domingo, 5 de janeiro de 2020

Governo Bolsonaro-Guedes é o tempo sombrio de uma caverna sem luz, FSP

Nas primeiras vezes, há não sei quantos anos, em que encerrei uma crônica com intimidade, nos votos de ano bom ou dando férias aos leitores no início das minhas, aqui na casa a coisa não caiu bem. Flávio Rangel, cronista de sucesso na Ilustrada e meu introdutor nestas páginas, me dava as notícias divertidas das críticas. 
Folha era, ou é, um jornal compenetrado, de acordo com a índole local. Quanto a mim, era e continuei visto, entre outros, como um forasteiro da imprensa. Mas não poucos adotaram as mensagens informais.
Não incluí votos de Natal e de Ano-Novo, nem mesmo sisudos, nos textos recentes. Senti que, sem ressalvas, cometeria alguma hipocrisia, não crendo na possibilidade do que diria. E ressalvas não eram próprias para a ocasião. Não duvido de que parte das previsões otimistas para 2020 venha de convicções e esperanças verdadeiras —o que, em todo caso, não se confunde com fundamento. Não foi assim, porém, a maioria do que se leu e ouviu.
A sinceridade não é bem vista, com escassas hipóteses de exceção. Esse é um vício forte e muito difundido do jornalismo, não só o nosso. Os viciados constrangidos recorrem à dubiedade, ao negativo seguido da compensação positiva. Nada os impedindo, nem aos mais extremados, de mostrar nas suas relações o oposto do que escrevem ou dizem como profissionais.
A economia é um campo pródigo nesses tipos, muito mais extenso e nefasto do que qualquer outro. Nem por isso a prática é menos comum na política. 
Nestes dias, um exemplo à mão: a imprensa e o jornalismo eletrônico dos Estados Unidos estão repletos de artigos críticos a Trump, pelo risco de guerra que abriu para provável neutralização do seu impeachment, mas também justificadores da pretensa defesa da honra nacional, ou coisas assim. “Tudo é relativo”, ouve-se cá e lá. Mentira. A integridade profissional, entre outras, não é.
As obrigações e programas sociais de governo foram devastados em 2019 e ainda mais esmagados por Paulo Guedes e Jair Bolsonaro no planejamento para 2020. O Bolsa Família perde R$ 2,5 bilhões. Foram reduzidos à metade os insuficientes recursos para fiscalização trabalhista, sendo o Brasil um caso escandaloso de desrespeito às normas e à segurança no trabalho. 
O programa de Educação de Jovens e Adultos só recebeu em 2019 R$ 16 milhões até meados de dezembro, 1,6% do que já recebia em 2010, chegando em 2012 a R$ 1,6 bi, com fantástica recuperação de jovens e adultos que deixaram a escola.
A Presidência da República, que concentra a direção de toda a propaganda governamental, faz publicidade na CNN do avanço no programa de moradias proporcionadas pelo governo. É mentira. A verba para 2020 foi reduzida à metade da fixada para 2019, já cortada. 
A saúde, o ensino universitário, o emprego, a cultura, o patrimônio histórico, a remuneração do trabalho, a conservação e a fiscalização ambiental, a infraestrutura, o saneamento, a população indígena —tudo isso, tudo o que importa para o presente e o futuro da nação e seu povo, foi devastado, abandonado, negado, traído em 2019, e está ainda mais roubado ao país no planejamento oficial do governo para 2020.
Votos de um ano feliz sob esta realidade e esta perspectiva exigem uma ponderação. Diretos, pessoais, são expressões de sentimentos afetuosos ou cordiais. É tão bom dizê-los como os receber. Ditos de público, sua generalização confunde-se com o próprio país. No caso, o país que se antevê frustrado, fracassado, demolido.
Há quatro meses, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo, advertia: “Um novo e sombrio tempo se anuncia”. É nele que estamos. Por tudo o que o governo Bolsonaro-Guedes faz e começa a ampliar, nosso tempo sombrio não é sequer aquele do túnel, porque então haveria luz no seu fim. É no tempo sombrio de uma caverna que entramos.
Janio de Freitas
Jornalista

A cartola altiva do gênio, Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
05 de janeiro de 2020 | 06h00

No fim do ano passado, comentei que começamos o ano de Beethoven. Ao longo de 2020, o mundo musical lembra os 250 anos do nascimento do gênio da música. Recomendei filmes e leituras na ocasião e queria enfatizar o imenso prazer da leitura da obra editada pela Contexto: Beethoven, As Muitas Faces de um Gênio, que reúne o texto atual do maestro João Mauricio Galindo e o texto mais antigo de Romain Rolland.
Para entender a mudança de consciência e de recepção entre os séculos 18 e 19, vou relembrar um conhecido episódio da vida do músico. Beethoven aproximara-se do poeta Goethe. Os dois se admiravam, porém, divergiam sobre muitos pontos. Goethe era um homem cordato e polido, fiel a muitas tradições. Beethoven sempre cultivou maior desalinho na apresentação, rebeldia na fala e certa dificuldade com a virtude da polidez social. Era de um gênio “incontrolável”, escreveu Goethe. 
Nossos dois distintos criadores andavam em conversas em Teplitz (hoje a estação de banhos de Teplice, República Checa). Beethoven estava às voltas com a monumental 7.ª Sinfonia. Eis que, ao longe, aproxima-se o cortejo com parte da família real austríaca. Ao ver o poder ambulante no horizonte, o autor de Fausto se inclinou respeitosamente, retirou o chapéu, e ficou curvado para que as cesáreas figuras passassem. E nosso músico? Não apenas não se inclinou, como, dizem, manteve o chapéu na cabeça e caminhou de forma acintosa, ignorando áulicos ultrajados. O filho de Bonn pediu a Goethe que fizesse o mesmo; o escritor recusou. O “incidente de Teplitz” foi pintado por Carl Rohling, por volta de 1887. 
O episódio revela muitas coisas. A primeira é o fim da era dos músicos-empregados típicos do Antigo Regime. Beethoven e os românticos que vieram viveriam ainda ligados a grandes mecenas ocasionais, mas o mercado consumidor de partituras era uma realidade. Concertos pagos fora de palácios e música impressa poderiam sustentar um criador sem que ele precisasse passar a vida agradando a um rei ou a um bispo. Sim, houve condes e condessas enchendo a bolsa do compositor, porém Beethoven era infinitamente mais autônomo do que fora Mozart ou Haydn. 
Há mais na história pintada, como é comum. Não é mais o músico que se curva a cabeças coroadas, todavia a corte que passa a venerar gênios. Com traços distintos, será o que vai marcar a relação entre o rei da Baviera e Wagner. O gênio é único, especial, alguém que causa comoção ao entrar em festas. O nobre é um acidente de nascimento. Em 250 anos o mundo teria esquecido o obscuro conde ou a esquálida duquesa e ainda celebraria Ludwig van Beethoven. Talvez nosso amado músico tenha sido um dos primeiros a perceber que ele estaria tocando a eternidade e as pompas do mundo passariam como um cortejo breve de vaidade rasa e interesses mesquinhos. 
Com Goethe morre um mundo de corte, do tipo de sociedade analisada pelo grande Norbert Elias. A sociedade da forma, da etiqueta, do direito de nascimento e do sangue azul. Goethe é um cisne genial que canta tais valores e o peso da tradição. Beethoven indica o que vem pela frente. A partir de Beethoven flui um curso d’água que crescerá. Lá na frente surgirá outra gramática. Liszt joga um cigarro ao chão na rua e uma fã avança, recolhe e engasta em metal precioso para fazer um colar-relicário com o toco fumado que teve a glória de tocar na boca do pianista. Liszt exibe seus dedos longuíssimos sobre o teclado e a plateia delira. Um balançar de seus cabelos compridos leva algumas damas ao desmaio, misto de admiração no espartilho apertado. A Lisztmania flui na planície romântica das grandes cidades como um rio de nascentes no alto, muito ao alto, na montanha beethoviana. 
A força da veneração aos criadores e artistas continuou. De muitas formas, saiu de controle e o pleonástico fã-fanático nem necessita de gênios de primeira linha, basta algum objeto com um pouco de amparo midiático. O tempo, a peneira da humanidade, vai dividindo com mais vagar. 
Beethoven sabia que era um gênio. Seu público, mesmo com percalços, concordava com a opinião. Sua música foi se tornando incontornável no repertório de todas as orquestras. Em março de 1827, uma multidão silenciosa seguiu o cortejo fúnebre do homem que mudara a história da música. Era um gênio com sangue africano, holandês e alemão. O rebelde que não retirara sua cartola diante de reis, o insubmisso que mudou dogmas sobre sonatas e sinfonias, era agora levado ao descanso eterno por milhares de austríacos de todas as categorias sociais com o chapéu na mão. Sua máscara mortuária foi zelosamente moldada no rosto recém-falecido. Querem avaliar o grau da transformação? Mozart teve o corpo jogado em vala comum com um enterro deserto e tomado por violenta tempestade. Era, na prática, um indigente quase esquecido. Segundo uma tradição nunca comprovada, ele teria ouvido o menino Beethoven tocar e profetizou que o mundo ainda ficaria impactado com aquele talento. O mundo mudou e Beethoven é um dos pais da nova era de veneração ao portador da centelha divina. Eis um bom motivo para ler e ouvir Beethoven. Quer crescer? Tente um concerto no vasto cardápio oferecido pela Osesp na Sala São Paulo. Está longe? Acesse o segundo movimento da 7.ª Sinfonia (Allegretto) que sai do tom de Lá maior do primeiro para um solene e tocante Lá menor. É um começo. Permita-se ousar, desafie-se e, mesmo não podendo ser um homem como Beethoven, ao menos não se curve a todo poder que cruza o boulevard. Boa semana a todos os homens e mulheres de boa vontade.