sábado, 4 de janeiro de 2020

Oscar Vilhena Vieira Em defesa da República, FSP

Desafio da sociedade em 2020 é iniciar concertação contra o milicianismo

  • 31
milicianismo é uma espécie radical de antirrepublicanismo. Embora não confronte diretamente a ordem estatal, vive em suas dobras, cooptando seus agentes e corroendo lentamente a autoridade pública. O miliciano reivindica agir em nome da lei e da ordem no combate à criminalidade, mas, na realidade, não passa de um tipo de criminoso que explora as fraquezas do Estado, o medo das pessoas e as carências da comunidade com o objetivo de vender segurança e outros serviços. 
Para o milicianismo não há cidadãos ou direitos. Há uma comunidade e indivíduos, por mais carentes que sejam, a serem economicamente explorados. Da venda de gás aos armamentos pesados, passando pelo acesso à televisão a cabo, coleta de lixo etc., as milícias fornecem tudo a quem paga. Os que não se curvam à extorsão nada recebem. Os que se insubordinam são eliminados, como ocorreu com Marielle Franco
A ascensão de lideranças políticas que orbitam em torno do mundo das milícias, ou que partilham do seu ethos, estabelece novos desafios às nossas instituições políticas. Essas não foram moldadas para lidar com esse tipo de problema. Isso deveria ser uma questão de Justiça e de polícia. 
Nossas instituições políticas foram desenhadas para coordenar a competição política e canalizar os conflitos entre setores que, embora divergentes, assumiram um compromisso básico com os valores da República, em especial com a cidadania e com o governo das leis. Não é o caso dos milicianos. 
Nesse sentido, as instituições políticas conformadas pela Constituição de 1988 vêm cumprindo o seu papel ao assegurar a alternância no poder e certa lealdade dos diversos grupos políticos. Podem não ser as mais perfeitas instituições, mas vêm servindo, até o presente momento, para que a sociedade brasileira coordene suas disputas e resolva seus conflitos, de forma pacífica.
O desafio deste momento político, no entanto, não é lidar apenas com a dimensão reacionária e mesmo populista do governo Bolsonaro. Isso é parte do jogo. Como esse primeiro ano de mandato presidencial demonstrou, o sistema de freios e contrapesos, associado ao sistema de liberdades públicas, tem servido de anteparo às medidas mais estapafúrdias e contrárias aos pressupostos do regime republicano. 
A questão que se coloca neste momento é como as instituições têm lidado com a dimensão mais corrosiva deste governo, contígua ao populismo reacionário, que é o milicianismo? Aqui a resposta parece não ser tão positiva assim. 
A ampliação das invasões de terras indígenas, o aumento das queimadas na Amazônia, o crescimento das mortes pela polícia, os ataques à liberdade de expressão, a total negligência com o sistema educacional e o combate frontal à cultura não decorreram de mudanças propriamente institucionais. Ao contrário, foram consequência de uma ação paraestatal sistemática promovida pela dimensão miliciana do atual governo que provoca a erosão, captura e desgaste das instituições.
O grande desafio da sociedade brasileira em 2020 é dar início a uma ampla concertação político-institucional contra o milicianismo e em favor da República.
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Agradeço a Gilberto Dimenstein, num momento em que triunfa a boçalidade, por partilhar com tanta humanidade, generosidade e humor a sua experiência com o câncer. Força, amigo.
Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

A pergunta de New Hampshire, Roberto Simon FSP

Estratégia de Biden contra Trump vale ao Brasil de Bolsonaro

  • 2
Alguns segundos em campanhas eleitorais por vezes sintetizam questões fundamentais da política contemporânea. A disputa democrata nos EUA teve um momento desses, na véspera do Ano-Novo.
Joe Biden falava com a plateia, em New Hampshire, quando uma senhora tímida pegou o microfone. “Outra noite, meu filho me perguntou por que o senhor não considera escolher um republicano como seu candidato a vice.” Biden olhou para baixo, ganhando alguns segundos, e devolveu: “A resposta é que eu consideraria, mas não consigo pensar em nenhum agora.” Quando a plateia riu, o líder na corrida democrata avisou que falava sério. “Há republicanos realmente decentes, mas eles precisam se levantar.”
A fúria no Twitter foi imediata, com #RepublicanVP nos trending topics. Biden seria “inocente”, “traidor”, “ignorante” ao tentar “bajular” republicanos para derrotar Trump. “Eu não terei um vice republicano”, cortou Bernie Sanders.
Uma obviedade falseava a controvérsia: é evidente que Biden não colocaria um integrante do partido de Trump na sua chapa. Eleitoralmente não faz sentido e, claro, faltaria combinar com os republicanos —cuja maioria (53%) acredita que Trump é superior até mesmo a Abraham Lincoln. Mas, ao dizer que “consideraria a ideia”, o recado de Biden era outro: ele rejeita qualquer oposição apriorística a quem está no outro campo. Mais ainda, está aberto a trabalhar com os “decentes”, caso se comportem como tal.
Naqueles segundos, em New Hampshire, estava a melhor resposta à contradição que amarra a oposição nos EUA de Trump, no Reino Unido de Boris Johnson ou no Brasil de  Bolsonaro. A base organizada e barulhenta contra os novos populismos está mais à esquerda do que o eleitor médio. Sozinha, porém, serve apenas para fortalecer o status quo (Jeremy Corbyn que o diga). Até onde ir para, mantendo seu grupo político unido, atrair outros setores —sobretudo, os desiludidos do campo adversário— e recuperar o poder?
Biden pode ser um mau candidato, com um plano de governo medíocre. Mas sua resposta a essa pergunta —com a rejeição a tribalismos e aberturas explícitas para fora de seu campo ideológico, ainda que isso seja arriscado dento do Partido Democrata— é, de longe, a melhor. A um mês da primeira eleição primária, em Iowa, teria sido mais fácil, sob a lógica da disputa democrata, rir da ideia e passar para a próxima pergunta da plateia. Mas o risco vale a pena.
Desde a era Clinton, a cifra de democratas que se declaram de esquerda (“liberais”) saltou de 25% a 51%. Mas, nos últimos dez anos, o total de americanos identificados com o partido foi de 40% a 28%. Excluindo quem se diz republicano, grupo que votará em massa em Trump, três em cada quatro eleitores se dizem moderados ou conservadores. Só eles podem derrubar o presidente, e é com eles, e não com trumpistas, que Biden tentava dialogar.
O Brasil não tem colégio eleitoral nem bipartidarismo, mas se depara com a mesma encruzilhada. Da esquerda à centro-direita antiBolsonaro, o sectarismo é o caminho mais seguro para unir a base mas também a garantia de derrota na luta pelo poder. Há uma escolha a fazer. Se o objetivo for vencer eleições em 2020 e 2022, será preciso fazer política e superar o medo de virar polêmica nos trending topics.
Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
As opiniões expressas acima não refletem necessariamente a posição do Council of the Americas