sábado, 19 de setembro de 2020

Cristina Serra Carta ao Tom, FSP

Querido Tom, nesta semana circulou nas redes sociais (um dia eu te explico o que é) um vídeo antigo seu, deve ter uns 30 anos. Não sei se vai lembrar, mas você diz que, para usar caixa de fósforos no Brasil, o sujeito devia ter uma licença, tal como a autorização para o porte de arma. Se naquela época já tinha gente botando fogo no mato e isso escandalizava você, agora não faz ideia de como a coisa piorou.

Eu não queria ser portadora de más notícias, Tom, mas deixa eu desabafar. Estamos em 2020, e o governo do Brasil é inimigo do meio ambiente. Precisa ver o ministro e o general encarregados de cuidar (?) das nossas florestas, dos nossos rios, dos nossos animais. Nem vou falar do presidente. Você não precisa saber da existência de alguém tão… deixa pra lá, Tom.

No ano passado, teve o Dia do Fogo na Amazônia. A polícia disse que um bando de empresários está por trás disso. Foram incêndios criminosos. Mas ninguém foi preso nem punido. Neste ano, a Amazônia voltou a queimar, mas a calamidade maior, Tom, é no Pantanal. É o maior fogaréu em 20 anos. A polícia já sabe que o fogo começou em grandes fazendas. O que o governo faz? Passa a boiada, se é que você me entende.

Vi na TV uma onça com as patas em carne viva. Lembrei da capa do seu disco que eu mais amo, Terra Brasilis. Tantos bichos lindos calcinados: antas, tatus, tamanduás, pássaros, jacarés, onças. O Pantanal é um tapete de cinzas. “Deixa a onça viva na floresta, deixa o peixe n’água que é uma festa, deixa o índio vivo (…) não quero fogo, quero água, deixa o mato crescer em paz…”. Ah, Tom, que saudade!

Partes do Cerrado e da mata atlântica também estão em brasas. A fumaça chega às cidades, as pessoas adoecem. Olha, Tom, ainda bem que você não está aqui pra ver essa desgraça toda.

O Brasil de sonho e encantamento que você cantou não existe mais. Lembrando o nosso querido Drummond, aquele Brasil é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

Cristina Serra

Cristina Serra é jornalista. 

Experimentos eleitorais , FSP


A única vantagem do caótico sistema eleitoral norte-americano, que permite que estados, condados e municípios criem suas próprias regras para contar sufrágios, é que ele se presta a experimentos. Um deles, conhecido como voto preferencial, que já era utilizado havia décadas em poucas cidades, vem ganhando espaço.

O Maine vai estrear o sistema nas eleições presidenciais deste ano. No mais populoso Massachusetts, haverá um plebiscito para decidir se o estado também o adotará. A cidade de Nova York terá sua primeira eleição nesse modelo no ano que vem.

Cédula de votação usada no estado do Maine, nos EUA, permite ao eleitor ranquear seus votos para deputado e senador de acordo com a preferência
Cédula de votação usada no estado do Maine, nos EUA, permite ao eleitor ranquear seus votos para deputado e senador de acordo com a preferência - Reprodução

Há vários métodos de votação ranqueada —essa área é um verdadeiro playground para matemáticos. Um dos mais fáceis de explicar é aquele em que o eleitor ordena os candidatos segundo sua preferência. Caso nenhum dos postulantes seja a primeira escolha de mais de 50% dos votantes, procede-se a um returno virtual em que o candidato que ficou em último lugar é eliminado das cédulas e elas são recontadas. O processo segue até que alguém obtenha a maioria absoluta.

A vantagem indiscutível do sistema, ao menos nas localidades que se valem do segundo turno, é a economia de tempo e recursos, já que ele permite obter um resultado parecido com o do sufrágio em duas rodadas com uma só visita à urna. Especula-se, também, que ele favoreceria a moderação, já que interessaria aos candidatos tanto conquistar a preferência dos eleitores como também evitar a rejeição. Ainda não há consenso dos cientistas políticos sobre esse efeito.

Do lado negativo, contabilizam-se o custo de aprendizado —pode ser difícil explicar para o eleitor por que o candidato com mais primeiras preferências não levou o pleito— e a ausência de um embate direto entre os dois mais bem votados num segundo turno. A literatura, porém, sugere que debates e a própria campanha são bem menos decisivos do que parecem na narrativa dos candidatos e da imprensa.

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Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Rodrigo Zeidan Por que não há casos de Covid na China?, FSP

Cheguei no dia 8 a Xangai, e este sábado (19) é meu 11º dia de quarentena. Passei os sete primeiros dias em um hotel adaptado para isso, e os últimos sete estão sendo em casa.

O processo de desembarque parece um filme de ficção científica. Todos, exceto os passageiros, estão em trajes de proteção dos pés à cabeça.

Entro numa fila, reporto meus dados, passo pela imigração e vou para outra fila ter a amostra coletada para o teste PCR de Covid-19.

Pego as malas e sou levado para o hotel, onde todos também estão em trajes de “astronauta”. Me avisam: só posso abrir a porta para receber refeições, deixar o lixo e, no quinto dia, ser testado de novo.

Já tinha feito um teste para pedir o visto, outro para poder embarcar e ainda terei mais um, no dia fim da quarentena. Aí poderei sair pela cidade, onde está quase tudo aberto. Pago diretamente por uma parte: hotel e alguns dos testes.

Parte da razão pela qual não há casos de transmissão local do vírus na China fica clara: um implacável esforço no rastreamento de possíveis casos, com isolamento daqueles sob suspeita. Chegou-se a testar os mais de 10 milhões de residentes de Wuhan.

Num surto em Pequim, em junho, foram realizados 2,3 milhões de testes em uma semana. Hoje, o país conseguiria testar 5 milhões de pessoas por dia. Mas tem mais. Há enorme esforço coletivo para conter qualquer novo surto.

Para cumprir parte da quarentena em casa, as autoridades contataram meu condomínio, que poderia se negar a me receber. Às vezes, o condomínio checa se há comunicação de ar entre apartamentos, para fechá-la. É comum a instalação de sensor ou câmera para monitoramento da quantidade de vezes que a porta é aberta.

Felizmente, meu pedido é aprovado, e a síndica ainda arranja uma tradutora para, com o chefe de segurança, me explicar detalhes do processo.

Até pouco tempo, havia regras rígidas de acesso ao prédio (só morador podia entrar) e uma tenda para higienização de entregas.

A transmissão do vírus é anátema ao modo de vida chinês: a sociedade faria quase qualquer sacrifício para impedir nova disseminação.

É comum a ideia de que, na China, o Partido Comunista controla e pode tudo. Não é bem assim.
Claro que o governo restringe vários aspectos da vida cotidiana, mas também existe um contrato social implícito no qual os cidadãos requerem, das autoridades em Pequim, estabilidade social.

Há centenas de protestos todos os dias, desde que contra autoridades locais. Para subir na carreira, prefeitos devem entregar crescimento e coesão social.

Quando parecia claro que o governo de Wuhan estava escondendo dados sobre o número de infectados na cidade, foi a pressão popular, em boa parte, que fez o governo central exonerar o prefeito e mudar a estratégia na luta contra o vírus.

Foi um amigo chinês que me contou, preocupado, sobre a nova e estranha gripe. Pesquisei e percebi que poderia ser relevante, escrevendo sobre isso na coluna do dia 11 de janeiro.

Assim como todos os que conheço aqui, ele não só reclamou da resposta inicial do governo como aprovou a quarentena, respeitou as regras ao pé da letra e ajudou a reforçá-las na sua comunidade.

O mundo não é binário. É possível criticar o governo chinês em algumas dimensões e reconhecer, hoje, o seu excelente trabalho na contenção do vírus.

Na China, o vírus é visto, por todos, como o caos. Quem dera tivéssemos escolhido também esse caminho no Brasil.

Rodrigo Zeidan

Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.