quinta-feira, 2 de julho de 2020

Solange Srour - No país do vale-tudo, nada vale, FSP

Quando o assunto é ampliar a proteção social, a proliferação de más ideias é acelerada

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​A crise passou a ser a justificativa perfeita para qualquer tipo de ideia, muitas das quais não ficam de pé diante de números.

Quando o assunto é a ampliação da proteção social, a proliferação de más ideias é acelerada. Já que abrimos espaço para aumentar os gastos durante a pandemia, qual o empecilho para estender o coronavoucher até dezembro? Por que não criar uma renda básica universal e acabar com o teto de gastos?

É curiosa a crença de alguns economistas de que avaliar a eficácia do gasto público, obedecer às restrições orçamentárias e estudar a evidência empírica soam como fetiche. O debate econômico está indo na mesma direção do da saúde, ignorando a ciência e repleto de devaneios.

Pessoas usando máscara fazem fila na frente de uma agência da Caixa Econômica Federal para sacar o auxílio emergencial
Em meio à pandemia, extensão do auxílio emergencial até dezembro e criação de uma renda básica universal entraram em debate - Havolene Valinhos/Folhapress

Muitos admitem que temos que nos preocupar com o tamanho do déficit e com a trajetória da dívida, mas não neste momento. É hora de atender aos mais atingidos pela crise, com mais transferências, repasses para a saúde e recursos para a educação.

Ideias soltas ao vento soam como música até esbarrarem na matemática. Se o fiscalismo imperasse no Brasil, não teríamos, de 2011 a 2019, uma piora de resultado primário de 3,7 pontos do PIB.

Cerca de 70% dessa piora se deu pelo crescimento da despesa primária, e mais de 90% se concentraram em programas de transferência de renda (BPC/Loas, seguro-desemprego, abono e Bolsa Família) e Previdência.

Se gastássemos pouco com educação, não teríamos a despesa real do Ministério da Educação crescendo em torno de 90% entre 2008 e 2017. Enquanto isso, o Pisa, programa que avalia a educação entre países, revela que 68% dos estudantes brasileiros, com 15 anos de idade, não possuem nível básico de matemática, o mínimo para o exercício pleno da cidadania.

Colocar a culpa da má alocação de recursos no teto de gastos é ignorar o que as pesquisas internacionais revelam. Não considerar que foi o teto que tornou possível a queda do risco Brasil, os juros baixos e um ambiente propício à retomada da economia é excluir da história recente o que não convém ao discurso do vale-tudo.

A crise é séria demais para desviar o foco do que realmente determinará nosso futuro: as mudanças estruturais que já estão em curso. Em vez de simplesmente tomar como inequívoca a expansão do já alto gasto social, por que não nos debruçamos sobre o real problema que enfrentaremos no mercado de trabalho?

Alterações induzidas pela pandemia nos arranjos de trabalho, nos padrões de gastos dos consumidores e nos processos produtivos não se reverterão e terão consequências duradouras no nível de emprego.

O uso extensivo do trabalho remoto, a digitalização e o avanço tecnológico tornarão necessária uma realocação da mão de obra, para a qual o país não está preparado. Com 50% dos trabalhadores na informalidade, que está concentrada nos mais pobres, o país não terá uma recuperação rápida.

O aumento estrutural do desemprego justifica uma agenda muito além da extensão dos programas de assistência social. Se o desemprego já ronda perto dos 20% (incluindo os que deixaram de procurar empregos em razão do isolamento), imagine como seria sem a liberalização da terceirização.

É preciso avançar mais. A MP do Trabalho Verde e Amarelo reduzia os custos de contratação de jovens em 34%, mas foi barrada no Congresso.

Gastamos quase nada em programas que aumentem a disponibilidade do capital físico e a produtividade dos trabalhadores. Regimes especiais de tributação, como o Simples, que não é proporcional à geração de renda, distorcem o investimento e a produção.

Avançamos pouco também na melhoria da regulação. A aprovação do marco legal do saneamento foi uma excelente notícia, apesar de estarmos mais de um século atrasados.

Antes de criar despesas, devemos fazer um debate sério da qualidade dos nossos gastos. Políticas que parecem fazer sentido a curto prazo, quando o ambiente internacional é de ampla liquidez, podem ser deletérias a longo prazo. O tamanho e a trajetória da dívida que teremos no fim desta crise importam, pois ela terá que ser paga.

Não custa lembrar que, antes da pandemia, o Brasil se arrastava, pagando caro por ter adotado propostas gêmeas das que estão sendo levantadas agora.

Solange Srour

Economista-chefe da gestora ARX Investimentos. É mestre em economia pela PUC-Rio.

PAULO SOLMUCCI JR. A acertada decisão do Banco Central, FSP

Arranjos fechados na indústria de pagamentos custam caro ao varejo, diz executivo

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Paulo Solmucci Jr.

Presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) e Diretor da União Nacional de Entidades do Comércio e Serviços (Unecs).

​A notícia recente de que pagamentos poderiam ser feitos pelo WhatsApp gerou bastante burburinho. Era o “zap”, o aplicativo em que gastamos boas horas do nosso dia, procurando adentrar no sistema financeiro do país em uma parceria com uma maquininha e alguns bancos. Poucos detalhes da iniciativa vieram a público. Na sequência, o Banco Central suspendeu a empreitada, para uma análise mais minuciosa do que ela representaria à competição e à segurança da indústria, e o Cade permanece com investigações. A decisão é acertada: é preciso avaliar as regras antes para garantir que sejam claras e justas.

O Brasil é o segundo país do mundo com mais usuários do “zap”, uma centena de milhões de pessoas. O WhatsApp Pay já começaria grande, ao contrário do que usualmente ocorre. Por isso, o “zap” precisa passar pelo crivo do Banco Central. Embarcar todos esses usuários em uma nova forma de pagamento obviamente pressiona os lojistas a também entrarem na dança. Ora, não é possível se negar a vender para centenas de milhões de pessoas. Sabendo disso, o “zap” poderia se aproveitar, agora ou no futuro, de um enorme poder de mercado. Como é de praxe nessa relação, os lojistas arcariam com as benesses aos usuários: o nível especulado da taxa por transação (por volta de 4%) seria bem mais alta do que as praticadas atualmente.

Brasileiros poderão enviar dinheiro pelo Whatsapp
Brasileiros poderão enviar dinheiro pelo Whatsapp - Reprodução

Lembremos que a indústria de pagamentos no Brasil já foi marcada por várias relações de exclusividade. Estes arranjos fechados representaram um atraso à competição, inibiram preços mais acessíveis e nos afastaram da inovação. Isso custou muito caro ao varejo e não queremos voltar a essa realidade.

O Banco Central vem fazendo um trabalho árduo para aparar estas arestas, estabelecendo novas regras de jogo, para que as diferentes maneiras de pagamento no país sejam “abertas”. Ou seja, um varejista não precisa mais ser refém de um banco, de uma maquininha ou qualquer outro para aceitar um tipo de pagamento específico, a chamada “interoperabilidade”. Palavra difícil no jargão, mas que se traduz em “todos precisam se comunicar com todos”, sem barreiras artificiais.

Este movimento nos permitiu importantes avanços, como a competição e a redução de custos, princípios que as autoridades não abrem mão. A competitividade trouxe inclusão para o varejo: hoje, do botequim ao shopping luxuoso, milhões de lojistas em todo o país conseguem aceitar pagamentos por meios mais seguros e eletrônicos. E conseguimos tudo isso dentro das regras, em um ambiente cada vez mais livre de abusos.

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As “bigtechs” têm um histórico de embates antitrustes em vários países – de multas bilionárias por práticas de competição desleal a vazamentos de informação e dúvidas sobre privacidade de dados dos usuários. Estes fatos nos levam a ficar, no mínimo, ressabiados com esse movimento recente. A iniciativa deve vir acompanhada do atendimento a critérios que a regulação determine cabíveis para proteger o varejo de fraudes.

Por exemplo, caso haja um ataque que desvie dinheiro dentro do aplicativo, o “zap” deveria ser o responsável por arcar com o prejuízo. O problema não pode cair na conta do pequeno lojista. Há ainda preocupações com uso indevido de informação e potenciais abusos de poder econômico (de novo, como não aceitar um meio de pagamento utilizável por milhões de compradores?). Esses mesmos critérios impediram que o “zap” avançasse seu projeto em países como Índia, México e França. Acharam que escapariam no Brasil?

A crise atual impõe enormes desafios ao varejo, que tem sido pouco atendido pelas políticas de governo para sua contenção. Precisamos estar atentos a novas formas de vender, buscando entrar no mundo digital. Mas isso precisa ser feito com responsabilidade, não cedendo a saídas aparentemente fáceis. A decisão do Banco Central não procura barrar a inovação. Na verdade, ela passa a mensagem de que qualquer inovação no sistema precisa ser segura e representar um passo além do que conquistamos até aqui, não um retrocesso. Os desafios já são grandes o suficiente para que tenhamos que lidar, sem nenhuma proteção, com um gigante que pode nos sufocar.