domingo, 5 de janeiro de 2020

Gilles Lapouge: Sem os jornais, as sombras venceriam, OESP

Jornais são objetos passionais, despertam o desejo, a repulsa, a cólera, a vergonha, a admiração ou o amor

Gilles Lapouge*, O Estado de S.Paulo
04 de janeiro de 2020 | 03h00
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O capitão Alfred Dreyfus Foto: AFP PHOTO
O capitão Dreyfus, na década de 1890, foi acusado de espionagem em favor da Alemanha. Começa um período vergonhoso. A Igreja, a burguesia, os jornalistas uivam, jogam Dreyfus aos cães. Anos depois, um título salva a honra da profissão. O Aurore publica, sob o título Eu acuso, um artigo de Émile Zola: Dreyfus é inocente. Seu único pecado é ser judeu. Após anos de ódio, Dreyfus é salvo, por um jornal, do desprezo e, talvez, mesmo da morte.
Vinte e cinco anos depois, um dos primeiros grandes repórteres, Albert Londres, foi para a Guiana, uma colônia francesa, onde havia uma colônia penal. Albert Londres descerra uma cortina atrás da qual se estende o inferno criado não por Satanás, mas por uma República virtuosa cujo lema é “liberdade, igualdade, fraternidade”. Este artigo gera um eletrochoque. Um ano depois, o governo fechou a prisão. Do fundo de sua morte, Albert Londres, sem dúvida, disse que as palavras dos jornalistas podem ser armas letais e defender a honra da condição humana.
Em 1939, irrompe a guerra com a Alemanha. Os jornais controlados pela censura mentem descaradamente. Eles ficam coléricos: os soldados alemães são sub-humanos, monstros desagradáveis e medrosos. Soldados franceses são maravilhosos. Um grupo de franceses, enojados com essas maldades, criam Le Canard Enchaîné que dirá a verdade: a morte, vômitos, os ratos, o fedor, o desespero, o medo, a ignomínia de certos generais que, para se distinguir, montam um ataque desnecessário, que resultará em centenas de mortes e levará à arrogância de um tolo.
A censura monitora essas pessoas insolentes. Talvez eles sejam anarquistas ou mesmo comunistas, quem sabe! Le Canard inventa truques, trocadilhos, linguagens codificadas, eufemismos para enganar os censores. O sucesso entre os soldados franceses é deslumbrante.
Em 1940, as tropas de Hitler esmagaram os franceses. Hitler divide a França em duas: uma “zona ocupada” no Norte e há uma “zona livre” no Sul (digamos: semilivre). Alguns jornais permanecem em Paris e se adaptam aos alemães. Muitos jornalistas, muitas vezes brilhantes, comemoram as vilezas dos nazistas. Um escritor notável, Robert Brasillach, escreve esta ignomínia: “Será necessário separar-se dos judeus em um quarteirão e sem proteger os pequenos judeus”. A honra da imprensa se refugia nas montanhas, entre os maquis, onde proliferam jornais pobres, mas notáveis. Entre os que escolheram o caminho da coragem, o jovem Albert Camus, que se tornará um dos grandes escritores de seu século.
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O escritor francês Emile Zola Foto: AFP PHOTO
Jornais são objetos passionais. Eles despertam o desejo, a repulsa, a cólera, a vergonha, a admiração ou o amor. É um sinal de seu poder. Eles se estabelecem solidamente para o bem ou para o mal no coração das nossas cidades, dos nossos sonhos. Temos o direito de criticá-los, às vezes desprezá-los, mas não podemos negligenciá-los, negar a influência que exercem sobre nossas mentes, em nossos hábitos, na história dos homens, animais e coisas. Sem eles, o mundo não seria o mesmo. Seria menos brilhante, menos legível e menos tolerante, menos respeitoso pela pessoa humana, menos brilhante e as sombras lentamente venceriam. (TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO)
*CORRESPONDENTE EM PARIS

Desemprego dos pais empurra filhos mais cedo para o mercado de trabalho, OESP

Douglas Gavras, O Estado de S.Paulo
05 de janeiro de 2020 | 05h00


Quando a paulistana Beatriz Ferreira, de 18 anos, começou a vender panos de prato em uma esquina da avenida Paulista, na região central de São Paulo, no ano passado, ainda nem tinha saído da escola. Com nove desempregados na família, ela não teve outra alternativa, além de sair para tentar ganhar alguns trocados, enquanto os pais tentam voltar para a formalidade.
“A gente tem de aproveitar até a época do Natal, enquanto as pessoas estão circulando mais pelas lojas, para tentar ganhar um pouco mais. Lá em casa, ninguém trabalha registrado e todos têm de se virar para conseguir sobreviver. É duro, mas é o que a gente tem agora e não adianta ficar reclamando”, contou, em dezembro.
Beatriz Ferreira
Com nove pessoas sem emprego na família, Beatriz vende panos de prato nas ruas de São Paulo Foto: Douglas Gavras/ Estadão
Histórias como a dela são cada vez mais frequentes. A crise tirou empregos dos chefes de domicílio ou fez com que eles tivessem de aceitar novas ocupações que não pagavam o suficiente para sustentar a família, levando os companheiros e filhos a anteciparem a entrada no mercado, muitas vezes pelo caminho da informalidade.
Dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do terceiro trimestre de 2019, apontam que a taxa de participação de dependentes no mercado de trabalho alcançou 60,1% – mais do que no mesmo período de 2018 (58,8%) e bem acima do que havia sido registrado em 2014, antes da recessão, quando os dependentes eram 55,8%.
 No terceiro trimestre do ano passado, eram 59,2 milhões de brasileiros que não eram chefes de domicílio e faziam parte da mão de obra disponível – 6 milhões a mais do que cinco anos antes, quando o País não tinha enfrentado a recessão.

Substituição

Os números, compilados para o Estado pela consultoria IDados, também mostram que os chefes de família ainda são maioria na força de trabalho, mas o desemprego e a dificuldade de recolocação tornaram cada vez mais difícil para eles a conquista do emprego.
No fim de 2012, ano em que a Pnad começou a ser feita, a participação desses chefes de domicílio no mercado de trabalho batia em quase 70%. Sete anos depois, embalada pela recessão, a queda registrada é de quase quatro pontos porcentuais.
Para Bruno Ottoni, economista da iDados, esse cenário é ilustrativo da atual situação do mercado de trabalho: a recuperação até ocorreu em 2019, mas foi lenta e puxada por vagas de menor remuneração. “A participação dos mais jovens aumentou quase três pontos porcentuais desde a recessão; a de mulheres, quatro pontos porcentuais. A família precisou se reorganizar para tentar se manter”, avalia.
“Há um esforço de toda família, e o desemprego de longa duração leva a pessoa a agarrar a primeira oportunidade”, diz Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Jovem informal demora a ter carteira assinada

A entrada antecipada e em condições adversas de um jovem no mercado de trabalho, para compensar a perda de renda da família, pode condenar esses trabalhadores a anos de informalidade e baixa remuneração.
Bruno Ottoni lembra que a falta de experiência e a necessidade forçam os dependentes a caírem na informalidade. “Quando se é jovem e é preciso procurar trabalho nessas condições adversas, alguns são obrigados a parar de estudar. Esse trabalhador deixa de acumular capital humano e só consegue vagas de baixa remuneração.” 
No trimestre móvel encerrado em novembro, segundo a Pnad Contínua, do IBGE, as ocupações sem carteira lideraram a geração de vagas, e houve recorde de 38,8 milhões de informais. Sérgio Firpo, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), lembra que o trabalhador que começa na informalidade tem mais chances de permanecer sem carteira. “Ele terá menos oportunidades depois, mesmo quando a economia se recuperar.” 

'Olha eu aqui!' Autora indica como lidar com narcisistas: ao se deparar com um deles, fuja!, OESP





Na mais recente contribuição à bibliografia sobre o narcisismo, autora oferece um conselho para lidar com todo tipo de superególatra: antes que seja tarde, fuja!







Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo
27 de agosto de 2016 | 16h00
Eles estão por toda parte. Em lugares suspeitos e insuspeitos. A qualquer hora são vistos, e é justamente isso o que eles mais desejam. Nos Jogos Olímpicos, deram um show coletivo: de olho no telão, acenando para as lentes da TV, “Ó, nós aqui!” Narciso se mirava nas águas de um rio, nossos narcisistas não podem ver um espelho ou uma câmera.
Sua vocação para papagaios de pirata é inexcedível. Se ninguém os filma ou fotografa, uma selfie, essa cocaína especular, quebra o galho. Suprassumo do onanismo fotográfico, a selfie foi o maior presente que a era digital ofertou às pessoas mais carentes de atenção, reconhecimento e adulação. Ególatras e exibicionistas, não resistem a um flagrante de si mesmos, estejam onde estiverem, a sós ou acompanhados. Dane-se a paisagem, dane-se o entorno, dane-se a Monalisa meio desfocada ao fundo. “Ó, eu aqui!”


 
  Foto: ROBERT PRATTA | REUTERS
Não foi pelo simples prazer de brincar com as palavras que neologismos como “selfish” e “narcistick” foram inventados. “Selfish” é um amálgama perfeito de selfie com egoísta, em inglês; “narcistick”, uma mistura de narcisista com stick, pau de selfie em inglês. A pandemia de selfies veio confirmar uma suspeita: o espectro do narcisismo ronda o planeta, germe de outro vocábulo recente – narcisfera, que é onde os embeiçados pela própria imagem (não apenas no sentido icônico) gravitam com mais intensidade e desfaçatez, a inundar as redes sociais de inanidades verbais e irrelevâncias visuais que deveriam ser de consumo restrito. E mais outro: narcifobia, que é a aversão que nos provocam os autocentrados internautas do Facebook, do Instagram e do Twitter.
Como não ter medo de pessoas com excessiva (e invasiva) autoestima? Medo e, em muitos casos, inveja. Pois se nem toda selfie evidencia um “transtorno de personalidade narcisista” (para usar o termo científico popularizado pelo psicanalista Heinz Kohut, meio século atrás), nem toda autoestima excessiva faz mal à saúde psíquica; às vezes pode ser saudável, estimulante, terapêutica, defende o doutor Craig Malkin em Rethinking Narcissism (“Repensando o Narcisismo”), provocante estudo sobre os malefícios e benefícios do narcísico culto ao bem-estar, ao protagonismo e à soberba benigna.
Como estimar qual a taxa ideal de autoestima? A partir de que ponto a autoestima torna-se destrutiva e autodestrutiva? Ao contrário da febre, da hipertensão e dos terremotos, não existe um instrumento nem uma escala para mensurar isso. Se algum cientista por ventura inventá-la, não lhe faltarão nomes mais apropriados que o seu para batizá-la: Escala Kim Kardashian, Escala Justin Bieber, Escala Donald Trump, Escala Kenye West. Todos irreprocháveis.
Um analista político insinuou há tempos a emergência de um novo sistema bipartidário na América, não mais opondo democratas e liberais a republicanos e conservadores, mas narcisistas (sob a sigla PN) e seus antípodas (do Partido da Baixa Estima). Por seu próprio jeito mercurial de ser e por seu fetiche do excepcionalismo americano, Trump seria filiado ao Partido Narcisista – o mais afinado, por sinal, com a maioria dos políticos, bons (Franklin Roosevelt), maus (Collor) e ditadores (Hitler, Stalin, Mao, Gadhafi). Por motivos óbvios, Bill Clinton seria colega de legenda de Trump, até porque o impulso libidinal é elemento destacado na caracterização do narcisista.
Ou foi, quando Freud enfiou sua colher no conceito colhido na mitologia grega pelos clínicos ingleses Havelock Ellis e Paul Näcke, ainda no século 19. Quatro anos antes de produzir seu estudo sobre o narcisismo, em 1914, Freud já usava o termo para explicar “a escolha de objetos nos homossexuais, que primeiro tomam-se a si mesmos como objeto sexual (...) e procuram jovens que se pareçam com eles, e a quem possam amar como a mãe os amou a eles”. Depois, sua análise embrenhou-se por outras veredas, para alívio dos gays e das mulheres, ainda que muitas delas, fiéis ao arquétipo delineado por Freud, não consigam passar por uma vitrine (até de açougue serve) sem dar uma espiada de soslaio em sua refletida silhueta.
De tanto ouvir falar numa “epidemia de narcisismo” (segunda no ranking de expressões prêt-à-porter, a primeira ainda é “banalidade do mal”) e de ler a respeito de NPD (a sigla em inglês de Transtorno de Personalidade Narcisista), Kristin Dombek resolveu investigar a procedência da metástase narcísica e a transformação de um problema psíquico individual em fenômeno cultural, de resto, retratado (por Tom Wolfe) e analisado (por Christopher Lasch) em seu primeiro apogeu, na década de 1970, adrede rotulada de “Me decade”.
Admirada por seus conselhos de alta (repito: alta) ajuda nas revistas The Paris Review e n+1, Dombek escreveu um rico e sombriamente engraçado ensaio de 140 páginas, The Selfishness of Others (“O Egoísmo dos Outros”, a US$ 10 na versão kindle), com ênfase na narcifobia e como o temor aos que fazem do mundo um espelho pode distorcer nossas relações interpessoais. É a mais recente contribuição teórica à colossal narcisobibliografia.
Assim como existem narcisistas de variada espécie e periculosidade – inofensivos (a turma do selfie e da autopromoção nas redes sociais), vaidosos, gabolas delirantes (“eu já transei com mais de 20 garotas da Playboy”), agressivos, fálicos, corporativos (vulgo bozós), farisaicos, oniscientes – existem livros que nos ensinam a farejá-los à distância (pelos mimos maternos, pelas postagens na internet), a distingui-los de perto (pelo mau comportamento social: loquazes, autorreferentes, espalhafatosos, arrogantes), e a lidar com cada um deles, seja para evitá-los, desmascará-los e combatê-los de igual para igual.
Como se defender de um narcisista extremado? Joseph Burgo, autor de The Narcissist You Know (“O Narcisista que Você Conhece”), tem as dicas necessárias. Como se vingar de um narcisista e usar contra ele as técnicas secretas da manipulação emocional por ele utilizadas? Leyla Loric e Richard Grannon ensinam em How to Take Revenge On a Narcissist (“Como se Vingar de um Narcisista”).
Dombek, de quem já lera observações inteligentes sobre sexo, aborto e descrença religiosa, navega pela mitologia grega, a literatura clássica (o inevitável Ovídio), a teoria psicanalítica (Freud, Alice Miller, Donald Winnicott, Otto Kernberg), por reality shows, pela autoajuda online, pela psicosociologia pop. Ela faz questão de distinguir bem os narcisistas prosaicos daqueles que postam mensagens superególatras nas redes sociais, pegam em armas e invadem shoppings, escolas e cinemas, para extravasar seu instinto homicida. Seu único conselho: fuja antes que seja tarde. Dos dois.