quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Disciplina militar, Hélio Schwartsman, FSP

É especialmente na infância e na juventude que as pessoas devem ser livres para experimentar

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Antes mesmo de o programa do governo federal de militarização de escolas públicas engrenar, a moda se espalhou e fincou raízes Brasil afora. Como mostrou reportagem da Folha, só na Bahia já são 83 as instituições que adotaram esse modelo, em que a parte pedagógica da escola segue sob comando de professores, mas policiais militares aposentados recebem um ordenado complementar para cuidar das questões disciplinares.
Para mim, o tipo de disciplina imposto aos alunos, com continências, uniformes, padrões para corte de cabelo e maquiagem, além da vigilância extrema, é um cenário de pesadelo. É especialmente na infância e na juventude que as pessoas devem ser livres para experimentar. É claro que escolas precisam de um pouco de ordem para funcionar, mas não penso que seja necessário convocar militares para estabelecê-la. Um bom diretor é em tese capaz de fazê-lo.
Também me parece preocupante que muitas dessas escolas exijam que o aluno arque com o custo das fardas, quando não pedem uma contribuição voluntária às famílias. Isso, aliás, explica parte dos tão propalados efeitos acadêmicos positivos da militarização. A correlação entre renda e performance educacional é conhecida e robusta. Assim, um modo eficaz para melhorar o desempenho de uma instituição é aumentar suas mensalidades, excluindo os alunos mais pobres.
Não sou, contudo, um xiita. Não pretendo que as minhas preferências pessoais sejam universalizáveis. Quem gosta de uma educação mais rígida e vê valor no corte escovinha deve ter a opção de matricular seus filhos num colégio com essas características.
O que me incomoda é a proliferação dessas instituições, pois cada escola militarizada significa uma escola normal a menos. E sou daqueles que pensam que o ensino público básico deve ser universal, gratuito, civil, laico e, dada a impossibilidade da neutralidade, tão plural quanto possível.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Conheça o único deputado tucano que não perdeu a vergonha na cara, Blog da Cidadania

tucano sério

O tucano paulista Samuel Moreira da Silva Junior teria tudo para ser apenas mais um componente do dito “baixo clero” da Câmara dos Deputados. Eleito deputado federal no ano passado, foi deputado estadual por dois mandatos – eleito em 2006 e em 2010. Em 2013, foi eleito presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo.
Nascido em fevereiro de 1963 em Governador Valadares (MG), cresceu na cidade paulista de Miracatu, na região do Vale do Ribeira. Engenheiro Civil formado pela Universidade Santa Cecília, em Santos (SP), iniciou a vida profissional na antiga Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista (Sudelpa).
No final dos anos 1980, ingressou na Sabesp, empresa na qual ocupou cargos de gerência e foi superintendente em Registro, também no Vale do Ribeira.
Foi prefeito de Registro por dois mandatos consecutivos (1997 a 2004). Em 2005, convidado pelo então prefeito de São Paulo, José Serra, Samuel Moreira assumiu a Subprefeitura de São Miguel Paulista, bairro da Zona Leste da Capital com cerca de 400 mil habitantes.
O que há de especial com Moreira da Silva Junior? É o seguinte: dos 51 deputados federais do PSDB que analisaram vetos presidenciais nesta semana, 50 votaram a favor de derrubá-los. O único dissidente foi ele, que pediu permissão aos colegas para defender as ideias que eles abandonaram.
O PSDB não pode se descaracterizar. É possível fazer oposição sem ser irresponsável com as contas públicas
Anteriormente, Moreira da Silva havia votado a favor do fim do fator previdenciário e de outras pautas-bomba com que PSDB e setores do PMDB têm fustigado o governo Dilma. Porém, atitude recente desse parlamentar revelam que se votou errado e incoerentemente, teve coragem de enfrentar seu partido em peso em prol dos interesses do país.
O tucano justificou sua posição afirmando que é preciso distinguir a oposição à presidente Dilma Rousseff – incluindo a defesa de seu afastamento – e questões que afetam a sustentabilidade das contas públicas do País.
Impeachment é uma coisa, o futuro da Previdência é outra
Moreira da Silva dá a entender que poderia até ser favorável ao impeachment de Dilma, mas isso não se confunde com fazer o que o PSDB está fazendo, que é sabotar o Brasil de uma forma escancaradamente desavergonhada, inclusive votando contra medidas das quais o próprio partido foi autor quando governou o país, como o fator previdenciário.
Sobre ter votado em maio a favor do fim do fator previdenciário, o tucano explica que “naquele momento” não sabia que o Orçamento de 2016 seria deficitário, mas que, sabendo disso agora, desta vez decidiu não cometer o mesmo “erro político” de “ser contra só porque é uma proposta do PT”.
Não concordo com as posições políticas desse parlamentar, mas não deixa de ser um alívio ver que ainda há uma réstia de oposição responsável neste país.
Uma fala pública de Moreira da Silva mostra como é possível fazer uma oposição dura, mas mantendo a dignidade e a lealdade e pensando, antes de qualquer coisa, nos interesses do país.
Diz o parlamentar tucano:
O PSDB tem feito oposição de forma muito dura, muito firme e convicta. Isso é uma coisa. A outra coisa é a sustentabilidade da Previdência Social, das contas do governo. Outro dia fiz um discurso mencionando que, dos gastos do governo, 71% são custeio e mais de 18% é com pessoal, ou seja, quase 90% do Orçamento. É preciso cortar no custeio. Não posso fazer um discurso assim e depois votar numa questão que pode aumentar o custeio da máquina. Fazer oposição, defender o impeachment é uma coisa, e o futuro da Previdência é outra”.
Por fim, é extremamente eloquente que dos 51 deputados tucanos que votaram os vetos de Dilma às “pautas-bomba”, só esse tenha tido o sentido de compromisso com o interesse público ao ponto de divergir dessa maioria esmagadora de seus pares.
Se esse deputado vier a refletir bem – e parece ser um homem que se permite refletir e que tem coragem –, perceberá que está no partido errado e mudará de legenda. Não que vá para um partido de esquerda. Não é essa a questão. A questão é o caráter do partido em que está.
O PSDB está sabotando o país como se não houvesse amanhã. O país vive uma situação dificílima nas contas públicas. Manter os vetos de Dilma a projetos que não só anulariam o ajuste fiscal já obtido como criariam ainda mais despesas era uma obrigação de qualquer parlamentar responsável.
O que o PSDB fez ao votar quase unanimemente para manter esses gastos irresponsáveis mostra que esse partido é uma ameaça à sociedade brasileira. É capaz de provocar um desastre ao país no âmbito de sua luta insana para retomar o poder.
Provavelmente devo discordar de praticamente todas as posições políticas do deputado Samuel Moreira da Silva, mas não posso deixar de louvar um político que deu uma aula de como se deve fazer oposição responsável.
Aliás, quero dizer que julgo oposição imprescindível para uma democracia. Se exercida com responsabilidade e boas intenções, ajuda o próprio governo e representa legitimamente o setor da sociedade que discorda da maioria. Se tivéssemos uma oposição composta só de pessoas como esse deputado tucano, o Brasil já estaria saindo da crise.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

‘MELHOR DEMOCRACIAS IMPERFEITAS, ATÉ CORROMPIDAS, QUE DITADURAS EFICIENTES’, Mario Vargas Llosa, OESP

Ubiratan Brasil
22 de dezembro de 2019 | 05h00
A turbulenta política latino-americana sempre fascinou o escritor peruano Mario Vargas Llosa, ganhador do Nobel de Literatura de 2010 – do peronismo argentino às guerrilhas nicaraguenses, o autor não se furta de fazer ácidos comentários. É o que inspirou seu romance mais recente, Tiempos Recios (Tempos Difíceis), ainda sem tradução no Brasil.
A obra se inspira em um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos contra o presidente guatemalteco Jacobo Árbenz em 1954, episódio que Llosa acredita ter sido definitivo para o destino do continente.
Na trama, o autor desvenda conflitos e conspirações que devastaram a política regional naquela década. Obcecado pela guerra fria, o governo dos EUA acusou Árbenz de ser um fantoche soviético ao empreender uma reforma agrária contrária aos interesses de um grande conglomerado de frutas.
‘A
‘A impaciência da classe média com sistema de privilégios pode explicar tumultos no Chile’, afirma Vargas LlosaIVAN ALVARADO/REUTERS - 24/10/2019
Llosa tem o olhar de um intelectual liberal, moldado pelas ideias de sete pensadores, que formaram sua base de leitura e fomentaram a defesa da liberdade de expressão como um valor fundamental para o exercício da democracia. O processo de formação desse pensamento é revelado em O Chamado da Tribo (Objetiva), autobiografia intelectual de um jovem que, desgostoso com o marxismo, descobre a tradição de um pensamento que favorece o indivíduo frente a um grupo social, uma nação, ou mesmo a um partido político e que defende a liberdade de expressão como um valor fundamental para a vivência democrática. Sobre os dois livros, Llosa conversou com Estado, por telefone, de Madri, na Espanha.
Como o senhor analisa a democracia praticada na América Latina?
É muito melhor ter democracias imperfeitas, até corrompidas, que ditaduras que não são eficientes por fomentar a delinquência, o roubo, a manipulação da realidade. Ao menos, não temos, na América Latina atual, ditaduras militares – temos ditaduras ideológicas, presentes em Cuba, Venezuela, Nicarágua. Temos democracias imperfeitas, mas que podem ser corrigidas por meio de denúncias de roubos e das políticas mafiosas dos governos. Temos polícias imperfeitas, mas, no caso do Peru, vemos políticos e empresários que foram presos por má conduta. Isso é um fato novo em nossa história republicana. Ao menos significa um progresso em relação às ditaduras de anos passados, que nunca reconheciam os roubos, a putrefação em que viviam, privilegiando os tiranos que voltavam ricos para suas casas. A situação hoje é outra, tivemos um progresso. Não podemos nunca nos esquecer: a corrupção é uma praga terrível para a democracia, é preciso combatê-la com muita resolução e energia.
E como avalia o liberalismo em prática no continente?
O caso mais notável é o do Chile, que primeiro optou por acabar com uma ditadura feroz, sanguinária, que foi a de Pinochet. Mesmo assim, houve algo positivo para o país, que foi a política econômica que trouxe muita prosperidade. Assim, o acordo entre a direita e a esquerda para manter essa política econômica dentro da legalidade foi algo extraordinário do ponto de vista político e econômico, pois atraiu um progresso que o Chile nunca teve em sua história, uma política de pleno emprego. E não houve, na América Latina, um país que diminuiu tanto a pobreza, convertendo socialmente essas pessoas em classe média. Então, desse ponto de vista, o Chile era um caso de sucesso e, por isso, não se esperava aquela explosão social que tomou conta do país e que realmente surpreendeu o mundo. As bases materiais não justificam esse tipo de protesto. Mas algo falhou. A impaciência da classe média que se descobre limitada e impossibilitada de alcançar o progresso por causa de um sistema de privilégios é uma explicação. Nesse campo, o Chile não evoluiu como deveria e não criou um sistema de educação e de saúde públicas ao nível da privada. É uma hipótese para tentar explicar algo muito surpreendente.
O senhor acredita, então, que a crise chilena está mais próxima do ocorrido na Europa que propriamente na América Latina?
Sim, o caso chileno está mais próximo da Europa. Primeiro porque Chile é quase um país de primeiro mundo. E o que houve lá é parecido com explosões sociais como a que aconteceu na França, com os jalecos amarelos. São movimentos claramente populares, sobretudo de classes médias que veem um limite em suas aspirações. Os revoltosos acusam o sistema de haver criado artificialmente esse limite, que impede sua ascensão por causa de privilégios, a setores que se valem de relações para alcançar postos mais altos no sistema. Um tipo de problema que assola praticamente todos os países desenvolvidos. E me impressiona que isso aconteça no Chile.
Como o senhor avalia a vitória de Alberto Fernández na eleição argentina, com Cristina Kirchner como vice?
Foi uma tragédia para a Argentina. Essa vocação suicida dos argentinos é algo verdadeiramente extraordinário, pois já se sabe que todos os problemas atuais do país foram causados pelo peronismo. Portanto, é impressionante que os eleitores reconduzissem ao poder essas pessoas que produzem uma política absolutamente catastrófica. Os argentinos vão lamentar enormemente a derrota de Mauricio Macri – claro que não foi um governo perfeito, mas, mesmo assim, não terá sido pior do que está por vir.
Falando agora de seu mais recente livro, Tempos Difíceis, o senhor acredita que, se os Estados Unidos, em vez de derrubar Árbenz, tivessem apoiado suas reformas, a história da América Latina provavelmente teria sido diferente?
Com certeza, foi um grande erro. Claro que havia um contexto que explicava muitas atitudes – estamos falando da guerra fria, do Macartismo. Mas houve uma falta de lucidez do governo americano naquele momento. O presidente anterior, Harry Truman, evitou invadir a Guatemala, resistiu às pressões e respeitou o que se passava lá. Mas a América Latina era uma terra de ditadores. Guatemala teve dois governos democráticos e o de Árbenz não era comunista nem socialista – ele queria modernizar um país que vivia ainda na era dos latifúndios com base na democracia moderna, fomentada por empresários independentes, dispostos a pagar impostos. Isso gerou o conflito com a multinacional americana United Fruit, que organizou, por meio de fake news, um aparato publicitário que permitiu a invasão. Se os EUA tivessem apoiado esse governo democrático, provavelmente a América Latina não teria vivido o pesadelo que durou os 50 anos de guerrilhas em quase todos os países para alcançar o suposto paraíso comunista, à maneira de Cuba. O que aconteceu foi a América Latina se inchar de ditadores militares, provocando a morte de milhares de pessoas. Isso atrasou tremendamente a democratização da região. Foi uma tragédia. Talvez nem a revolução cubana tivesse essa face radical, marxista, comunista, caso a Guatemala tivesse outra sorte.
É curioso o prólogo do livro, em que o americano Edward L. Bernays defende a necessidade de um golpe na Guatemala – a quantidade de inverdades seria caracterizada hoje como fake news.
E foi uma jogada de grande êxito, pois as pessoas acreditaram nessa ficção tomada por verdade de que a Guatemala era uma praia particular da União Soviética quando, na verdade, não havia um russo sequer no país. Árbenz foi acusado de abrir as portas para a União Soviética. Um disparate. Mas esse fruto de propaganda criminosa – que hoje, sim, seria fake news – fez com que os americanos acreditassem na possibilidade de uma invasão russa.
Quão danosas são as fake news, na sua opinião?
É um problema mundial provocado pela revolução digital, que transforma cada pessoa do planeta em uma espécie de jornalista ao divulgar notícias. Hoje, é difícil distinguir as notícias verdadeiras das fake news, vivemos uma espécie de confusão extraordinária. Temos de tomar todos os cuidados, pois não é impossível que uma sociedade seja manipulada pelas fake news.
E como a democracia convive com a mentira?
Infelizmente, não é possível existir uma democracia sem mentiras. O mais importante é a existência de uma imprensa responsável, um jornalismo autêntico, honesto, que se dê conta da sua responsabilidade – muito maior hoje em dia, por conta da abundância das fake news. Não acredito que exista no governo democrático outra maneira de combate, porque já sabemos o resultado quando se estabelecem sistemas de censura na América Latina: surgem governos que só defenderam mentiras.
E o que o senhor pensa sobre a autocensura, também muito praticada em países com governos com grande patrulhamento?
É muito importante, para os cidadãos responsáveis, ter coragem de defender a verdade, de não aceitar a censura e muito menos a autocensura. Isso é o princípio do fim em uma democracia. É essencial que os meios de comunicação mantenham sua independência diante do poder. Na América Latina, o populismo surge outra vez, como na Bolívia, com Evo Morales ficando 12 anos no poder à base de fraudes. É uma vergonha.
Sobre seu livro O Chamado da Tribo, o que motivou a escrita?
Era um livro que tinha muita vontade de escrever desde que li Rumo à Estação Finlândia, do crítico americano Edmund Wilson, uma obra sobre a ideia do socialismo por meio de seus grandes pensadores, grandes dirigentes políticos, e que termina com a chegada de Lenin à estação Finlândia, em São Petersburgo, pronto para iniciar a Revolução Russa. Desde que li, pensei em fazer algo parecido, mas com o liberalismo. O resultado não foi bem isso – “tribo” seria um grupo de pensadores liberais que tiveram muita influência sobre mim, por isso que se trata de um texto autobiográfico. É a trajetória intelectual e política de sete pensadores em uma época em que eu já vivia o desencanto do socialismo.
O senhor buscou explicar no livro que ideologias contrárias à liberdade veem o liberalismo como seu grande inimigo?
O liberalismo não é uma ideologia, que é uma espécie de religião laica e só admite crentes – em alguns casos, só fanáticos. Liberalismo é um punhado de ideias compartilhadas por pessoas com diferenças de pensamento, como aliás ocorre na sociedade, onde sempre há muita discordância. O liberalismo reconhece que as diferenças devem prevalecer. Por isso, não diferencio liberalismo de democracia. Para mim, o liberalismo deu ideia e consistência de liberdade, além da legalidade, para a constituição da democracia, deu um fundamento econômico muito importante que permitiu que as democracias fossem prósperas, modernas, que pudessem evoluir tanto na área da ciência como na empresarial. Criou ainda condições materiais para o surgimento de uma política social avançada. São ideias fundamentadas na liberalidade e na legalidade. Finalmente, a ideia de que um Estado para ser eficiente tem de ser grande é equivocada. Os Estados grandes são, em geral, ineficientes. O ideal é ser pequeno, mas forte, que garanta a segurança, a propriedade, a liberdade de imprensa e de mercados, ao mesmo tempo em que defenda, de forma sistemática e sem concessões, a liberdade.

Nascido em Arequipa, no Peru, em 1936, Mario Vargas Llosa é jornalista, dramaturgo, ensaísta, crítico literário e escritor consagrado internacionalmente. Com vasta produção literária, que inclui peças teatrais, ensaios e memórias, recebeu o Nobel de Literatura em 2010. Também venceu os prêmios Cervantes, Príncipe de Astúrias e PEN/Nabokov, entre outros. Em 1990, foi candidato à Presidência do Peru, mas perdeu a eleição para Alberto Fujimori. A experiência foi relatada no livro Peixe na Água. É colunista do Estado.