quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Ruy Castro Esquerdireita, FSP

Lula e Bolsonaro fizeram de esquerda e direita uma coisa só

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É uma sensação inédita, a de acordar em 2020 e descobrir que, por uma insólita química, esquerda e direita se tornaram uma coisa só. O símbolo dessa simbiose é Eduardo Fauzi Richard Cerquise, ativista integralista, correligionário de Jair Bolsonaro no PSL e terrorista que, há duas semanas, atirou a bomba na produtora do grupo Porta dos Fundos. Na ficha de Cerquise, consta ter sido preso como black bloc nas manifestações de 2013 e defendido pela infame Sininho, militante próxima do deputado Marcelo Freixo, do PSOL. E que, para escapar à nova prisão, fugiu para onde? Para a Rússia. Mudou o Natal ou mudaram Cerquise, Sininho, Freixo e a Rússia?
Essa redução ideológica tem raízes. Começou quando Lula conseguiu empurrar toda a esquerda brasileira que não ele para a direita, fazendo de si próprio um dogma político-religioso e eliminando até possíveis sucessores —ou alguém os enxerga nos boulos, dilmas e haddads? Bolsonaro faz agora o mesmo com a direita —empurra-a para a esquerda, de modo que só reste ele como opção em 2022. Para não haver dúvida, dedica-se, desde que se sentou na cadeira, a desmoralizar seu único aliado ainda ameaçador, o ex-sergiomoro Sergio Moro.
Lula e Bolsonaro temem os meios tons. A hipótese de matizes intermediários —socialistas, trabalhistas, social-democratas, conservadores esclarecidos e liberais em geral—, capazes de gerir o Brasil, é veneno para as aspirações deles. Para permanecer no jogo, precisam polarizar o país e reduzi-lo à mesquinhez dos personalismos que representam.
A ideia de que Lula e Bolsonaro se tornaram a mesma pessoa, só que com sinal trocado, ofende os partidários de um e de outro. Para os bolsonaristas, Lula fu com o país. Para os lulistas, é o que Bolsonaro está fazendo na sua vez.
Para os que não se enquadram em nenhuma das categorias, e que talvez sejam 60% da população, os dois lados têm razão.
Lula celebra gol em jogo na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema - Amanda Perobelli/Reuters
Ruy Castro

O QUE A FOLHA PENSA Folha Verão sem canudo

Oito estados já proíbem o acessório de plástico, mas é preciso fazer mais

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Padaria de São Paulo oferece canudos descartáveis - Rivaldo Gomes/Folhapress,
O verão de 2019-2020 deve ser o primeiro em que muitos brasileiros se depararão com a proibição de algo que antes era inseparável dos refrescos da estação mais quente: o canudinho de plástico.
Levantamento da Folha mostrou que oito estados e o Distrito Federal baniram o acessório em pouco mais de um ano. Em 17 dos 18 outros estados há projetos de lei em tramitação para tanto.
Diversos municípios também tomaram a iniciativa de proibir os canudos: 80 cidades têm regras nesse sentido, segundo a organização não governamental WWF.
Ambientalistas chamam a atenção para a poluição dos mares por plásticos há décadas, mas a luta contra os canudinhos em particular ganhou especial velocidade a partir de 2015, quando viralizou um vídeo feito por uma bióloga de uma tartaruga com uma dessas peças de plástico no nariz.
Se leis não bastam para que os canudos sumam magicamente de restaurantes, bares, quiosques e padarias —a fiscalização da proibição no Rio de Janeiro, por exemplo, é deficitária, como mostrou reportagem da Folha—, os textos dos projetos acompanham um aumento da conscientização de parte dos brasileiros sobre o tema.
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Muitos já perceberam que não é grande sacrifício usar acessórios de papel, de metal ou mesmo de materiais naturais; ou simplesmente dispensá-los e tomar seu líquido direto do copo. Usados por poucos minutos, os canudos raramente são reciclados e podem demorar centenas de anos a se decompor.
Mudança de comportamento similar aconteceu com as sacolinhas descartáveis plásticas há alguns anos.
Obrigados por lei, mercados e outros estabelecimentos começaram a cobrar por elas. Depois da onda inicial de reclamações, muitos consumidores passaram a levar consigo às lojas suas sacolas retornáveis, caixas ou carrinhos de compras, sem grandes dificuldades.
Ainda que sejam positivas as investidas contra um ou outro vilão da vez, a humanidade precisa repensar sua relação com o plástico, em especial aquele de uso único, logo descartado.
São necessárias medidas mais drásticas e alterações de hábitos permanentes em todos os países para evitar que o oceano continue a ser tomado por milhões de toneladas de copos, pratos, sacolas, garrafas, brinquedos e tantos outros badulaques não biodegradáveis todos os anos.

Nem tudo que é sólido se desmancha no ar, FSP

Minha ignorância nesses assuntos é total, de modo que peço a compreensão dos historiadores.
Além do assombro pela coisa em si —falo do incêndio da Notre-Dame—, levei um susto com a foto publicada neste domingo na Folha (pág. B10), que mostrava o instante em que a flecha da catedral caía por terra.
A estrutura —via-se bem— era de madeira! Pensava que fosse tudo de pedra... Santa ingenuidade: uma coisa de pedra maciça, alta daquele jeito, ficaria sem dúvida pesada demais; e o teto, afinal de contas, dificilmente seria de pedra inteiriça também. Fosse de pedra, cairia.
Ilustração
André Stefanini/Folhapress
Mas a ilusão de um monumento não deixa de ser sempre essa: ele surge aos nossos olhos como sólido, indestrutível, construído por mãos de gigante, impedindo-nos de saber que por dentro é vivo, vegetal e frágil como uma armação de palitinhos.
A madeira tem, naturalmente, outro simbolismo. É como se, debaixo de seus solenes paramentos de pedra, aquela igreja ainda guardasse a simplicidade da Cruz.
Numa associação menos piedosa, a estaca em chamas também lembra a prática de levar as bruxas à fogueira. Era, dizia-se, para purificá-las.
E que o incêndio tenha ocorrido por causa das obras de renovação da Notre-Dame, eis uma ironia difícil de contornar; é como se o fogo cobrasse um pedágio por tal pretensão à permanência.
Leio que já se organiza um concurso internacional de arquitetura para a reconstrução da famosa flecha. Rezo para que não saia uma grande besteira.
A pirâmide de vidro instalada no Louvre, obra realizada por I. M. Pei em 1989, faz sucesso entre os turistas e os entendidos.
Para mim, continua sendo uma aberração, desproporcionalmente pequena no grande vazio daquela esplanada neoclássica. Algo como um daqueles cristaizinhos místicos que se penduram no teto das casas ripongas, ou um brinquedo de princesa da Disney esquecido no espaço da história real.
O uso daquilo como entrada para o museu e para o metrô absolve, em parte, a sua pequenez pós-moderna. O mesmo aconteceu com o horrível, sempre horrível, Centre Pompidou, geringonça com suas entranhas de tubulação colorida à mostra, com que Renzo Piano e Richard Rogers desfiguraram um dos bairros mais preservados de Paris.
Seja como for, aquilo pôs na moda e revitalizou a região. Havia um antigo mercado de víveres por ali, com a sujeira dos legumes, a confusão dos compradores, a memória de um romance de Zola, com toda a feiura essencial da vida.
No seu lugar, fez-se Cultura. E, para "desmistificar" a ideia de que coisas culturais são bonitas, os arquitetos desenharam uma espécie de fábrica de mentira, uma usina disfuncional, um pesadelo de encanador.
O modernismo estava em plena crise ao fim da década de 1970. Já numa mentalidade "pós-moderna", o museu de Orsay, pouco tempo depois, aproveitou uma estação de trem oitocentista, sem alterá-la demais.
Tratava-se de desvalorizar a ideia de ruptura, e considerar que também o detestado mundo burguês, aquele do século 19, merecia alguma preservação estética.
Que farão com a flecha da Notre-Dame agora? Estamos falando de uma construção que se manteve por séculos e séculos. É difícil sustentar que nossa curta geração tenha o direito de mexer significativamente com uma herança dessas.
O poeta Charles Péguy (1873-1914) escreveu um longo poema em que "apresentava", para Nossa Senhora, a cidade de Paris. Construída às margens do rio Sena, a catedral convivia com as atividades de comércio no cais.
Péguy comparou a igreja a um grande barco —e os fiéis a remadores nos seus bancos. A flecha e os arcobotantes seriam como as gruas e os guindastes do porto.
O barco não carregaria sacas de farelo, "o nosso pobre milho". A carga seria leve, diz o poeta à Virgem, porque feita dos "nossos pecados" —aqueles pecados "pelos quais pagou Teu Filho".
O barco permaneceu ancorado, à beira do rio, por centenas de anos. Mas ainda assim atravessou um grande oceano: o oceano do tempo. A viagem, com remos de madeira e pedra, continua.
P.S.: No artigo anterior, comentei o filme "Soldado Estrangeiro", dizendo que foi dirigido por José Joffily. Omiti, inexplicavelmente, o nome do codiretor Pedro Rossi, que também fez com Joffily o filme "Caminho de Volta".
Marcelo Coelho
Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.