Uma maravilha da literatura de humor se torna o 'Eu Acuso' de Émile Zola
Entre as atividades de Marty Konigsberg, proeminente cidadão do Brooklyn, em Nova York, nos anos 40, estavam vender palpites para lutas "arranjadas" e receptar objetos, digamos, roubados. Ninguém ficou rico por sua causa, porque ele só trabalhava com lutadores de quinta, mas um dos objetos —uma máquina de escrever Underwood, que ele levou por dois dólares e deu a seu garoto— teve um nobre destino. Dela saíram os primeiros textos, frases e roteiros de Woody Allen.
Esta é uma das histórias contadas por Woody em sua autobiografia recém-lançada, "Apropos of Nothing" —a respeito de nada. O título é enganador. Em suas 288 páginas, Woody fala de tudo e se dedica, inclusive, a uma autodepreciação em regra, impensável para as plateias que seus filmes seduziram nos últimos 50 anos.
Woody zomba de sua imagem de "intelectual" —que atribui ao fato de usar óculos— e cita uma longa lista de livros que, até em seu prejuízo, nunca leu. Em jovem, por exemplo, a garota que ele queria namorar insistia em citar um sujeito chamado Stendhal, enquanto ele só queria falar das bochechas de "Cuddles".
"Cuddles" era o apelido de S.Z. Sakall, um amado ator coadjuvante, famoso por sacudir as bochechas (ele fez o chefe dos garçons em "Casablanca"). Esta é só uma das mil referências de Woody a figuras e gírias da cultura americana que o marcaram, a maioria de trânsito quase impossível para qualquer língua. Imagine traduzir "Ulisses", de James Joyce, reescrito por Damon Runyon —eu não encararia.
"Cuddles" era o apelido de S.Z. Sakall, um amado ator coadjuvante, famoso por sacudir as bochechas (ele fez o chefe dos garçons em "Casablanca"). Esta é só uma das mil referências de Woody a figuras e gírias da cultura americana que o marcaram, a maioria de trânsito quase impossível para qualquer língua. Imagine traduzir "Ulisses", de James Joyce, reescrito por Damon Runyon —eu não encararia.
Para os afins a pelo menos metade das referências, "Apropos of Nothing" é uma obra-prima do humor. Mas Woody teve de dedicar boa parte dele a se defender da infame pecha de tarado, lançada por sua ex-namorada Mia Farrow e por Dylan, sua filha adotiva. O livro se torna então uma versão pessoal e pungente do "Eu Acuso", de Émile Zola, e o riso dá lugar à revolta.