domingo, 3 de maio de 2020

Ruy Castro Do riso à revolta, FSP

Uma maravilha da literatura de humor se torna o 'Eu Acuso' de Émile Zola

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Entre as atividades de Marty Konigsberg, proeminente cidadão do Brooklyn, em Nova York, nos anos 40, estavam vender palpites para lutas "arranjadas" e receptar objetos, digamos, roubados. Ninguém ficou rico por sua causa, porque ele só trabalhava com lutadores de quinta, mas um dos objetos —uma máquina de escrever Underwood, que ele levou por dois dólares e deu a seu garoto— teve um nobre destino. Dela saíram os primeiros textos, frases e roteiros de Woody Allen.
Esta é uma das histórias contadas por Woody em sua autobiografia recém-lançada, "Apropos of Nothing" —a respeito de nada. O título é enganador. Em suas 288 páginas, Woody fala de tudo e se dedica, inclusive, a uma autodepreciação em regra, impensável para as plateias que seus filmes seduziram nos últimos 50 anos.
Woody zomba de sua imagem de "intelectual" —que atribui ao fato de usar óculos— e cita uma longa lista de livros que, até em seu prejuízo, nunca leu. Em jovem, por exemplo, a garota que ele queria namorar insistia em citar um sujeito chamado Stendhal, enquanto ele só queria falar das bochechas de "Cuddles".
"Cuddles" era o apelido de S.Z. Sakall, um amado ator coadjuvante, famoso por sacudir as bochechas (ele fez o chefe dos garçons em "Casablanca"). Esta é só uma das mil referências de Woody a figuras e gírias da cultura americana que o marcaram, a maioria de trânsito quase impossível para qualquer língua. Imagine traduzir "Ulisses", de James Joyce, reescrito por Damon Runyon —eu não encararia.
Para os afins a pelo menos metade das referências, "Apropos of Nothing" é uma obra-prima do humor. Mas Woody teve de dedicar boa parte dele a se defender da infame pecha de tarado, lançada por sua ex-namorada Mia Farrow e por Dylan, sua filha adotiva. O livro se torna então uma versão pessoal e pungente do "Eu Acuso", de Émile Zola, e o riso dá lugar à revolta.
Cena de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa"
Woody Allen em cena de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" - Divulgação
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Marcos Lisboa Veneza e o Estado de Direito, FSP

Exemplos de governança da cidade inesperada.

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Em 1204, Veneza tornou-se senhora de uma vastidão de terras, passando a controlar 3/8 do Império Bizantino, várias ilhas, a costa ocidental da Grécia e outras regiões, resultado de uma guerra lendária.
Enrico Dandolo comandava a armada de Veneza na cruzada ungida pelo papa Inocêncio 3º. Peripécias levaram os invasores a tentar reaver o trono usurpado do herdeiro de Bizâncio. Constantinopla era a cidade mais impressionante da cristandade, e o ataque inicial foi rechaçado.
O velho líder não teve dúvidas e mandou sua embarcação avançar solitariamente em direção à costa. Inacreditavelmente, foi bem-sucedido. A bandeira de Veneza foi fincada em solo. Seus aliados o seguiram.
Após a vitória, Dandolo negociou habilmente os espólios e morreu pouco depois, sendo enterrado na grandiosa Hagia Sofia. Veneza, porém, recusou o império legado. Controlar estrangeiros custava caro e a desviava da sua fonte de riqueza, o comércio. Apenas não aceitava perder o controle da sua rota de navegação.
Em "Venice: A New History", Thomas Madden conta a história da cidade inesperada.
A laguna no norte da Itália possui muitas ilhotas. No fim do Império Romano, com as seguidas invasões bárbaras, moradores da redondeza passaram a ocupá-las para se proteger. Sua sobrevivência dependia da pesca e da extração de sal para comercialização.
As guerras acabaram por induzir a povoação nas terras inóspitas no centro da laguna, que, com muito aterro e pontes, tornou-se Veneza.
A natureza e o domínio da navegação resultaram em uma sociedade peculiar. Sem terras, não havia regime feudal. A cidade dominada por comerciantes era liderada pelo doge, escolhido pela população. Alguns tentaram transformar o cargo em hereditário, mas Veneza em geral descartava os herdeiros.
Em 1192, a cidade elegeu, por vias indiretas, Dandolo como doge. Ele tinha 85 anos e era cego havia duas décadas.
Seu juramento de posse foi, em boa parte, dedicado a prometer o que não iria fazer, como divulgar segredos de Estado ou conduzir os negócios comunais sem a aprovação do conselho do doge. No governo, ordenou a codificação das leis, entre outras reformas.
Quando dignitários vieram negociar a participação na cruzada, explicou que não tinha autoridade para fazer acordos. Seguindo a governança, a proposta foi apresentada ao conselho do doge, que estimou os custos da empreitada. Posteriormente, foi aprovada pelo conselho da corte.
Dandolo iniciou a travessia aos 95 anos e, aos 97, liderou, cego e em pé na proa, o desembarque em Constantinopla.
A Veneza de 1200 parece saber mais do Estado de Direito do que o mandatário em Brasília.

Em “Enrico Dandolo and the Rise of Venice”, Thomas Madden descreve com maiores detalhes a evolução da governança da cidade de Veneza no fim do século 12, como a criação dos conselhos menor e maior, e as crescentes restrições para decisões monocráticas do doge.
​O livro transcreve o surpreendente juramento de posse de Dandolo, que nasceu por volta de 1107, como indica a documentação sobre seu pai e seu tio homônimo, patriarca da igreja de Grado. Em cada evento descrito nesta coluna, utiliza-se sua idade aproximada com base na evidência disponível.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.