terça-feira, 5 de maio de 2020

'Bolsonaro é líder mais isolado do populismo de direita hoje', diz pesquisador do extremismo político, BBC

O populismo de direita que cresceu como movimento político e chegou ao poder nos últimos anos em diversas partes do globo não tem dado uma resposta única à pandemia de covid-19.
O cientista político holandês Cas Mudde, que estuda há quase três décadas a ultradireita, identifica entre os políticos desse matiz desde uma abordagem "estereotipada" - negando a realidade e tentando difundir teorias conspiratórias sobre o novo coronavírus - até ações mais contundentes, ainda que tardias.
O presidente brasileiro, para ele, não se encaixa em um grupo específico. "Pelo que pude ver, quando se fala da resposta à covid-19 - ou à falta dela -, Bolsonaro tem uma categoria própria, como o líder de ultradireita mais ignorante e mais isolado do mundo", diz o professor da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos.
O pesquisador se refere em parte ao fato de Bolsonaro desobedecer deliberadamente as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) - ao sair para visitar estabelecimentos comerciais e cumprimentar apoiadores na rua, negando o risco que o novo coronavírus representa à saúde pública -, enquanto, em paralelo, enfrenta oposição dentro da própria administração, o que culminou com desavenças com os agora ex-ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e da Justiça, Sergio Moro.
Em sua última obra, The Far Right Today ("A Ultradireita Hoje", sem edição no Brasil), lançada no fim de 2019, Mudde fala sobre a mais recente ascensão do populismo de direita no mundo para o público não especializado no tema.
Cas MuddeDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionCientista político Cas Mudde é autor de ‘The Far Right Today’ e pesquisa a ultradireita há quase 30 anos
Ele divide a ultradireita ("far right") em dois grandes grupos, a extrema direita ("extreme right"), que rejeita completamente a democracia, e a direita radical ("radical right"), que opera dentro das instituições democráticas, ainda que se coloque contra valores fundamentais desse sistema, como a separação de poderes e os direitos das minorias.
Bolsonaro faz, segundo ele, parte desse último grupo.
Leia, a seguir, a entrevista concedida por e-mail à BBC News Brasil.
BBC News Brasil - Como a direita radical/extrema direita têm se posicionado em relação às medidas para conter a pandemia de covid-19?
Cas Mudde - As diferentes respostas da utradireita se espalham por praticamente todo o espectro de possibilidades. Desde negar completamente (o risco do novo coronavírus), como o presidente Bolsonaro no Brasil, ou minimizá-lo, como o presidente [dos Estados Unidos, Donald] Trump, a uma resposta tardia, porém contundente, como o primeiro-ministro Narendra Modi na Índia e Viktor Orbán na Hungria.
Há ainda aqueles que criticam os partidos de situação por tomarem medidas que consideram muito brandas, como as siglas de ultradireita na Holanda. [No país, partidos da direita radical como Fórum pela Democracia (FvD) e Partido pela Liberdade (PVV), que fazem oposição à coalizão de centro liderada pelo premiê Mark Rutte, têm defendido uma quarentena semelhante à adotada pela maioria dos países da Europa.]
Bolsonaro em ato a favor de intervenção militarDireito de imagemEVARISTO SA/AFP
Image captionBolsonaro com frequência ignora as recomendações da OMS
BBC News Brasil - Por que vemos respostas tão diferentes?
Mudde - Há razões internas e externas. Bolsonaro e Trump geralmente relutam em aceitar aquilo de que não gostam ou que acreditam que possa prejudicá-los politicamente, enquanto Modi e Orbán são políticos profissionais, que entendem que a realidade pode ser distorcida, mas não ignorada.
Também faz diferença o fato de se estar no poder ou na oposição. Na oposição, a ultradireita precisa criticar a resposta do governo, qualquer que ela seja, porque esse é seu modelo de fazer política.
Finalmente, há também o fato de que alguns países foram atingidos mais fortemente pela pandemia — e mais cedo — do que outros.
BBC News Brasil - Como o senhor enxerga a resposta do presidente Jair Bolsonaro à doença aqui no Brasil, em que categoria ele se encaixa?
Mudde - Pelo que pude ver, quando se fala da resposta à covid-19 — ou à falta dela —, Bolsonaro tem uma categoria própria, como o líder de ultradireita mais ignorante e mais isolado do mundo.
Mesmo Trump tem reconhecido o que a doença significa, ainda que pense que a ameaça não seja tão séria quanto as autoridades de saúde — e políticos do Partido Democrata — dizem e que esteja preocupado com a situação da economia americana, variável que acredita que vai decidir as próximas eleições presidenciais e sua possível reeleição.
Boris JohnsonDireito de imagemPIPPA FOWLES/DOWNING STREET
Image captionPremiê britânico chegou a ser hospitalizado com covid-19 e retornou ao trabalho nesta segunda (27/04)
BBC News Brasil - Tanto o presidente americano quanto o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, resistiram no início da pandemia, mas eventualmente reconheceram sua dimensão e os riscos que ela representa à saúde pública. É possível que, uma vez que o número de infectados e mortos chegue a um patamar demasiadamente elevado, fique difícil para a ultradireita manter o que o senhor já chamou de "resposta estereotipada"  negação da realidade, distração do público com teorias conspiratórias e uma reação lenta e hesitante à doença?
Mudde - Sim, acho que eles foram forçados a reconhecer o significado da covid-19 pelas circunstâncias. No caso de Trump, o surto mortal em Nova York, sua cidade natal, claramente o afetou.
Até o momento, o Brasil não foi atingido com números tão devastadores (como os EUA), mas tudo indica que o pico da pandemia no país está logo ali, e isso provavelmente provocará uma mudança na posição de Bolsonaro — ainda que permaneça mais cético do que os demais, para pelo menos tentar manter as aparências depois de ignorar o problema por tanto tempo.
BBC News Brasil - Em um artigo recente, o senhor afirmou que, dadas as diferentes respostas dadas pela ultradireita à pandemia, o novo coronavírus provavelmente "não mataria o populismo", acrescentando que "alguns ganhariam, outros perderiam e outros sairiam iguais". Que fatores determinarão quem serão os ganhadores e perdedores quando tudo isto acabar?
Mudde - Primeiramente e mais importante, o número de mortes pela covid-19 em cada país.
Depois, o impacto econômico causado pelas medidas de isolamento social.
Terceiro, a narrativa que se tornar dominante sobre como o governo respondeu à pandemia. Em alguns lugares, governantes sairão como vencedores, em outros, como perdedores.
Dado que muitos líderes de ultradireita — ou coalizões com partidos de ultradireita — têm dado respostas parecidas àquelas apresentadas pela política "convencional", não acho que haverá muita diferença.
TrumpDireito de imagemKEVIN DIETSCH/EPA
Image captionPara cientista político, Trump foi forçado pelas circunstâncias a mudar a postura em relação ao novo coronavírus
BBC News Brasil - Como a crise econômica que provavelmente se avizinha pode impactar a atual onda do populismo de direita?
Mudde - Como falei, isso fará parte do esforço político quando as coisas voltarem ao "normal", quando diferentes vertentes da política tentarão convencer os eleitores de que suas eventuais propostas são melhores, isso quando se fala tanto de saúde quanto de economia.
Apesar da crença popular, os partidos de ultradireita não se beneficiaram tanto da crise financeira de 2008. [Mudde argumenta neste artigo que os dados eleitorais nos 28 países da União Europeia nos pleitos após a chamada Grande Depressão não permitem estabelecer uma correlação entre o avanço da ultradireita e as dificuldades econômicas do período.]
Quando o foco é principalmente a economia, esses partidos geralmente têm menos a oferecer, já que seus principais temas são mais socioculturais do que socioeconômicos.
BBC News Brasil - No Brasil, apesar de pesquisas de opinião indicarem que a maioria da população é favorável a medidas de isolamento social, Bolsonaro com frequência desobedece as recomendações - sai aos fins de semana para visitar estabelecimentos comerciais, cumprimenta apoiadores e endossa manifestações contrárias à quarentena. Quais os riscos dessa estratégia?
Mudde - Governar para a base (e não para o país) é sempre arriscado, mas particularmente arriscado se sua base é muito pequena.
Trump também governa para a base, mas sua base é formada, cada vez mais, pelo universo dos eleitores republicanos. Além disso, ele consegue se beneficiar da infraestrutura de um dos dois grandes partidos do país (o Partido Republicano).
Primeiro-ministro da Hungria, Viktor OrbánDireito de imagemREUTERS
Image captionPrimeiro-ministro da Hungria está entre os líderes populistas de direita que vêm dando resposta mais contundente à pandemia - por outro lado, tem usado a crise para concentrar poderes
Bolsonaro não tem nem um nem outro. No fim das contas, poucos eleitores realmente votaram nele. As pessoas votaram contra o PT - e pode haver outros candidatos anti-PT nas próximas eleições, eventualmente com uma infraestrutura partidária maior por trás.
BBC News Brasil - A retórica anticorrupção foi um pilar importante do discurso que elegeu Bolsonaro. Um dos símbolos da operação que expôs esquemas de corrupção que envolviam o PT, o ex-juiz Sergio Moro, pediu demissão do cargo de ministro da Justiça e e acusou o presidente de tentar interferir politicamente na Polícia Federal. Um eventual crise política decorrente dessa cisão poderia abrir espaço para o aparecimento do "próximo candidato anti-PT" ao qual o senhor faz referência?
Mudde - Isso. Ao contrário de Trump, Bolsonaro tem sido confrontado com uma espécie de insurreição dentro da própria administração - algo que o enfraquece.
BBC News Brasil - A atual onda de populismo de direita é marcada pela negação da Ciência - das mudanças climáticas às vacinas. A pandemia e o esforço da comunidade científica em busca de respostas sobre a doença podem eventualmente mudar essa característica?
Mudde - Não, não acho que muitas pessoas vão pensar diferente depois da pandemia.
O estereótipo dos eleitores da ultradireita é de que eles negam as mudanças climáticas e a covid-19, mas não é exatamente isso.
De forma geral, eles aceitam que elas existem, mas negam pontos específicos - e, por isso, acreditam em outras soluções (não endossadas pelo conhecimento científico).
Dado que levará muito tempo até que consigamos entender de fato qual a resposta mais efetiva contra o novo coronavírus - se soubermos algum dia, já que isso depende de um amplo espectro de fatores que varia de um país para outro -, essa discussão será primordialmente determinada pela política, em vez da Ciência.

Pablo Ortellado Escalada acelerada, FSP

Enquanto Bolsonaro aspira ruptura institucional, establishment e oposição tentam criar condições para o impeachment

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O jogo parece travado. Bolsonaro gostaria de atropelar as instituições, mas não tem força para fazê-lo; o establishment e a oposição gostariam de impedir o presidente, mas não têm apoio popular nem voto no Congresso.
Enquanto nenhuma ação definitiva é tomada, as tensões vão escalando.
Bolsonaro parece cercado. As investigações sobre as rachadinhas no Ministério Público do Rio, as investigações sobre a máquina de propaganda do gabinete do ódio no Supremo e o depoimento de Moro a pedido da PGR podem vir à tona a qualquer momento. Em todas essas frentes podem emergir evidências que façam Bolsonaro perder apoio e subsidiem um pedido de impeachment mais robusto.
Para reagir ao cerco, Bolsonaro está fazendo três movimentos simultâneos. O primeiro é tentar controlar a Polícia Federal, primeiro com a indicação de Alexandre Ramagem e, agora, com a indicação de Rolando de Souza. Com tanto escrutínio e com tanta oposição na PF, pode ser que o presidente não consiga exercer bem esse controle.
O segundo movimento de Bolsonaro é comprar apoio no Congresso para impedir um processo de impeachment. Para reduzir a insatisfação na sua base de apoio, Bolsonaro está oferecendo apenas cargos do segundo escalão, que são menos visíveis.
A aliança com o centrão tem tudo para durar pouco. Esse é o mesmo centrão que dava sustentação ao governo Dilma e que, ao primeiro sinal de fraqueza, saltou para o barco do impeachment.
Além de aliado naturalmente instável, o partido do fisiologismo tem motivos para não confiar em Bolsonaro. O presidente não apenas descartou Sergio Moro, que parecia pilar do governo, como descartou sem pudor aliados outrora fundamentais, como Magno Malta, Gustavo Bebianno, Joice Hasselmann e o general Santos Cruz. Regina Duarte e mesmo Paulo Guedes podem estar a um passo de sair.
O terceiro e último movimento é preparar uma ruptura institucional tentando fazer crescer as carreatas antigovernadores e aliciando lunáticos para o acampamento paramilitar, "dos 300", que se estabeleceu em frente ao Congresso.
Um dos motivos que fazem a situação ainda mais confusa é o apagão de informações. Com o isolamento social, os institutos de pesquisa que faziam entrevistas presenciais, consideradas mais sólidas, migraram para as entrevistas telefônicas, utilizadas pelos institutos menores. Os dados dos diferentes institutos divergem um bocado entre si, e não sabemos dizer com certeza se com a crise do coronavírus Bolsonaro perdeu, manteve ou ampliou o apoio ao seu governo.
Pablo Ortellado
Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.