terça-feira, 5 de maio de 2020

Qual deve ser o objetivo do Estado? Acumular resultados ou construir bem estar social?, OESP

Gonzalo Vecina *, O Estado de S.Paulo
05 de maio de 2020 | 05h00


Esta é uma das indagações mais contemporâneas. Até onde o Estado deve ir. Além de decidir o que deve ser feito e entregue à população, também deve fazer? 
É o caso em que a definição equivocada do problema submete o objetivo principal ao objetivo secundário. Qual deve ser o objetivo da ação do Estado – acumular resultados ou construir bem-estar social (BES)? E não se deve achar que existe excludência na proposição. Desde que não exista subordinação, os dois objetivos podem conviver. Mas construir BES será o objetivo principal.
Gonzalo Vecina Neto
Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e novo colunista do 'Estado' Foto: Felipe Rau/ Estadão
Assim, por exemplo, garantir o direito de ir e vir é o caminho para construir BES. Se será o Estado ou o privado que prestará o serviço dependerá da capacidade do Estado de ser eficiente na realização desse serviço. Se for o privado, a relação será intermediada pela presença do lucro. Mas o serviço – direito de ir e vir – estará entregue.
Aí a discussão do que é gerenciar – fazer. Toda organização existe para cumprir com seus objetivos, sua razão de existir é entregar à sociedade o que a sociedade demanda. Porém, para realizar as entregas, ela deve mobilizar recursos – pessoas, equipamentos, materiais e conhecimentos. A partir dessa mobilização é que os objetivos serão atingidos e as entregas se realizarão. Gerenciar, administrar é, portanto, de forma simples, a capacidade de mobilizar recursos para atingir objetivos.
Como o Estado mobiliza recursos? Por causa da necessidade de transparência e do princípio da isonomia para contratar pessoas, o Estado realiza concursos públicos e para comprar realiza licitações. Os dois procedimentos estão voltados para realizar a melhor escolha de pessoas, materiais, conhecimentos, garantindo ao mesmo tempo iguais oportunidades a todos que queiram ser servidores públicos ou queiram vender coisas para o Estado e as melhores escolhas e oportunidades para a administração do Estado.
A capacidade de mobilizar recursos, porém, foi revolucionada pelas transformações no mundo da gestão levadas a efeito pela ideia da ação estratégica, que muda o plano na medida em que o mundo ou as organizações mudam. 
Mas, mais do que a ideia da estratégia, a gestão foi revolucionada pela incorporação da tecnologia da informação. Esses dois vetores transformaram de maneira radical a capacidade de mobilização de recursos nas organizações.
Assim para contratar uma pessoa o Estado leva um ano e uma organização privada, um mês. Os estoques médios de um hospital estatal não são inferiores a 90 dias, mesmo com o advento dos pregões eletrônicos e em um bom hospital privado estes estoques não devem passar de 20 dias. Tempo é um recurso valioso e estoque é dinheiro parado.
Milhares de máscaras distribuídas para hospitais na Alemanha
Milhares de máscaras distribuídas para hospitais Foto: REUTERS/Leon Kuegeler
Até aqui tomei o cuidado de não usar a palavra público e, sim, Estado. O público pode ser privado e o Estado será sempre público. O Estado hoje não está capacitado para fazer. Precisa ser reformado. E parte de suas funções públicas deve ser realizada pelo setor privado – seja através de parcerias público-privadas intermediadas pelo lucro ou de ações de cooperação com entidades sem finalidades lucrativas como as realizadas por OS ou Oscips na área da saúde. A experiência da gestão de hospitais estatais por OS em São Paulo é um exemplo do sucesso da realização das entregas que constroem BES, que deve ser o objetivo principal do Estado. Óbvio que essa relação deve ser transparente e acompanhada pelos órgãos de controle e pela sociedade. 
Transparência e eficiência são os desafios destes tempos.
* É médico sanitarista

Em busca das respostas perdidas, FSP

Vejo meu armário e penso: por que comprei tudo isso? De que eu de fato preciso?

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Muita gente me fala que, passada a pandemia, todo esse papo de transformações profundas vai desmanchar no ar. Eu não acho.
Florença, depois da Peste Negra, mudou a arquitetura, a cultura, a economia, a mentalidade das pessoas. A vida foi valorizada, e tempos depois nasceu ali o Renascimento humanista.
Nunca houve uma pandemia tão intensa e politizada como esta. Ela forma diariamente um caldo de cultura perfeito para indignações, reivindicações e reflexões. Empresas e organizações sociais e políticas serão extremamente cobradas e afetadas. As que não compreenderem este momento terão muita dificuldade em manter sua posição e avançar.
O mundo é da visão estratégica. Minha empresa hoje se dedica à coordenação de estratégias. Não adianta ter a melhor publicidade, as melhores relações públicas, o melhor produto, o melhor modelo de negócios. É preciso coordenar tudo porque a tecnologia do contato liga tudo com tudo o tempo todo.
O mundo vai se reconectar com a discussão do propósito, que já estava no ar, mas muitas vezes de forma
leviana e superficial.
Esse bailado com a morte, que estamos vivendo, terá efeitos duradouros. Todos os dias tomamos atitudes de vida e morte. Como você recebe o delivery, como toma o elevador, se você lava ou não lava a mão, se você usa a máscara... (Use a máscara! Lave a mão!) Isso nos faz refletir o tempo todo.
Teremos repactuações em vários níveis, inclusive no global. O vírus mostrou os limites das fronteiras. Os países não caminham sozinhos. A China, com todo o respeito, não poderá tomar algumas decisões sozinhas. Os mercados de animais vivos chineses, por exemplo, poderão seguir existindo depois dessas mortes todas? A OMS, reformada e vitaminada, precisa ganhar efetividade.
No nível pessoal, as repactuações serão imensas. Eu vejo meu armário e penso: por que comprei tudo isso? De que eu de fato preciso? Não era eu que estava consumindo aquelas coisas, mas aquelas coisas que estavam me consumindo.
É preciso uma nova discussão social. Pacto entre países, pacto entre pessoas, pacto entre gerações. Estamos diante de transformações profundas viralizadas por um vírus mortal.
As pessoas que não fizerem essa reflexão ficarão para trás. As empresas que não fizerem essa reflexão correm o risco de quebrar ou perder relevância. Os partidos que não fizerem essa reflexão vão sumir e serão substituídos por outros.
Tudo isso são opiniões, claro, e a chance de estarem erradas não é pequena. Como vimos, a vida e o tempo são muito mais interessantes e imprevisíveis que a nossa imaginação. Uma coisa é certa: precisamos nos preparar para as complexidades do futuro.
O futuro não vai ficar em cima do muro porque o muro vai cair. As decisões terão de ser contundentes. As organizações mundiais terão de trabalhar para o mundo, e não para si.
O mundo hoje é 5G, e as organizações políticas e sociais democráticas são analógicas. As ditaduras nesse sentido conseguem tomar decisões muito mais rapidamente e em linha com a velocidade do mundo.
Mas nada é melhor do que a indispensável democracia. Então precisamos ter uma discussão sobre a velocidade dos processos na democracia. O Congresso está se reunindo remotamente, inclusive nos
fins de semana. Antes, na quinta-feira, esvaziava. É a necessidade abrindo o caminho.
Estamos preparados para o futuro? Já estivemos algum dia? Essa trágica pandemia é muito forte também para levantar questões. E levantar questões é o que vem antes de encontrar respostas.
Nizan Guanaes
​Empreendedor, criador da N Ideias​.

O JAIR QUE HÁ EM NÓS, Ivann Lago, blog

O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. Como aquele desejo do menino piromaníaco que era obcecado pelo fogo e pela ideia de queimar tudo a sua volta, reprimido pelo controle dos pais e da sociedade. Reprimido por anos, um dia ele se manifesta num projeto profissional que faz do homem adulto um bombeiro, permitindo-lhe estar perto do fogo de uma forma socialmente aceitável.

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo.