Grupo contra regime militar ajudou na retomada do movimento estudantil nos anos 1970
Em 1976, após a derrota da luta armada, a oposição à ditadura vivia uma transição, com a ascensão do novo sindicalismo e a retomada do movimento estudantil, que havia sido silenciado pelo AI-5.
É quando surge na USP uma organização trotskista que teve vida efêmera, de apenas seis anos, mas intensa.
Era a Liberdade e Luta, ou Libelu, diminutivo criado por marxistas mais ortodoxos para ridicularizar a nova organização, mas que acabaria assumido com orgulho por seus integrantes.
Os líderes do grupo eram “jovens elegantes, iconoclastas, bem nutridos, talvez um tanto mal-humorados”, como definiu na época o jornalista Mino Carta. Também tinham fama de rebeldes e porra-loucas.
A trajetória da entidade estudantil é o tema de “Libelu – Abaixo a Ditadura”, dirigido por Diógenes Muniz, que deve estrear no festival É Tudo Verdade, assim que a pandemia permitir, e depois entrar em circuito comercial e plataformas de streaming.
Em 90 minutos, imagens de assembleias, passeatas e confrontos com a polícia, controlada pelo folclórico e autoritário coronel Erasmo Dias, são entremeadas com depoimentos recentes de 20 dos principais líderes da entidade.
Hoje sexagenários (ou quase), acabaram em sua maioria “assimilados” pelo mercado que abominavam, o que nem sempre foi algo bem resolvido, como transparece em algumas falas do filme.
Grande parte deles teve papel de destaque na imprensa, inclusive em cargos de chefia, em veículos como a Folha e publicações da editora Abril e do Grupo Globo.
Curiosamente, toda essa experiência em liderança e organização não se traduziu em carreiras políticas para a grande maioria.
Uma notória exceção foi um ex-integrante da Libelu em Ribeirão Preto (SP), o estudante de Medicina Antônio Palocci Filho, que viria a ser prefeito, deputado e ministro, até ser preso pela Lava Jato.
Ele foi o único a não gravar sua participação numa das amplas salas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Falou sentado no sofá de sua casa, cumprindo prisão domiciliar.
Num mundo pré-internet, a Libelu procurava ser uma influenciadora analógica. Se os demais grupos estudantis cultuavam samba e MPB, suas festas, consideradas as melhores do campus da USP, eram ao som do rock cantado em inglês.
Seus cartazes eram coloridos e lúdicos, o mais famoso dos quais ostentava a figura de um simpático gato azul, com o slogan “nem todos os gatos são pardos”.
E as palavras de ordem, no lugar do genérico pedido por “liberdades democráticas”, iam direto ao ponto. “Abaixo a ditadura”, gritada numa manifestação pelo estudante Josimar Melo, hoje colunista gastronômico da Folha, foi recebida com espanto pela estudantada.
Uma exceção era a proibição de consumo de drogas. Não por caretice, mas por estratégia. Como explica no filme o jornalista Ricardo Melo, um dos principais líderes da Libelu, quem usa droga entra na mira da polícia, a última coisa que o grupo queria naquele momento.
Parte dos líderes estudantis acabava recrutada pela OSI (Organização Socialista Internacionalista), espécie de entidade-mãe da Libelu, que atuava na clandestinidade.
Embora o clima do final da ditadura já estivesse mais desanuviado, alguns cacoetes do pior período da repressão permaneciam, como o uso de codinomes. “Era ridículo, a gente ia para essas reuniões de olhos vendados, pra não saber onde era”, diz o hoje economista liberal Eduardo Giannetti.
No final dos anos 1970, a Libelu ficou pop. Virou capa da revista IstoÉ, com o título “o charme da esquerda adolescente”. Foi citada em uma cena de novela da Bandeirantes e ganhou um poema de Paulo Leminski.
Antes, tinha sido fundamental na reignição das manifestações estudantis, especialmente depois de ter, inesperadamente, vencido a eleição para o Diretório Central dos Estudantes da USP, em 1978.
O grupo pagou um preço por esse protagonismo. Seus líderes foram fichados pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e muitos apanharam na invasão da PUC, em 1977, comandada por Erasmo Dias.
As cenas do destempero do coronel, gritando com estudantes chorando, são um dos pontos mais fortes do filme.
No início dos anos 1980, a Libelu foi definhando com a mesma eletricidade com a qual surgira, até acabar em 1982. “Uma hora cansei”, diz Josimar, que hoje entende o estranhamento de quem o vê “escrevendo sobre salsinha”.
Alguns, como os colunistas da Folha Reinaldo Azevedo e Demétrio Magnoli, “endireitaram-se”, na definição de colegas.
Outros não arredaram pé do esquerdismo, caso de Markus Sokol, dirigente petista e líder da corrente O Trabalho, herdeira da OSI. Ou da jornalista Laura Capriglione, que diz: “Continuo pensando como uma militante de esquerda”.
Os depoimentos mostram orgulho com a trajetória da Libelu, ainda que, como afirma o professor de jornalismo Eugênio Bucci numa evidente referência a Palocci, “alguns de nós o poder corrompeu”.
O ex-ministro, que aceitou dar um depoimento após muita negociação, admite que o Palocci da Libelu acharia o Palocci ministro da Fazenda muito conservador. Mas não titubeia ao ser questionado se ainda se considera um homem de esquerda. “Claro”, responde.
Para quem sonhava com a revolução e acabou se tornando “pequeno burguês”, fica a satisfação de ter feito história. “A ditadura caiu graças a mim também, a Anistia aconteceu graças a mim também”, diz a jornalista Renata Rangel.