático é o pais que mais investe em energia renovável no mundo.

O Brasil, com a matriz energética mais limpa do planeta, já esta com meio caminho andado. Do ​G20, o Brasil é o primeiro lugar em estoque de capital natural de terra arável, área florestal e fontes renováveis de água. O Brasil é o lugar em que mais se produz vida na Terra. Vida, nesta escala, não cabe nem combina com a palavra desenvolvimento.

Da mesma forma que Inglaterra e Estados Unidos emergiram como potências globais devido ao carvão e ao petróleo, o Brasil, diante de um futuro de energias renováveis, nunca esteve tão bem posicionado para ser uma potência global. Diante de um futuro em que acesso à água, a ar limpo e a terras aráveis se tornará questão de sobrevivência, o mundo nunca esteve tão dependente do Brasil e de seus biomas. O nosso “desenvolvimento sustentável”, então, revela-se muito mais do que uma adequação.

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No caso do Brasil, é a oportunidade social, cultural e econômica do século. Enquanto não reconhecer seus próprios ativos estratégicos e lhe faltar uma narrativa, o Brasil ficará sujeito às palavras e forças dos outros. Continuaremos culpando o “outro” pela volatilidade do preço de petróleo, pela demanda de exportação de soja, pelas exigências ambientais dos europeus. Continuaremos no conforto de ser o eterno “país do futuro”. Essa tem sido a frase escolhida.

Se a gente quiser entrar no campo das potências globais e proporcionar ao brasileiro aquilo que ele merece, precisamos começar a usar palavras e conceitos próprios —o resto já temos. E, não tenho duvidas, com a nossa cultura rica e diversa, encontraremos os conceitos e as palavras certas.

Acredito muito nos povos originários, que entendem com profundidade o poder produtivo e protetivo da natureza há muito mais tempo do que qualquer analista de sustentabilidade. Ali, talvez, com as pessoas a quem repetidamente temos negado a palavra, encontraremos a verdadeira quebra de paradigma —e, quem sabe assim, uma nova narrativa de Brasil.


Ruy Castro À espera do novo pacto, FSP

 Já chamou alguém de fascista hoje? Se não, não perca seu tempo. Não por falta de fascistas na praça, mas pelo excesso. Nem no Estado Novo de Getulio Vargas, tantos no Brasil fizeram jus a esta que, até há pouco, era a pior ofensa que se podia fazer a alguém. Talvez por isto, por serem muitos agora os que se identificam com o credo, ser chamado de fascista deixou de ofender. O próprio Jair Bolsonaro, cujas teoria e prática —da morte que promove no atacado aos perdigotos que despeja no varejo— se inspiram em Mussolini, já foi tachado de fascista umas mil vezes. E nunca se ofendeu. Claro —por que se ofenderia?

A prova é que, coerentes, o governo e seus fâmulos no Judiciário tentam incriminar os antifascistas, por eles se oporem aos racistas, negacionistas, xenófobos, biocidas, propagadores de fake news e outros praticantes de disciplinas, estas, sim, criminosas. Ao persegui-los, o governante assume que avaliza essas práticas. Um dia, não poderá se queixar se for pendurado de cabeça para baixo.

Diante da naturalidade com que as pessoas passaram a reagir ao serem chamadas de fascistas, era fatal que outro cadáver ideológico ressurgisse da tumba em que foi sepultado nos anos 50 —o stalinismo. Assim como já não basta ser conservador ou de direita e é obrigatório ser fascista, não é mais suficiente ser liberal, social-democrata, socialista ou mesmo comunista. É preciso voltar a Josef Stálin, o pai dos povos, o guia genial da humanidade, como o chamavam os zumbis que o seguiam e justificavam tudo que ele fazia.

Com os neofascistas e neo-stalinistas na área, é fatal também que, de repente, voltemos ao dia 23 de agosto de 1939, quando o mundo ouviu, sem acreditar, que Stálin e Adolf Hitler tinham assinado um pacto de não-agressão. Mas era verdade. Stalin, inclusive, saudou “o amado Fûhrer dos alemães”.

Os extremos, afinal, se encontravam.

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Vyacheslav Molotov e Joachim von Ribbentrop se cumprimentam após assinarem pacto de não agressão entre URSS e Alemanha
Vyacheslav Molotov e Joachim von Ribbentrop se cumprimentam após assinarem pacto de não-agressão entre URSS e Alemanha - Creative Commons
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Hélio Schwartsman Carta aberta a Damares, FSP

 

V. Exª., Senhora Ministra Damares Alves,

Embora instado por leitores, abstive-me de fazer comentários sobre sua indiscrição envolvendo Jesus e a goiabeira. Apesar de ser ateu de carteirinha e de fazer repetidas críticas ao que me parecem aspectos reprováveis das religiões, não penso que possamos privar ninguém de expressar suas crenças. Menos ainda de frequentar a igreja que seja de seu agrado.

Escrevo agora para cobrar reciprocidade. Assim como não mexo com sua goiabeira, não mexa com a minha Netflix. Compreendo que a Sra. não tenha apreciado o filme “Lindinhas”, mas isso não lhe dá, nem a ninguém de seu ministério, o direito de tentar censurá-lo. Como advogada, a Sra. talvez esteja a par de que a Carta de 88 proscreveu essa prática, duas vezes, no art. 5º e no 220. Isso deve significar que a proibição é para valer.

Outra novidade destes tempos modernos, o streaming, no qual é necessário que o telespectador marque ativamente qual filme verá, assegura que nenhum temente a Deus assistirá inadvertidamente a “pornografia”. Já se desejar fazê-lo...

Aproveito para abordar outro assunto. Fiquei preocupado com a notícia, dada nesta Folha, de que a Sra. e representantes de seu ministério agiram para impedir que uma menina de dez anos, vítima de estupro, fizesse um aborto, o que a lei lhe faculta. Pode haver aí crime de responsabilidade e ilícitos penais. Só uma investigação dirá. A nota em que nega a reportagem não me pareceu tão convincente.

Sei de suas convicções religiosas, mas, quando atua na condição de representante do poder público brasileiro, precisa esquecer suas crenças e comportar-se como se fosse agnóstica. Se acha que não consegue, então deveria deixar o posto de ministra de Estado e ficar só com o de ministra religiosa. Em outra modernice, que nos tirou da boa e velha Idade Média, a Carta proíbe vestir as duas camisas ao mesmo tempo (art. 19).

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".