domingo, 5 de janeiro de 2020

Derrotado nas urnas, Alckmin vira 'doutor Geraldo' na televisão, Cristina Padiglione, FSP

[resumo] Depois de amargar o quarto lugar na corrida presidencial de 2018, o ex-governador paulista Geraldo Alckmin se vale de participações como médico num programa de TV matutino para tentar reaver popularidade, usando o didatismo de professor de cursinho para explicar de acupuntura a picada de cobra.
Acomodado no sofá do cenário do programa Aqui na Band, o ex-governador Geraldo Alckmin, 67, aguarda sua vez de entrar em cena. 
Antes que as câmeras levem sua imagem à tela, a atração —que desde novembro traz seu nome entre os créditos de colaboradores— exibe uma reportagem sobre as investigações do massacre que resultou em nove mortos em Paraisópolis, após ação da Polícia Militar em 1º de dezembro passado. O tucano presta atenção no que vê, mas em seus ombros não pesa mais o fardo da obrigação de oferecer respostas sobre um assunto diretamente relacionado ao ocupante da cadeira que já foi sua no Palácio dos Bandeirantes.
Folha acompanhou um dia de expediente do ex-governador de São Paulo na TV. No estúdio e no café ao lado do estacionamento da Band, ele cruza com figuras do mundo do entretenimento, um universo que ainda lhe é novo. Entre um aceno e outro, o ex-jogador Denilson, comentarista esportivo da emissora, faz questão de ir à mesa de Alckmin para cumprimentá-lo. Parece bem mais divertido trabalhar nesse negócio de televisão do que na sede do governo, a menos de dois quilômetros dali, não? Ele concorda. 
Nessa atmosfera, o novo colaborador da emissora —sem contracheque, ele faz questão de dizer— se esforça para ser tão somente o doutor Geraldo Alckmin. Mas é difícil ser tratado como apenas mais um médico de televisão.  Há quem chegue a pensar que se trata de um clone ou uma pegadinha. E “pede pra tirar retrato”, diz Alckmin, apegado ao vocabulário de quem já fazia isso desde a pré-história da selfie.
Sua personalidade política obviamente ainda se impõe, tendo ido de vereador de Pinda (como ele e os conterrâneos chamam sua terra natal, Pindamonhangaba, a 156 km da capital) a governador do estado, por 12 anos (2001-2006 e 2011-2018), além de candidato à Presidência da República por duas vezes —uma em 2006, quando foi derrotado por Lula, e outra em 2018, quando amargou o quarto lugar.
Logo após o fiasco eleitoral, Alckmin redirecionou seu foco para a formação de origem, a medicina. Aproveitou para retomar seu projeto de cursar acupuntura. Comparece semanalmente ao IOT (Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP) e até atende pacientes. O método, originário da medicina chinesa, foi o tema de seu programa de estreia. 
O curso de acupuntura, que reúne médicos de campos diversos, deve ser concluído ao fim de 2020, e o ex-governador já pensa em um mestrado ou doutorado que tenha como objeto a dor, seja ela qual for. 
O novo doutor e acupunturista televisivo desfia termos técnicos para mostrar que entende do riscado —e vai nomeando os pontos do corpo humano a fim de explicar a lógica terapêutica das agulhas espetadas. 
Enquanto se exibe diante das câmeras, Alckmin prefere escapulir de respostas sobre futuro político e cargos “até 2022”. Esse é o prazo que diz ter estabelecido para a dedicação exclusiva aos cuidados com a saúde —sua e alheia. 
O peessedebista parece sentir-se confortável com o didatismo que a televisão aberta pede. Com os cacoetes retóricos da vida política, sua fala respeita pausas e continua apoiando-se naquele tom monocórdico, entrecortado por frases inacabadas, com ritmo e pontuação que que lhe valeram comparações com textos de PowerPoint, especialmente durante debates eleitorais —alguns deles travados naqueles mesmos estúdios. 
No papel atual, Alckmin com frequência é interrompido pelo médico titular do programa, o neurologista Fernando Gomes, atento em traduzir para o telespectador parte da terminologia usada em cena. 
O glossário é necessário, sob o risco de afastar da Band uma audiência já bastante modesta, que oscila entre 0,6 e 1,5 ponto no PNT —Painel Nacional de TV, que mensura 15 regiões metropolitanas do país (cada ponto equivale a 703.167 indivíduos, segundo o instituto Kantar Ibope). Plateia restrita para quem governou mais de 40 milhões de pessoas. 
Se é mais confortável enxergar Paraisópolis com olhos de espectador do que como responsável pela Polícia Militar, Alckmin evita tripudiar sobre seu sucessor, João Doria (PSDB), afilhado político de quem veio a se afastar, retirando sua bênção inicial. “O governante tem a responsabilidade dele, mas a responsabilidade de participar é de todos nós”, diz. “Você tem que participar como cidadão, é importante. Isso precisa ser valorizado. Hoje, governo moderno é o que interage permanentemente.”
Daí que, mesmo não sendo mais governante —mas longe de não querer voltar a ser—, Alckmin manifestou seu apoio à comunidade de Paraisópolis após a operação malsucedida da PM. Um café que se tornou habitual na favela vizinha ao Palácio dos Bandeirantes até hoje rende frutos —e ajuda a explicar por que o caso incomodou tanto Doria. 
Gilson Rodrigues, líder comunitário de Paraisópolis, confirma: “O Geraldo é um amigo da comunidade” e “tem sido solidário com as mortes que ocorreram aqui: ligou e se colocou à disposição para ajudar”.
“A relação que ele construiu com a comunidade foi além da política”, continua Rodrigues. “Gostamos dele aqui, e da dona Lu. Pelo menos uma vez por mês ele vinha a Paraisópolis para tomar café e continua vindo.”
É fácil encontrar o ex-governador à beira de uma mesa ou balcão com uma xícara. “Não é que eu goste de café, eu gosto de gente. Mesmo enquanto fui governador, era minha marca tomar café: eu ia a uma cidade, em cada lugar eu tirava uns 15 minutos ou mais pra ir tomar um café. Se vou a Paraguaçu Paulista,  sempre passo naquele determinado ‘point’, naquele bar, na padaria.”
“Na época da novela ‘Paraisópolis’ [‘I Love Paraisópolis’, de 2015], eu falava pro pessoal da Globo: ‘Todo domingo eu vou a Paraisópolis e nunca achei a Bruna Marquezine por lá. Onde é que vocês estão fazendo essa novela?’”, conta, divertindo-se. 
Ao falar sobre a necessidade de os governantes interagirem com o público, cita o presidente Jair Bolsonaro. “Eu acho um equívoco do presidente essa intolerância. Eu até acho que o Bolsonaro tem uma qualidade: ele é mais povão. Isso aproxima o povo. O lado negativo é ser intolerante à crítica.” Repetindo uma de suas frases favoritas, emenda: “Santo Agostinho dizia: ‘Prefiro os críticos, porque me corrigem, aos que me adulam, porque me corrompem’. Um bom governante aprende com a crítica.”
Alckmin recorre ao conhecimento médico para analisar a inconveniência política da tensão pela qual o presidente parece muitas vezes tomado. Ao fazê-lo, articula o verbo “precisar” a seu modo particular, engolindo o “re” —traço distintivo que o humorista Marcelo Adnet explorou com brilho no seu “Tutorial dos Candidatos”, série em que interpretava os presidenciáveis durante a campanha eleitoral de 2018.
“P’cisa baixar o estresse. Você, quando está muito estressado, você erra. Você está com uma adrenalina lá em cima, uma pressão muito grande, fala o que não deve, responde o que não deve, aí se arrepende e volta atrás, mas é tudo fruto da mente com estresse. Na medicina, a tendência, cada vez mais, é valorizar essa questão do equilíbrio.” 
Alckmin jura que já teve seus momentos de explosão, mas aprendeu a controlar os impulsos, um risco para quem tem o hábito de fazer lives na internet, como Bolsonaro.
“A política passa por uma inversão de valores. Eu aprendi com o Franco Montoro, que citava o padre Lebret: ‘Nós devemos ser, na vida pública, um zé-ninguém a serviço de uma grande causa’, dizia. Se há um instrumento importante é a causa, é o povo, é melhorar a vida das pessoas, ajudar quem precisa. Hoje, a política está servindo ao governante, à autopromoção, falta humildade.”
Questionado sobre a obsessão do governo Bolsonaro em relacionar todo e qualquer assunto a interpretações ideológicas, Alckmin diz: “Bobagem. Na realidade, as diferenças ideológicas estão diminuindo no mundo inteiro, o que é uma prova de maturidade. Se você pegar responsabilidade fiscal, pode ser governo de direita ou de esquerda, tem que ter. Ninguém pode gastar mais do que ganha, e São Paulo é um exemplo disso. Não é esquerda ou direita, é saber fazer conta.”
E alerta para os paradoxos: “Os Estados Unidos, capital do capitalismo, estão fazendo muro, fazendo protecionismo, e não defendendo o livre comércio; e a China, que é comunista, está abrindo”. Para ele, Bolsonaro teria de ter ido à posse do novo presidente da Argentina, Alberto Fernández, “parceiro importantíssimo do Brasil”.
Isso não significa que o ex-governador torça contra a economia, como ressalta. “Converso sempre com o Persio [Arida], que fez o meu programa de governo, e ele diz que a economia é cíclica. Já era para ter crescido no governo Temer, mas houve a delação do Joesley Batista, a greve de caminhoneiros e a própria eleição, que gera insegurança.” No início do ano, a tragédia da barragem de Brumadinho, cita, inverteu as expectativas de crescimento na área de mineração.
Ao perceber que está se estendendo no discurso político, o tucano ensaia um retorno à narrativa televisiva: “Mas agora é servir por meio da medicina”. “Muitas pessoas me falaram o seguinte: ‘O senhor mostrou pra gente a importância do recomeço’. A vida é um recomeço, é retomar. Você sempre pode voltar a uma atividade e não interessa a idade.”
Foi na TV Gazeta, canal de São Paulo, que Alckmin descobriu a possibilidade de ocupar parte de seu tempo com a função de doutor da televisão. Convidado a fazer uma participação quinzenal no sofá do Todo Seu, de Ronnie Von, ele ficou no ar por quatro meses, até julho de 2019, quando o programa foi encerrado por corte de gastos. Já então voluntário, faz questão de frisar, Alckmin não pode ser apontado como parte desse peso para a Gazeta. 
“Eu gosto muito do Ronnie Von, sou amigo dele há 30 anos. A mulher dele, a Kika, é sobrinha do [Franco] Montoro, e o Montoro é como um pai pra mim, ele me chamava de ‘Geraldinho’. Aí o programa acabou e a Band me procurou.”
Ainda na Gazeta, não foram poucos os comentários em redes sociais zombando da situação de um político derrotado nas urnas que ficou sem vitrine maior para se exibir. 
O fim do Todo Seu, contudo, o levou a uma rede com mais audiência e de alcance nacional, exposição que tem seu valor para quem não quer ser esquecido. É um degrau acima para quem viu seu prestígio nas urnas despencar a menos da metade do que era em quatro anos —indo de 12.230.807 votos em 2014, em sua última eleição para o governo de São Paulo, para 5.103.018 no pleito presidencial de 2018.
Alckmin considera que o episódio da facada teve peso fundamental no resultado que levou Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto. No seu entender, o placar, nesse caso, foi absolutamente fruto de um momento.
Não é incomum que profissionais de TV usem a tela como trampolim político —caso de Celso Russomanno, Jorge Kajuru, Alexandre Frota, Tiririca e mesmo de Doria. Mais raro é que alguém consiga uma janela para ficar em evidência no intervalo entre cargos políticos ou após ter exercido funções no poder público.
Alckmin, porém, tem no diploma de medicina seu grande trunfo. A formação permite que se apresente de um modo aparentemente despretensioso, quase como um merchandising da figura política, mas longe do conceito de propaganda eleitoral.
Na Band, ele também passou a estender sua participação para gravações externas. No primeiro episódio, mostrou como funcionam os tratamentos de acupuntura no IOT, onde estuda. 
Durante o programa, fez demonstrações do uso da técnica em uma voluntária, Stefane do Vale de Macedo. A primeira cobaia do ex-governador, no entanto, ainda distante das câmeras, foi sua mulher, Lu, “uma paciente muito exigente”, diz.  “A agulha tem que penetrar de forma subcutânea, não dói nada. Se doer, tá errado”, explica.
Na segunda participação, o tucano foi ao Corpo de Bombeiros de Franco da Rocha, em São Paulo, para falar sobre primeiros socorros, assunto do programa cuja gravação a reportagem acompanhou no estúdio. Na tarde daquele dia, Alckmin estaria no Instituto Butantã para conversar com especialistas sobre os cuidados a tomar com picadas de cobra, escorpião e aranha. “São temas de interesse público, é o que nós vamos priorizar.”
Foi Vildomar Batista, diretor do Aqui na Band, quem teve a ideia de aproveitar a figura do ex-governador no programa, apesar de já ter o neurologista Fernando Gomes, trazido da Globo a peso de ouro. “Me surpreendeu não apenas o desempenho dele, mas o interesse do telespectador. E a audiência, que sempre sobe com a participação dele”, diz Batista, afirmando que espera continuar a contar com Alckmin neste ano. 
As críticas, diz o diretor, “são poucas”. “As pessoas estão surpresas com a figura do médico que, nesse quadro, se descolou da figura do político”, completa. Menciona ainda a humildade de seu novo colaborador —que qualifica como disciplinado, aceitando sugestões e intervenções da produção— e o humor. 
Humor? Sim, segundo o diretor, nos bastidores Alckmin mostra uma faceta pouco conhecida publicamente: gosta de fazer uma graça, embora esteja a anos-luz de ser um comediante de stand-up. “É muito brincalhão, contador de histórias e piadas. Damos boas risadas com ele.”
Mesmo que sua frequência no estúdio seja quinzenal, Alckmin fica à disposição do programa durante toda a sua exibição, das 9h às 11h, e presta atenção até nas dicas de receitas culinárias. Afinal, a qualquer momento ele pode ser chamado a palpitar sobre outros assuntos, como aconteceu com o grande tema daquele dia: o nascimento de um tubarão ao vivo, diretamente de um aquário posicionado no estúdio.
Antes que o ovo fosse cortado para que o filhote de tubarão-bambu, espécie nativa das Filipinas, saísse para a água do aquário, Alckmin brincou que seria uma cesariana. Mas limitou-se a dizer que não entendia do assunto, tema sobre o qual seu pai, José Geraldo Rodrigues Alckmin, que foi veterinário especialista em piscicultura, certamente saberia mais. Após o parto, o apresentador do programa, Luís Ernesto Lacombe, perguntou se o procedimento fora bem feito. “Muito bem feito”, respondeu o doutor Geraldo.
Definitivamente, fazer televisão não é como qualquer ofício. 
Boris Casoy costuma lembrar que, ao trocar a Folha pelo SBT, em 1988, acreditava que não encontraria grande  diferença entre trabalhar para um jornal impresso e um televisivo, mas desfez essa percepção logo no primeiro dia de expediente, ao cruzar com o palhaço Bozo no banheiro.
O ex-governador, no entanto, acha tudo leve e se coloca em cena junto dos demais colaboradores, diante dos apresentadores, Lacombe e Silvia Poppovic, antes mesmo que o programa entre no ar. 
O diretor repassa os assuntos que serão abordados naquela data e se apressa em corrigir um dos participantes quando o ouve explicar como funciona determinado comportamento “hoje em dia”. “‘Hoje em dia’, não; ‘atualmente’, ‘agora’. Não usamos ‘hoje em dia’”, diz ele, em referência clara ao programa concorrente, da Record, do qual foi diretor.
Alckmin aborda o que vai dizer logo mais e é orientado a respeito da bancada na qual demonstrará informações de primeiros socorros. Aproveita para falar já do próximo programa, sobre animais peçonhentos. 
Ouve sugestões, complementa, acata ideias, mostrando-se de fato muito mais afável do que a média das personalidades da TV. “Ele é uma pessoa simples, acessível”, define Batista. “Está sempre disposto a ouvir a equipe e não tem estrelismo. É um médico que no passado chamávamos de médico de família.”
 
Indiferente aos que lhe atribuem pouco carisma, Alckmin acredita que tenha um bom desempenho diante das câmeras e muita paciência para responder a dúvidas de telespectadores, não pela experiência como político, mas sim pela carga que traz da sala de aula, quando era professor de cursinho pré-vestibular. 
“Eu tinha que segurar 150 alunos em sala de aula falando de química orgânica, concorrendo com as meninas que ficavam na lanchonete embaixo da sala de aula”, lembra. “Não era fácil.” Isso foi ainda em Taubaté (SP), onde se formou médico e chegou a dono de cursinho. “Eu adorava, só parei porque fui eleito vereador.”
Agora, assegura, não haverá cargo que lhe arranque o jaleco branco até 2022. Promessa de político ou prognóstico de médico? Ele apenas sorri. Quando a luz da câmera se acende, lá vai o doutor falar com seus telespectadores. 
Assim como a Band luta para conquistar audiência, o ex-governador procura reconquistar seus eleitores. Tarefa hercúlea —para ambos.

Cristina Padiglione, jornalista, escreve sobre assuntos relacionados a televisão desde 1991; assina a coluna Zapping, no F5, e o blog Telepadi, hospedado no site da Folha.


Com decretações via rede social, assassinato de meninas dispara no CE, OESP

FORTALEZA
Luiza, 15, ainda brincava de boneca no estreito espaço do barraco de dois cômodos em que vivia com a avó na periferia de Fortaleza. Mas, ao invés de figurar entre as debutantes do ano, acabou numa lista perversa: a de meninas decretadas —como são conhecidas aquelas que devem ser mortas após determinação de uma facção criminosa. 
Levada arrastada de casa, foi torturada por horas e atingida por sete tiros. A neta é a quarta pessoa assassinada na família de Neide, 70. “Ela era uma criança, mas tinha amizades que não prestam”, conta a avó franzina, que só enxerga por um olho e tem poucos dentes na boca. 
As circunstâncias da morte ainda não foram esclarecidas. Segundo a matriarca, foi uma colega que entregou a menina ao grupo criminoso que controla o bairro, para se livrar da acusação de que seria informante da facção rival. 
A história de Luiza não é caso isolado. Mas faz parte de uma série de assassinatos que acenderam o alerta vermelho no Ceará: meninas sendo mortas por facções criminosas em razão de rivalidades locais entre os grupos somado a exposição delas nas redes sociais e uma escalada de crueldade. 
Embora o risco de um adolescente do sexo masculino morrer vítima de homicídio ainda seja muito maior, a morte delas saltou de 2% para 14% do total para este grupo em dois anos.
Foram 114 meninas entre 10 e 19 anos assassinadas no estado em 2018, um aumento de 43% na comparação com o ano anterior. Se a comparação for com 2016, quando houve 27 assassinatos, a variação é de 322%. Os números vão na contramão da redução de homicídios em geral e de meninos no estado.
Os dados são do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, criado pela Assembleia Legislativa para propor saídas ao recrudescimento da violência nessa faixa etária.
Na capital Fortaleza, a situação é ainda mais brutal. Enquanto no grupo dos garotos houve redução de 35% nos homicídios entre 2017 e 2018, no grupo das garotas houve incremento de 90%.
Os índices alçaram o Ceará ao primeiro lugar do ranking de estado mais perigoso para elas, segundo levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido da Folha.
Por lá, são três principais facções criminosas: a cearense GDE (Guardiões do Estado), a carioca CV (Comando Vermelho) e a paulista PCC (Primeiro Comando da Capital). 
Todas divulgam decretações nas redes sociais, principalmente no Facebook, por meio de perfis anônimos. As ameaças às garotas são mais frequentes e vem acompanhadas de xingamentos que não se aplicariam a homens: marmitinha, vagabunda, safada, pirangueira. 
Algumas postagens indicam que a morte deve ser “sem massagem”, o que significa acrescentar tortura. Seus corpos são expostos antes e depois.
“É a radicalidade do machismo. O gênero autoriza a hiperviolência. São retirados os símbolos de feminilidade. Os cabelos são raspados, os seios cortados”, afirma a psicóloga Daniele Negreiros, pesquisadora do comitê que acompanhou de perto os casos. Na lista de crueldades também estão escalpelamento e estupro.
 
Foi o que aconteceu com Brenda, 14. A estudante teve uma foto antiga sua com colegas do bairro espalhada nas redes sociais. Só que, anos depois, os garotos já compunham as fileiras do crime organizado. 
Decretada, ela se mudou de cidade. Só saía de carro e com vidros escuros. Mas acabou morta dentro de um veículo, com vários tiros a poucas ruas de onde morava.
A investigação não andou e a família prefere não bater ponto na delegacia por se sentir ameaçada. “Vão colocar três policiais aqui para me proteger dia e noite? Não vão, né?! Você percebe que nem por um filho pode fazer nada”, diz o pai da menina, Edvaldo, 45. 
Nas paredes do bairro, o aviso é claro: “Cabueta vai morrer”. É a forma como os cearenses se referem aos caguetas, ou seja, quem delata. 
Tem dia, segue o pai, “que dói tanto que parece que foi hoje. É que tem algo faltando. Eu tinha sete filhos, agora tenho seis. Não é a mesma coisa”. 
Brenda, ele conta, não tinha ruindade, maldade. Passava o dia brincando com os irmãos menores e não se envolvia com o crime. “Mas era atrevida, daquelas que não engolia nada calada”, diz Edvaldo.
Adjetivos como atrevida e ousada aparecem com frequência nos relatos das famílias das vítimas —que tiveram seus nomes e de seus parentes omitidos pela reportagem. Mas esses traços da personalidade, que em outros contextos seriam exaltados, como independência, empoderamento e opiniões fortes, são para elas um risco maior de ser morta. 
É que, quando a vítima é do sexo feminino, as justificativas que levaram ao assassinato são mais irrelevantes, afirma Luiz Fábio Paiva, professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC (Universidade Federal do Ceará). 
Não pode ter amigo em outro território, nem se negar a aceitar um convite, levar uma informação, fazer um corre. Por vezes, pintar o cabelo de vermelho já pode ser o estopim para uma decretação —a cor é relacionada ao CV. “Um menino não morreria pela mesma situação. Há um controle moral dessa menina”, diz Paiva.
Existem algumas hipóteses levantadas para o aumento no número de meninas assassinadas: o envolvimento com garotos que integram grupos criminosos; a possibilidade de elas terem se tornado alvo de vinganças de facções; e de estarem sendo cooptadas a assumir papéis dentro dos quadros dessas organizações (a minoria das meninas mortas era faccionada, cerca de 10%).
Em 2019, estatísticas parciais apontam para uma diminuição dos homicídios em geral no estado, inclusive de meninas, acompanhando a redução observada nos índices nacionais, que teve queda na casa dos 20%.
Mas a diminuição pouco tem a ver com ações efetivas do estado, defendem especialistas.
Ao assumir o segundo mandato, em janeiro, o governador Camilo Santana (PT) criou uma secretaria exclusiva para as penitenciárias, deixando mais rigorosas as regras nesses locais, o que desencadeou a onda de ataques criminosos no Ceará que atingiu de órgãos públicos a viadutos. 
A Força Nacional foi enviada para ajudar, presos classificados como líderes das facções foram transferidos para prisões federais, e os homicídios caíram, num primeiro momento, segundo especialistas, porque os membros das facções fizeram uma trégua de ataques entre eles.
Mas dia a dia violento das meninas cearenses não mudou, diz o deputado estadual Renato Roseno (PSOL), relator do Comitê na Assembleia Legislativa. “As causas estruturais que levaram ao assassinato dessas meninas não foram superadas. Elas não estão mais protegidas hoje.”
“Na verdade, no último ano, houve um aprofundamento das vulnerabilidades, com desmonte de políticas sociais e investimento em uma segurança pública focada na ostensividade, de helicópteros e drones”, afirma Negreiros.
A pesquisadora enumera as vulnerabilidades que compõem o cenário periférico cearense: evasão escolar, gravidez na adolescência, experimentação precoce de drogas, insuficiência do atendimento socioeducativo, falta de oportunidade de trabalho formal e renda e a violência armada —as armas de fogo são usadas em 80% das mortes de adolescentes no estado.
“Só escutei os pipocos aqui na esquina de casa”, conta Lúcia, 47, mãe de Amanda, que foi assassinada aos 19. A família vive com um salário mínimo. O pai, ex-usuário de drogas convertido há 13 anos, agora mantém o filho usuário à base de calmantes no pequeno imóvel onde também vivia a menina. Dos 10 filhos do casal, 3 foram perdidos para a violência.
Um dos sobrinhos de Amanda, de 4 anos, viu o assassinato. Agora, repete pela casa: “eu vou crescer e vou matar o cara que atirou na minha tia”.
OUTRO LADO
Procurado, o Facebook informou não ter conhecimento sobre as postagens de decretação e que removeu o conteúdo e as contas indicadas pela Folha. Ainda segundo a empresa, tais posts violam as políticas de uso, que proíbem incitação à violência e organizações criminosas.
“Temos equipes dedicadas a segurança, e usamos uma combinação de denúncias da nossa comunidade, tecnologia e revisão humana para aplicar nossas políticas", disse, em nota, o Facebook.
A Secretaria da Segurança Pública do Ceará, sob a gestão de Camilo Santana (PT), afirmou, em nota, que o estado "trabalha incessantemente para reduzir os crimes violentos letais" e que houve redução nas mortes de jovens do sexo feminino de 12 a 17 anos de novembro de 2018 a novembro de 2019.
Entre as ações do governo do Ceará para diminuir os assassinatos, a pasta cita a criação de uma ferramenta tecnológica que auxilia o mapeamento de territórios e a formulação de estratégias, o programa estadual Pacto por um Ceará Pacífico, que, segundo a secretaria, tem aproximado a polícia das comunidades. Além da instalação de bases fixas do Programa de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger) da Polícia Militar, com policiamento 24 horas por dia, em 29 locais da capital.