domingo, 5 de janeiro de 2020

No cenário otimista, o que sobra para as esquerdas?, Celso Ming, OESP

Celso Ming e Guilherme Guerra, O Estado de S.Paulo
04 de janeiro de 2020 | 19h00

O ano termina e outro começa com certo otimismo entre os analistas. E há mesmo bons indicadores de que o País ensaia uma recuperação econômica, num clima de inflação baixa e sob controle e de juros básicos que nunca estiveram em níveis tão reduzidos. Bancos, consultorias e analistas reveem para cima projeções de crescimento e agências de rating reclassificam também para melhor suas notas para o Brasil.
Em edições anteriores, esta Coluna já mostrou que os indicadores são animadores, mas é preciso cautela e dar um tempo para saber se a retomada é consistente e se não passa de voo de galinha, como outros no passado.
A oposição, em especial as esquerdas, apostou que aconteceria o contrário e, ao longo do primeiro ano da administração Bolsonaro, aferrou-se ao discurso do “quanto pior, melhor” e de que estava tudo errado na política econômica neoliberal conduzida pelo ministro Paulo Guedes.
Oposição e Bolsonaro
A oposição apostou que a economia não vingaria, mas há agora indicadores de que o País ensaia uma recuperação econômica Foto: Marcos Müller/Estadão
Não só condenou a reforma trabalhista, como, também, com exceção do PDT, continuou negando a necessidade da reforma da Previdência. Até hoje não apresenta um projeto de reforma tributária que vá além da taxação das grandes fortunas e, ainda assim, sem avançar como se faria isso.
Também não avançou nenhuma proposta de como o setor público deve enfrentar a mãe de todos os problemas econômicos do País, que é a desordem das contas públicas, especialmente dos Estados e dos municípios. Tende a condenar a austeridade orçamentária, ao contrário do que fizeram os dois últimos ministros da Fazenda do governo Dilma, e, no lugar dela, prega o crescimento econômico, sem explicar como isso seria obtido.
Esse viés negacionista parecia ter algum fôlego enquanto os indicadores se mantiveram ruins. Mas, se a economia confirmar a aceleração, essa estratégia pode trazer mais prejuízos eleitorais para as esquerdas.
Para o economista Marcio Pochmann, um dos coautores do programa econômico do Partido dos Trabalhadores (PT) exposto na última campanha eleitoral, o clima otimista tem muito de fake, porque se restringe ao mercado financeiro, que sempre se dá bem, até mesmo na recessão. A crise, afirma ele, continua batendo forte na indústria, que enfrenta enorme ociosidade, e nas pequenas e médias empresas.
A solução, para Pochmann, é retomar a cartilha do Partido dos Trabalhadores colocada em prática durante o governo Lula, principalmente em seu segundo mandato, de retomar a primazia do Estado na condução da economia. O foco, diz ele, deve ser a retomada do mercado interno com providências semelhantes à recente liberação dos saques do Fundo de Garantia, uma “medida heterodoxa”. Mas, além de eventual, é pouco, avalia ele. “A fotografia não deixa de ser positiva, mas o filme não se sustenta”, diz.
Sugere, ainda, aumentar investimentos com mais endividamento – sem levar em conta que esse passivo hoje se avizinha dos 80% do PIB. Prega, também, utilização de uma parcela das reservas externas na indústria hospitalar, uma vez que melhora na área de saúde é uma das principais demandas da sociedade.
Em suma, é um discurso que repete o que não conseguiu sensibilizar o eleitor nas últimas eleições. O maior problema para as esquerdas é o de que esse conjunto de proposições não parece consistente a ponto de se contrapor para valer à atual linha de condução da política econômica.
Apenas condenar o baixo crescimento e o desemprego é, de certa maneira, remeter-se à situação que prevalecia no governo Dilma. Repisar que o aumento do emprego informal e das atividades por conta própria precariza o trabalho não leva em conta a enorme transformação em marcha no mercado, não só no Brasil.
O cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, explica que as esquerdas, e não só o PT, vivem um dilema sobre como se posicionar em relação ao governo Bolsonaro, já que aguardam o sucesso ou o fracasso da política econômica para decidir como atacar o governo. Além disso, o eleitor brasileiro já não se deixa sensibilizar apenas com apelos nostálgicos dos tempos de bonança da era Lula. É preciso trocar esse disco, diz.
E Cortez acrescenta: “Em um cenário de sucesso econômico, o que resta é apontar riscos para o modus operandi do bolsonarismo”, referindo-se à retórica isolacionista e aguerrida do clã do presidente da República. “Em síntese, para as esquerdas, num cenário de crescimento econômico, as perspectivas não são positivas.”

Ano novo, Ugo Giorgetti, O Estado de S.Paulo

Ugo Giorgetti, O Estado de S.Paulo
05 de janeiro de 2020 | 04h30

Começar de novo, uma segunda chance quem sabe? Ou uma última. De qualquer forma quando um novo ano começa é impossível não pensar neste recomeço, artificial, automático, repetitivo, monótono, feito de fórmulas gastas que vamos ajudando a difundir, como se o começo de cada ano não fosse apenas um dia a mais nas nossas vidas e os votos tivessem algum valor e principalmente contivessem alguma verdade, não um artifício para nos inculcar um pouco de alegria forçada num mundo e num país que teimam em ser exatamente o contrário dessas expectativas. Mas, de qualquer forma, por cansaço ou por negligência aderimos e desejamos bom ano a todos. Eu, particularmente desejo um bom ano aos garotos que começam essa competição chamada de Copa São Paulo, destinada a jogadores muito jovens que apenas se iniciam. O triste é que muitos deles não estão iniciando, mas terminando.
Para muitos essa Copinha é a derradeira oportunidade. No limite da idade, já tratados quase como veteranos, eles sofrem a angústia de uma última possibilidade. Todos sabemos que ao fim desse torneio a maioria esmagadora dos jogadores vai retornar ao seu cotidiano quase dramático. Vão retornar, com o sonho desfeito dessa Copa terminada, a vagar pelos campos do Brasil esperando alguma coisa que suspeitam que passou. O que foi, poderia ter sido outra coisa, mas não foi. Como é possível desejar um bom ano a esses garotos cujo ano termina dentro de poucas semanas, se muito? A exposição pela televisão não os salvou, o empresário ideal que esperavam os notassem não notou, a ilusão de um olheiro de clube no exterior também não passou de longínqua hipótese.
No fim sobrou o Brasil. E lá vão eles à cata de alguma coisa que os alimente pelos longos onze meses restantes do ano que agora se inicia. Esse torneio não revela mais ninguém, não serve mais ao futebol, não cumpre promessa alguma. Talvez um ou outro jogador já de grande clube ainda apareça, sempre há. Mas não são muitos. Nesse futebol hierarquizado, onde é impossível ser alegre e se divertir, onde os treinadores passaram de “professores” a “mister”, os garotos não têm mais vez. Não mostram mais futebol, mas tentam ganhar de qualquer maneira para se manterem um pouco mais vistos pelas câmeras. Como em praticamente todos os setores dessa nossa sociedade o destino está traçado para quase todos os garotos desde o dia em que nasceram.
A coisa mais comum que tenho ouvido são declarações de jogadores importantes que, em entrevistas, frequentemente se referem a um amigo ou um irmão que, esses sim eram craques, mas algo lhes truncou a carreira e ficaram pelo caminho. É um lugar comum o craque lembrar sempre um outro, mais craque ainda, mas que não aconteceu. Talvez as lembranças dos craques fracassados esconda apenas um sentimento de culpa. Talvez os colegas, amigos e irmãos não fossem tão bons assim, mas evocá-los no momento em que estão completamente esquecidos é um agradecimento, tardio, mas consolador. É possível existirem por aí exércitos de jovens que podiam ter sido, mas não foram. 
É a esses os futuros esquecidos que me dirijo, desejando-lhes um bom ano novo. Sem muita convicção sobre o que lhes vai acontecer, mas com sinceridade. A competição e a exclusão massacrantes estão começando cada vez mais cedo. Logo teremos fracassados de 12 anos, frustrados antes da adolescência , marcados antes de terminar a infância. Tenho, porém a esperança de que alguma alegria pode surgir disso tudo. Quem sabe o futebol redentor que o Flamengo nos apresentou este ano não tenha contaminado os responsáveis pelas categorias de base? Os fatos costumam desmentir nossas previsões mais seguras.

'É crime de lesa-pátria o que estão tentando fazer com o cinema', diz Barretão, FSP

“Dá tempo de tomar um vinhozinho?”, pergunta Luiz Carlos Barreto, 91, à sua mulher, Lucy, 87. “Não, Luiz Carlos. Vamos nos atrasar! É pra subir só pra pegar o paletó”, responde ela, que fica no carro e pede ao motorista que acompanhe o marido até o apartamento —para ele não enrolar. 
Chove no Rio, e o trânsito na noite daquela quinta de dezembro está caótico. Mas eles conseguem chegar no horário à sessão de estreia do documentário sobre Barretão, produtor de mais de 50 filmes (como “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos”) e pai de Bruno, Paula e Fábio, que morreu em novembro de 2019
O veterano recebeu a coluna em sua produtora na tarde daquele dia. “É grande o questionário?”, perguntou ele antes de a entrevista começar. Mesmo que fosse, seria inútil. Ele falou por cerca de duas horas praticamente sem a intervenção de perguntas, emendando raciocínios. Como em um plano sequência.
Leia um resumo:
Nascido em Sobral, no Ceará, Barretão tem 91 anos
Nascido em Sobral, no Ceará, Barretão tem 91 anos - Folhapress

LESA-PÁTRIA

O cinema é parte da indústria do entretenimento e do lazer. Isso é hoje um dos setores da economia mundial que mais cresce. O Brasil tem tudo para ser um dos líderes dele. Temos uma mão de obra artística e técnica que foi fruto de anos de investimento e está nos padrões internacionais. Isso não pode ser jogado fora. É um crime de lesa-pátria o que estão tentando fazer com o cinema brasileiro.
A Ancine (Agência Nacional do Cinema) era para ser uma agência reguladora e de fiscalização. Não de fomento. 
Nós passamos o ano de 2019 sem Cota de Tela [que garante espaço para filmes nacionais nas salas de cinemas brasileiros]. A lei obriga que o presidente da República, todo ano, assine um decreto modificando a cota ou mantendo como ela está. E isso não foi feito de 2018 para 2019. Um presidente que deixa de cumprir o que está na lei é crime de prevaricação. 
O [Michel] Temer [na Presidência à época] tinha que ser punido, muito embora não fosse a concepção pessoal dele. Foi o ministro da Cultura dele [Sérgio Sá Leitão]que o induziu. Sá Leitão, um paraquedista que caiu no setor audiovisual. 
Mas o outro decreto, da nomeação do Conselho Superior de Cinema, ele assinou —colocando representantes da indústria internacional no lugar de representantes do cinema brasileiro. Num conselho cujo objetivo é o desenvolvimento do cinema nacional. 
Existe outro problema. A Ancine está parada há três meses [das quatro vagas da diretoria, apenas uma está preenchida]. A atividade [cinematográfica] está sendo sufocada por inanição. Não sei se é o projeto [do governo] ou se é pura irracionalidade. 
O fato de [o Conselho Superior de Cinema] ter voltado para a Casa Civil não foi uma tentativa do governo de botar [o cinema] sob controle. Fomos nós [do audiovisual] que pedimos que fosse cumprido o que está na Medida Provisória do governo Fernando Henrique [que cria a Ancine e atribui o conselho à Casa Civil].

INDÚSTRIA CRIATIVA

Nós, como empresários de cinema, não podemos agir como um grêmio estudantil. Em matéria de geração de empregos, a nossa indústria é campeã. E são empregos que não serão afetados pela tecnologia que desemprega. Porque ela [a indústria audiovisual] é criativa. A máquina, o algoritmo, não tem talento criativo. Você não vai prescindir [do humano] pra fazer filme. A indústria que vai salvar empregos e vidas no século 21 é a criativa. 

IDEOLOGIA

O público é quem vai dizer se aceita ou não as ideias que estão num filme. Agora, o mecanismo que é instalado para se fazer os filmes, ele não pode prejulgar que filme vai estar na tela. O que tem ideologia são os filmes. É território livre —e tem que ser mesmo.

PASSADO

O maior período do cinema brasileiro foi o da Embrafilme. Em pleno governo militar do Geisel. Porque era um governo nacionalista e tinha um cineasta de sucesso à frente da Embrafilme, que era o Roberto Farias. Alcançou patamares que nunca mais alcançou. E nenhum cinema do mundo tinha alcançado o nível que nós tínhamos.
Nos anos 1970, o Geisel ordenou que o presidente da Motion Picture [Association of America, que representa estúdios cinematográficos de Hollywood] não poderia ser recebido nem por contínuo de ministério. O cinema americano tem um lobby mundial. E faz muito bem, porque tem uma indústria capaz de abastecer os mercados.

Ô, CAFAJESTE

Eu vivi intensamente a ditadura militar. Tive contatos nos porões do SNI [Serviço Nacional de Informações]. Um dia, recebi a notícia de que o [Mário Henrique] Simonsen [ministro da Fazenda do governo de Ernesto Geisel (1974-1979)] tinha ido aos Estados Unidos para negociar dívida externa, aquela coisa de taxação de álcool brasileiro. Para conseguir vantagens, ele teve que fazer concessões na área do cinema.
O Simonsen incluiu os insumos de cinema como supérfluos, igual alimento para cachorro. Para economizar divisas. Falei com o Jece Valadão, que era muito amigo do [João] Figueiredo [que na época era chefe da SNI e depois sucedeu Geisel na presidência]. Falei: “Jece, nós estamos fodidos, porque agora importar é supérfluo. Não pode fazer filme”. Aí o Jece: “Vamos falar com o Figueiredo. Vai comigo?” 
O Jece ligou para o SNI, um capitão chamado Gay atendeu o telefone. “Ô, Gay, teu chefe está aí?”. O cara falou: “Ele está assistindo a um amistoso da seleção”. E o Jece: “Quero falar com ele pessoalmente”. O capitão: “Venha para cá, você sabe que ele te recebe”. Fomos. 
Chegando lá, o Figueiredo estava sentado com aquela barriga grande, estufada, assistindo ao jogo. Não tirou nem o olho da televisão. “Ô cafajeste, senta aí para a gente conversar”, ele disse [Jece era chamado de cafajeste em referência aos papéis que fez no cinema]. O Jece chegou, bateu na barriga do Figueiredo e falou: “Tá barrigudo, porra! Desse jeito como é que você vai comer as mulheres?”. Aí o Figueiredo: “Para, cafajeste”. Aí o Jece: “Eu trouxe aqui o Barreto, que está com a notícia de que o teu ministro, o Simonsen, vai cagar com o cinema brasileiro. Conta aí pro Figueiredo, Barreto”. 
Eu mostrei, e ele falou: “Esse Simonsen é um merda mesmo. Um entreguista. Vou abrir um processo para investigar esse troço”. Um mês depois, [o Figueiredo] falou [ao Jece]: “Diz pro teu amigo Barreto que já está tudo resolvido. Revoguei aquele negócio lá, agora vocês podem importar. Mas não faz esses filmes de merda que estão fazendo aí. Faz só filme de sacanagem, ô Jece” [risos]. 
O produtor Luiz Carlos Barreto no quintal de sua produtora, no Rio
O produtor Luiz Carlos Barreto no quintal de sua produtora, no Rio - Ricardo Borges/Folhapress

FÁBIO BARRETO

[Lucy chega à sala onde a entrevista ocorre para lembrar Barreto que eles têm que sair]. A morte dele [Fábio], é evidente, foi uma tristeza. Mas foi um treinamento de dez anos [acostumando-se a viver sem o filho, que ficou em coma durante esse período]. Ele teve um acidente [de carro] e nunca mais voltou.
[“A falência dos órgãos começou em julho e agosto”, conta Lucy. “Foi terrível, porque a gente sempre tinha esperança. Todo dia eu achava que ia aparecer alguém com uma solução”, segue ela, que criou uma programação musical para o filho ouvir enquanto estava inconsciente —a 5ª sinfonia de Beethoven era tocada toda manhã para que Fábio distinguisse o dia da noite. “Também gravamos saudações para ele, que renovávamos todo mês.”]

BRASIL

O Brasil é um país amalgamado, onde a mestiçagem se consolidou. Ela tem um poder de energia, de transformar o Brasil, como dizia Darcy Ribeiro, num novo modelo civilizatório. Não é patriotismo. O homem brasileiro pensa multiplamente. O nosso querido e grande arquiteto Lucio Costa dizia assim: “O Brasil não tem vocação para a mediocridade”.

OLAVO DE CARVALHO

É muito triste ver o Brasil sofrendo um ataque de pensadores como esse Olavo de Carvalho. Isso é uma loucura! É um desabamento [risos]. Uma catástrofe que está ocorrendo. Precisamos eliminar isso.

TEMPESTADES

O Brasil não é preto no branco. Não é promiscuidade, é uma sociedade permissiva. Eu chego aos quase 92 anos de idade sentindo como se tivesse 50 [risos], vivendo as mesmas... Já entendi que essas nuvens negras que desabam sobre o Brasil de vez em quando —e eu já vi muitas—, sempre a gente atravessa e sai no céu azul do outro lado.
Mônica Bergamo
Jornalista e colunista.